Moçambique: FMI alerta para o “risco” de corrupção nas empresas do Estado

FMI pede ao Governo para “melhorar a transparência na contratação” devido às “vulnerabilidades à corrupção”. Ex-ministro envolvido no maior escândalo de desvio de dinheiro país julgado nos EUA.

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Manuel Chang, ex-ministro das Finanças moçambicano, está actualmente a ser julgado em Nova Iorque ANTÓNIO SILVA/Lusa
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Dias depois de começar em Nova Iorque o julgamento do ex-ministro das Finanças de Moçambique Manuel Chang, no âmbito do maior escândalo de corrupção da história do país, o chamado caso das dívidas ocultas que lesou o Estado moçambicano em mais de 2 mil milhões de dólares, as empresas públicas continuam a representar um “risco” para as finanças públicas do país.

Quem o diz é o Fundo Monetário Internacional (FMI) no seu relatório de avaliação ao Sector Empresarial do Estado (SEE), que pede maior “transparência” na contratação pública e melhorias na “eficiência da despesa pública”. Mesmo com o exemplo do escândalo das dívidas ocultas, que tanta mossa fez na imagem do país junto das organizações financeiras internacionais, o Estado continua a dar às empresas públicas ou participadas pelo Estado um “poder discricionário” que faz aumentar “os riscos de corrupção”.

O FMI afirma no relatório de avaliação à vintena de empresas do SEE em Moçambique, a que a Lusa teve acesso, que “é importante melhorar a transparência nos processos de contratação públicas das empresas públicas para abordar as vulnerabilidades à corrupção e melhorar a eficiência da despesa pública”.

Foram essas vulnerabilidades que possibilitaram o caso das dívidas ocultas, com a concessão de três créditos (622 milhões de dólares para vigilância costeira, 855 milhões de dólares para uma frota de pesca de atum e 535 milhões para estaleiros navais) a empresas públicas com garantia do Estado moçambicano e que o Governo ocultou das contas públicas até ser descoberta a existências de créditos de que acabaram por lesar o erário público.

Dez anos passados da concessão desses créditos – quando Armando Guebuza era Presidente e o seu sucessor, Filipe Nyusi, era ministro da Defesa –​, o quadro jurídico de Moçambique ainda “concede às empresas públicas um amplo poder discricionário para realizarem aquisições directas”, em situações “não competitivas” e “aumentando os riscos de corrupção”.

“Embora as empresas públicas sejam obrigadas a seguir princípios que apoiam a transparência e a concorrência aberta, estão autorizadas a utilizar processos excepcionais em situações de força maior, ou quando não é possível realizar um concurso público, sem fornecer critérios objectivos, salvaguardas, ou aprovações especiais”, sublinha o relatório do FMI.

Negócios do genro de Chang

O FMI diz que está a trabalhar com o Ministério da Economia e Finanças para reformar o SEE, ao mesmo tempo que surgem notícias de que Ingilo Dalsuco, genro de Manuel Chang e, de acordo com o Centro para a Democracia e Direitos Humanos (CDD), seu testa-de-ferro, continua a fazer negócios com o Estado moçambicano, mesmo quando se suspeita que esses negócios estejam a ser usados para “lavagem de dinheiro, parte do qual se suspeita que seja fruto das dívidas ocultas”.

Dalsuco, “famoso por comprar ruínas e transformá-las em edifícios para depois vendê-los a valores altíssimos ao Estado”, vendeu os edifícios onde funcionam o Tribunal Judicial da Província de Inhambane, a Direcção da Cultura e Turismo, o Instituto Nacional das Comunicações de Moçambique e, ironicamente, o Gabinete Provincial de Combate à Corrupção, segundo o boletim de Política Moçambicana do CDD.

O último negócio aconteceu a 28 de Março de 2024, com a empresa Investimentos Imobiliários, Lda., do genro de Chang, a ganhar o concurso público para venda de um edifício de dois pisos para instalar a Direcção Provincial do Plano e Finanças de Inhambane por 269,42 milhões de meticais (3,84 milhões de euros). Um valor muito alto que faz lembrar outra venda que a empresa fez no passado e provocou imensas críticas: o edifício do tribunal de Inhambane que custou aos cofres públicos uma verba quase idêntica, 270 milhões de meticais (3,85 milhões de euros).

Segundo disse a acusação ao júri no julgamento de Manuel Chang em Manhattan, o ex-ministro das Finanças moçambicano é “um governante estrangeiro corrupto que abusou da sua autoridade para enriquecer através de suborno, fraude e lavagem de dinheiro”. Os procuradores federais norte-americanos dizem que Chang recebeu sete milhões de dólares de subornos no caso das dívidas ocultas.

Nyusi terá dado o seu aval

Detido na África do Sul em 2018, com base num mandado de captura internacional da justiça norte-americana, o ex-governante esteve no epicentro de uma longa e dispendiosa batalha judicial do Governo moçambicano para evitar que fosse extraditado para os EUA para ser julgado. Maputo defendia que o ex-governante fosse julgado nos seus tribunais e terá gastado uma verba superior a 100 milhões de meticais (1,4 milhões de euros) em advogados para evitar que as autoridades sul-africanas extraditassem Chang para os EUA.

O antigo titular das Finanças sempre afirmou que Filipe Nyusi, então ministro da Defesa, tinha dado o seu aval aos empréstimos, que também eram do conhecimento do Presidente da República da altura, Armando Guebuza.

A Privinvest, empresa no centro do escândalo, também afirmou o mesmo no Tribunal Comercial de Londres, onde está ser acusada de fraude e corrupção pelo Estado moçambicano, que exigia uma indemnização de 3.1 mil milhões de dólares por danos, compensação e indemnização. Num documento de 157 páginas entregue pela defesa de Iskandar Safa, co-proprietário da empresa que morreu em Janeiro, e dos outros 11 arguidos, a Privinvest afirma que pagou um milhão de dólares a Nyusi, sete milhões a Chang e dez milhões à Frelimo, o partido no poder, para poder negociar com o Estado moçambicano.

O documento também refere que Guebuza estava a par do negócio. Aliás, um dos seus filhos, Armando Ndambi Guebuza, foi condenado no final de 2022, a 12 anos de prisão, depois de o tribunal o ter considerado culpado de receber subornos para influenciar o pai a aprovar o projecto de protecção costeira, usado para a angariação do dinheiro junto dos bancos.

Diga-se que o principal negociador da Privinvest no processo, Jean Boustani, foi absolvido pelo mesmo tribunal federal norte-americano que agora julga Chang.

Como escreveu o CDD, "o calote foi um projecto de corrupção envolvendo altos dirigentes do Estado, incluindo dos serviços secretos". O Banco Mundial afirma que a descoberta das dívidas ocultas "interrompeu a trajectória de desenvolvimento de Moçambique", que, na altura, "era uma das dez economias do mundo em crescimento acelerado" e "um dos países predilectos dos doadores e o destino de 10 a 15% do total de fluxos de investimento directo estrangeiro na África subsariana".

Reforma do SEE

Para o FMI, a forma de trabalhar do SEE tem de ser reformada, sendo que o “primeiro passo para uma maior transparência” deve passar pela “publicação das políticas de aquisição das empresas públicas, juntamente com os planos anuais de aquisição” ou a implementação de políticas de “transparência da propriedade beneficiária e anticorrupção”.

“No futuro, as autoridades devem considerar a revisão do quadro jurídico para sujeitar as empresas públicas às regras de contratação pública, especialmente no que diz respeito aos requisitos de transparência, ao mesmo tempo que consideram a flexibilidade adequada, mas limitada, para aquelas que competem com o sector privado”, aponta o relatório.

Acrescenta que o “Governo também deve reforçar a governação das empresas públicas com base nas boas práticas internacionais”, nomeadamente com “a introdução de medidas para reforçar o papel e a independência dos conselhos de administração das empresas públicas”.

Embora “as recentes reformas do quadro jurídico das empresas públicas e os esforços em curso” das autoridades moçambicanas “tenham melhorado a supervisão e a prestação de informações financeiras”, o FMI defende “mais atenção aos quadros de governação corporativa para melhorar o desempenho” do sector.

“O Estado deve também procurar separar as suas funções de proprietário, de regulador e de elaborador de políticas", devendo para isso estabelecer uma "política de propriedade abrangente" que inclua "requisitos de transparência, tanto para as empresas públicas como para o Estado como proprietário".

O processo de nomeação dos conselhos de administração também deve ser devidamente "formalizado e realizado com base no mérito competitivo e em princípios transparentes que busquem profissionalismo e competências relevantes”, acrescenta o documento do FMI. Garantindo, ao mesmo tempo, que "os membros dos conselhos das empresas públicas não assumam outras funções em órgãos reguladores ou de supervisão”.