O eucaliptal português: um diagnóstico de má gestão e abandono

Nesta segunda parte de uma série de quatro artigos, analisamos a gestão florestal em Portugal das últimas décadas, em particular a do eucaliptal. Onde ficam os interesses da floresta e do país?

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Mata Nacional de Escaroupim, arboreto de eucaliptos, um dos mais completos da Europa, com 125 espécies Rui Gaudêncio
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Madeiras queimadas durante incêndios são deixadas ao abandono à espera de serem transportadas Duarte Drago
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Mata Nacional de Escaroupim, Mata Nacional de Escaroupim Rui Gaudêncio
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O eucaliptal português é um dos maiores do mundo em área, num pódio partilhado com colossos como o Brasil ou a China. Sendo Portugal um dos maiores produtores de pasta de papel à escala internacional, a importância económica do sector é inegável. Mas o consenso em torno da gestão e da expansão do eucaliptal é profundamente dissonante, num debate que envolve interesses ambientais, sociais e económicos, quer de empresas e proprietários florestais, quer dos movimentos ambientalistas e, claro, os de toda a sociedade.

Nesta segunda parte de uma série de quatro artigos, analisamos dados e visões sobre a gestão florestal das últimas décadas, em particular a do eucaliptal, para perceber onde ficam os interesses da floresta e do país. Os quatro trabalhos resultam das conclusões de uma investigação de três jornalistas sobre gestão florestal na Europa, apoiada pelo Earth Investigations Programme do Journalismfund Europe.

A conversão da floresta nativa: o que ganhámos e o que perdemos

A floresta que temos hoje é o resultado de condições naturais e históricas e da gestão que dela foi feita. A floresta nativa do nosso território era povoada essencialmente por carvalhos. O biólogo Francisco Moreira, do Instituto Superior de Agronomia, explica porque é que isso mudou: “Do ponto de vista da biodiversidade, diria que maioritariamente [a gestão florestal] não foi minimamente orientada para esse objectivo. Historicamente, o objectivo principal foi a produção de madeira e produtos lenhosos, que é talvez o que tenha estado na origem do facto de grande parte da floresta portuguesa hoje ser pinheiro e eucalipto.”

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Esta conversão da floresta nativa, com a introdução de novas espécies e o aumento da área dessas espécies, teve um impacto significativo na adaptação da floresta ao fogo. “Uma das características das florestas mediterrânicas é estarem adaptadas ao fogo. O fogo fazia parte da natureza na região mediterrânica. Os carvalhos que lá estão, a não ser que seja um fogo muito intenso, vão voltar a rebentar da sua raiz ou da sua base”, explica Francisco Moreira. “Se todas essas florestas tivessem chegado até hoje, com as evidências que temos, se calhar teríamos menos incêndios.”

A somar a essa perda, há ainda, de acordo com o biólogo, uma perda de potencial económico: “É também possível que tivéssemos muito mais madeira de boa qualidade, porque a madeira de carvalho é bastante valiosa, comparativamente à madeira do eucalipto ou de pinheiro. E aquilo a que se chama os produtos florestais não lenhosos tem um potencial muito maior em floresta nativa do que em plantações.”

O valor económico da floresta é inegável. Dados da União Europeia mostram que em 2021 Portugal ocupava o 8.º lugar entre os Estados-membros no que toca à importância relativa do VAB da silvicultura. O VAB, Valor Acrescentado Bruto, corresponde à riqueza gerada na produção, retiradas despesas como o valor dos bens e serviços necessários à produção.

Com uma balança comercial muito positiva, a floresta é um dos mais importantes sectores da economia portuguesa. Do total de exportações do país em 2022, 9% são do sector florestal. Dessa percentagem, mais de metade pertence à fileira da pasta de papel, papel e cartão. Além disso, o sector florestal é um grande empregador: é responsável pela criação de mais de 100 mil postos de trabalho, segundo dados do ICNF actualizados em Novembro de 2023.

A espécie dominante, o eucalipto, tem um interesse económico essencialmente ligado à produção de pasta de papel em fábricas do litoral, num mercado com dois grandes actores: a The Navigator Company e a Altri. Já a segunda espécie, o pinheiro-bravo, surgiu ligada a uma economia de pequenas serrações espalhadas pelo interior do país. Em termos de corte, o eucalipto é uma espécie com um ciclo de corte considerado curto, de dez a 12 anos, enquanto o pinheiro-bravo tem um ciclo de corte entre os 40 e 60 anos.

Os donos da terra

Outro traço importante da nossa floresta é a estrutura de propriedade, isto é, a distribuição da terra e quem a detém. Com 97% de proprietários privados, Portugal tem uma das mais baixas percentagens de floresta pública da Europa. São pequenas parcelas divididas por muitos donos. Isto faz com que os proprietários não estejam particularmente focados na biodiversidade, explica Francisco Moreira. Nem mesmo nas poucas áreas geridas pelo Estado, que segundo o investigador deveria ser o gestor com maior inclinação nesse sentido, a biodiversidade é a preocupação principal.

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O pinheiro-bravo é uma espécie de ciclo longo, ao contrário do eucalipto que permite o primeiro corte aos 10-12 anos JOSÉ SÉRGIO

“Temos uma situação desafiante”, resume Miguel Viegas da Universidade de Aveiro: “Temos uma micropropriedade que dificulta muito qualquer medida de gestão florestal, ainda por cima num quadro extremamente adverso do ponto de vista climático e uma Política Agrícola Comum que promove o esvaziamento dos territórios rurais onde predominam as pequenas e médias explorações.”

Na discussão da biodiversidade, não contam só as árvores, mas tudo o que está associado a elas – como é o caso do subcoberto. “Numa floresta original, além das árvores, existe toda uma outra diversidade de árvores mais pequeninas, arbustos, plantas, herbáceas, que fazem parte da comunidade. Geralmente, em plantações florestais, essa parte que está para baixo não interessa. Interessa estar o mais limpo possível”, lembra Francisco Moreira. E resume: “O potencial de biodiversidade perde-se quando, ao longo dos milénios, fomos destruindo as florestas nativas de carvalhos, para chegarmos a uma situação, hoje, em que as duas espécies dominantes em Portugal são o pinheiro-bravo e o eucalipto, ambas geridas como plantações, sendo que uma dessas espécies nem sequer é uma espécie nativa.”

O abandono, um problema do eucalipto e não só

Essa espécie não nativa é o eucalipto, natural da Austrália e trazido para Portugal no século XIX. A seguir ao pinheiro-bravo, o eucalipto é a espécie com maior área de floresta em Portugal. A madeira de eucalipto é essencial para a indústria da celulose, que, segundo dados do sector, gere cerca de 194 mil hectares de eucaliptal, quer como proprietária, quer como arrendatária de terrenos.

Quando falamos de eucalipto, falamos da variedade Eucalyptus globulus, que é dominante em Portugal. A expansão desta espécie começa em meados do século XX. Desde então, pela mão da indústria da pasta e do papel, não parou de aumentar: segundo dados do ICNF, de 70 mil hectares em 1956 a 845 mil no último estudo feito, em 2015.

Nos últimos 50 anos, este crescimento tem sido mais sistemático, mas isso não corresponde necessariamente a um aumento da quantidade de madeira de eucalipto. O Inventário Florestal Nacional (IFN) conclui isso mesmo: “A [disponibilidade de madeira] de eucalipto não acompanha o aumento da área.” Mais concretamente, o volume de madeira de eucalipto estabilizou entre os dois últimos IFN, enquanto a área da espécie aumentou cerca de 59 mil hectares.

O IFN é um estudo que, a cada dez anos, traça um retrato da floresta em Portugal. Entre dezenas de indicadores, o IFN olha, por exemplo, para as principais espécies e as áreas que ocupam. José Sousa Uva, coordenador do último relatório do IFN, tira conclusões claras: “Os incêndios rurais, os cortes prematuros de arvoredos (em ambos os casos baixando a idade média dos povoamentos) e a existência de eucaliptos em locais de baixa produtividade, mal geridos ou abandonados, explicam esta situação.”

Para avaliar a qualidade da gestão usam-se indicadores como a densidade dos povoamentos, isto é, o número de árvores por hectare, e o índice de qualidade da estação, referente à capacidade produtiva de um povoamento florestal. Os especialistas olham também para a rotação (período entre os cortes de uma árvore) e para a idade das árvores.

Questionado sobre o que estes indicadores dizem sobre o eucaliptal português, José Sousa Uva aponta para a má gestão: “Em termos de densidade [os dados] revelam que um terço dos povoamentos tinha menos de 300 árvores por hectare, o que é baixo. Verificou-se também que a maioria dos eucaliptais (72%) estava em locais em que a qualidade da estação era baixa ou média e que existiam muitas situações de eucaliptais com mais de três rotações ou sem rotação identificável. A existência de uma porção significativa de área de eucalipto que está sublotada ou em rotações muito avançadas indica que esta não tem uma boa gestão numa perspectiva de produção para abastecimento industrial.” E acrescenta: “Esta é uma situação preocupante, uma vez que os eucaliptais se destinam essencialmente a esta função [industrial], cumprindo igualmente funções ambientais, designadamente ao nível de sequestro de carbono.”

Esta “gestão florestal incipiente”, como José Sousa Uva a qualifica, materializa-se num crescimento em área de eucaliptal sem o correspondente crescimento em volume de madeira. Significa isto que não havia tanto carbono armazenado como seria de esperar face ao aumento da área.

Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor, é dirigente de uma pequena associação focada na economia da floresta. Desde a sua fundação, em 2011, a Acréscimo tem sido voz activa contra aquilo a que o seu presidente chama uma "cultura de abandono". Paulo Pimenta de Castro faz as contas aos dados de volumes, áreas, densidade e vários outros indicadores e não tem dúvidas: há demasiado eucaliptal abandonado.

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O abandono é um dos grandes riscos de incêndio identificados num relatório de especialistas americanos após os incêndios do Centro em 2017 JOSÉ SÉRGIO

Numa coisa todos concordam: o eucalipto adapta-se muito facilmente às condições do território e é rentável mais cedo do que as outras espécies florestais. Para os proprietários, esta é uma aposta mais interessante. “Os proprietários não estão motivados para investir em espécies de ciclo longo”, confirma Susana Carneiro do Centro PINUS, uma associação que junta os principais agentes da fileira do pinho.

Mesmo em árvores de troncos e ramos queimados, as sementes de eucalipto têm a capacidade de sobreviver ao fogo. Num estudo de 2016, especialistas da Universidade de Lisboa e do Instituto Politécnico de Coimbra testaram a resistência das sementes de eucalipto e concluíram que é muito raro os incêndios inviabilizarem a germinação das sementes.

“Obviamente que não é o eucalipto que causa os incêndios. A verdade é que os eucaliptos potenciam esta propagação. Se nós temos 400 mil hectares que estão ao abandono, a probabilidade de eles causarem danos, de amplificarem os danos ambientais é muito significativa”, explica Paulo Lucas, dirigente da associação ambientalista Zero.

Os incêndios explicam-se por uma conjugação de condições e as causas podem ser diferentes em diferentes regiões. No entanto, há factores de risco conhecidos, como a estrutura de propriedade, maioritariamente privada e de pequenas parcelas, que desencorajam o investimento e gestão. O despovoamento das zonas rurais e, claro, as alterações climáticas são também responsáveis pelo aumento do risco.

Paulo Pimenta de Castro concorda que o eucalipto não é, em si, o problema. O que a Acréscimo contesta é o abandono e má gestão retratados no IFN. Esse abandono, explica, cria um problema para o futuro: "O eucalipto, depois de cortado, brota. Aquele pé volta a dar varas, e qualquer cidadão identifica o eucaliptal abandonado, se o vir adulto com várias varas por pé." A selecção de varas é uma das operações essenciais depois de um corte. "Por regra, seleccionam-se as duas melhores varas para futuro corte. Obviamente que a planta em si depois vai perdendo vitalidade e, ao fim de três cortes, muitas delas já não respondem à produtividade desejada, a planta vai-se esgotando", explica Paulo Pimenta de Castro. É nesta fase, dizem a Acréscimo e a Zero, que muitos proprietários abandonam a terra por falta de perspectivas de rendimento.

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O êxodo rural das últimas décadas, rumo às cidades do litoral ou à Europa, deixou ao abandono muitas propriedades rurais. A expectativa de obtenção de rendimentos dessas terras é geralmente baixa. Os proprietários, sobretudo os das regiões de minifúndio, como são o Norte e centro do país, optam por não intervir no terreno, ou entregar a sua gestão a terceiros.

O investigador Miguel Viegas, que se tem debruçado sobre a Política Agrícola Comum da UE em Portugal, garante que uma das razões do abandono da floresta é a falta de apoios aos pequenos proprietários. “O Estado e a União Europeia falharam rotundamente, porque a única forma de salvaguardar a floresta teria sido apoiando a pequena e média agricultura, são eles os proprietários de grande parte da floresta. Como esses pequenos e médios agricultores não foram apoiados, foram-se embora. E isto fomentou o abandono da floresta, a degradação dos espaços, a ausência de pessoas e os incêndios. É uma questão que tem a ver com o desenvolvimento rural”, explica.

Domingos Patacho compreende as razões que levam as pessoas a sair. “O problema aqui é que se está a condicionar para um determinado tipo de proprietário ou um determinado uso do solo, que interessa a uma indústria, mas não interessa ao ordenamento dos espaços florestais e ao bem-estar das pessoas”, lamenta o responsável técnico da Quercus.

Tanto a Zero como a Acréscimo vêem no arrendamento de terras pela indústria negócios pouco vantajosos para os pequenos proprietários. “Muitas vezes acabam por perder tudo”, diz Paulo Lucas, “mas criou-se uma ideia, junto do meio rural e do pequeno proprietário, de que o eucalipto é a única espécie que gera rendimento”. “Estes agentes que andam no terreno em nome das celulosas muitas vezes fazem este trabalho com as pessoas e muitas vezes acabam por esconder também um bocadinho o jogo.”

Domingos Patacho, da Quercus, vê aqui um problema mais estrutural: “Está-se a condicionar para um determinado tipo de práticas ou um determinado tipo de uso do solo que interessa a uma indústria, mas não que interessa ao ordenamento o território.”

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Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor, é dirigente de uma associação focada na economia da floresta fundada em 2011, a Acréscimo Nuno Ferreira Santos

A Navigator, a maior empresa do sector, foi contactada para comentar as declarações feitas acima e responder a perguntas sobre os dados do IFN, a gestão do eucaliptal pela indústria e outros tópicos abordados nesta série. Apesar de trocas de email ao longo de mais de um mês, a Navigator não se disponibilizou para uma entrevista nem respondeu às perguntas enviadas por escrito pelo PÚBLICO. Também a Biond ​ Associação das Bioindústrias de Base Florestal, que representa a indústria papeleira, foi contactada mas, até ao fecho da edição, não respondeu às perguntas enviadas.

Ventos de mudança?

Depois dos incêndios de 2017 na região centro, e reconhecendo os riscos de um eucaliptal em expansão ilimitada, o Parlamento aprovou uma proposta do então Governo socialista, para limitação da área da espécie, hoje com 845 mil hectares.

Dessa área total, cerca de 194 mil hectares são geridos por associados da Biond. No Verão do ano passado, António Redondo, CEO da Navigator, defendeu publicamente a expansão do eucaliptal como forma de garantir a sustentabilidade da empresa. Em 2022, a Biond (na altura chamada Celpa) e a Federação Nacional das Associações de Proprietários Florestais pediram ao Governo que revisse a lei. A perspectiva da federação de proprietários era a de que, sendo as áreas de mato e pastagens aquelas que mais ardem, seria benéfico convertê-las em eucaliptal, para que fossem geridas.

Em Março deste ano, durante a campanha eleitoral, Luís Montenegro, interpelado por um ambientalista, disse que, a ser eleito, o seu Governo não iria aumentar a área de eucaliptal. No programa da Aliança Democrática, a coligação prometia penalizar a inacção, “procurando a gestão activa de terrenos”, e tanto o programa eleitoral como o de Governo apontam o aumento das áreas arborizadas com espécies autóctones. Nenhum dos dois documentos menciona especificamente o eucaliptal ou a indústria da pasta de papel. Na quarta e última parte desta série, exploraremos a visão do secretário de Estado das Florestas, Rui Ladeira, e o plano do Governo para o futuro da floresta em Portugal.


Este artigo, da autoria da jornalista Rita Cruz, resulta de uma investigação sobre gestão florestal na Europa, apoiada pelo Earth Investigations Programme do Journalismfund Europe. A investigação Carbon Forest Project foi desenvolvida pelos jornalistas Rita Cruz, Louisa Bouri-Saouter e Kai Rüsberg. Rita Cruz é jornalista freelancer e vive e trabalha actualmente em Gotemburgo, Suécia, assim como Louisa Bouri-Saouter, jornalista francesa a viver em Estocolmo. Kai Rüsberg trabalha como jornalista para o serviço público de rádio e televisão ARD, na Alemanha.

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