Liberdade é complexidade

Uma reflexão sobre os limites da liberdade, sobre quem os pode (ou não) decretar e sobre se os deve (ou não) impor: “Este é um tema complexo que nós gostamos de fingir que é simples”.

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Festejos de militares e civis na noite do 25 de Abril de 1974, em Lisboa Jean-Claude FRANCOLON/Getty Images
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A liberdade é um fardo.

É nela que principia a responsabilidade e se cozinham as consequências. A liberdade é um pressuposto do erro, origem do excesso, fonte de todos os males. E a ansiedade que causa? E o medo que provoca?

A liberdade é uma prisão.

Amarra-nos aos nossos atos, às nossas palavras, aos nossos pensamentos. A liberdade é o desgoverno, a anarquia. E as regras que se incumprem? E as expectativas que se frustram?

A liberdade é um perigo. A liberdade é todos os perigos.

Deve ser por isto que tão pouca gente gosta dela. Ninguém o confessa, claro. Livrem-se de não gostar da liberdade, ouviram? A liberdade tem limites. E não gostar da liberdade é o primeiro limite.

Gostemos então todos da liberdade (só um bocadinho). Em primeiro lugar, da nossa liberdade. Ai de quem me cale. Eu tenho liberdade de expressão. Censura nunca mais. Eu digo o que eu quero e quem quiser critique. Mas eu que não ouça, porque a crítica ofende. Ofende-me. Ofende quem gosta de mim. Ofende quem não me conhece mas não gostou do tom. Ofende quem não leu nem ouviu mas suspeitou de que havia causas para ofensa. Guardem as críticas para vocês. A vossa liberdade não vos autoriza a ofender-me.

A vossa liberdade termina onde a minha liberdade começa. A minha liberdade começa onde eu quero.

A crítica cai mal. A vossa crítica cai-me mal. E fica mal aos críticos. Se criticam a pessoa, falácia. Se criticam a forma, superficiais. Se criticam o argumento, estão a criticar a pessoa. A crítica é própria dos invejosos e dos malfodidos. De quem pensa mal e de quem vive mal com o pensamento dos outros. Não tomem isto como uma crítica.

A liberdade é um valor da esquerda, porque a direita é fascista e os fascistas não gostam da liberdade.

A liberdade é um valor da direita, porque a esquerda é moralista e os moralistas não gostam da liberdade.

Eu prefiro um moralista a um fascista, mas eu gosto mesmo é de liberdade. Gosto que seja um fardo, porque é demasiado importante para ser leve. Gosto que exija responsabilidades, porque é demasiado poderosa para não ter consequências. Gosto que nos vincule, porque é demasiado frágil para ser descomprometida. Deixem-me errar, para eu aprender. Deixem-me decidir, para eu errar. Deixem-me incumprir porque eu conheço os castigos. Deixem-me viver as minhas consequências.

Eu sou o que faço com a minha liberdade: vejam-me, ouçam-me, julguem-me. E vocês são o que fazem com a vossa: deixem-me ver-vos, ouvir-vos, julgar-vos. Não vejam por mim: eu tenho olhos. Não ouçam por mim: eu sei escutar. Não julguem por mim: eu tenho dignidade.

Não sejam a minha liberdade porque vocês não são quem eu sou. Não sejam por mim. Deixem-me ser.

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Philippe ACHACHE/Gamma-Rapho via Getty Images

Se vocês não gostam da liberdade dos outros é porque não sabem o que fazer com a vossa liberdade. A vossa liberdade é um fardo e por isso a vossa liberdade deixou de ser vossa e passou a ser da cooperativa. Pensam com a cooperativa, riem com a cooperativa, gritam com a cooperativa. A cooperativa alivia. A cooperativa desresponsabiliza. A cooperativa descompromete.

A cooperativa liberta-vos da vossa liberdade. Cumprir uma ordem é o alívio supremo.

Isto não é sobre o politicamente correto. Sejam politicamente corretos se é o que são. É o que eu sou. Gosto muito da paz e da sã convivência. Gosto muito que gostem de mim. Gosto muito que se gostem uns aos outros. Não tenho ambições de ser diferente e rebelde, mas faço questão de ser livre para mudar de ideias.

Eu adoro o respeito. A cooperativa adora o respeitinho.

São livres de dizer não posso. São livres de dizer não devo. São livres de dizer não faças. E eu, que sou livre, posso, quero e faço.

Eu sei que a liberdade tem limites. Eu gosto que a liberdade tenha limites. O que é ilimitado não tem valor. A liberdade vale porque é finita, porque é difícil, porque ninguém gosta dela.

A liberdade tem limites mas a liberdade não tem os vossos limites. Não tem os meus limites. Os limites da liberdade não são os limites do respeito, quanto mais os limites do respeitinho. Não são os limites da decência, quanto mais os limites da cooperativa.

Os limites da liberdade devem ser — se tudo correr bem — pequeníssimos, mas amplos consensos sociais em torno de coisas que prejudicam a liberdade no seu âmago, na sua essência, que nos impedem de ser, de SER, de ser dignos e diferentes e livres. São consensos que se erguem e manifestam e aplicam democraticamente, procedimentalmente, constitucionalmente, jurisprudencialmente, um conjunto de mentes cujo propósito é garantir que travar a liberdade é um ato tão pesado como a própria liberdade.

A liberdade de eu usar o meu corpo com os meus limites e não com os limites dos outros. A liberdade de eu amar quem quero, de eu defender aquilo em que acredito, de viver como posso, de ser quem eu sou.

De ser sem medo. Sem medo da violência, sem medo da autoridade, sem medo das mulas da cooperativa, que interrompem, que perseguem, que vociferam, que corroem, que intimidam enquanto gritam “não vale tudo”, “defendam as crianças”, “defendam os velhinhos”, “defendam as mulheres”, “defendam os homens”, defendam toda a gente menos aquilo que faz deles gente, que é serem pessoas que pensam e decidem livremente sobre a sua vida, as suas causas, as suas prioridades, os seus valores.

A versão mais simples e sinistra do mundo é aquela em que eu determino os limites da liberdade dos outros. A liberdade dos outros é inconveniente. É traiçoeira. Magoa, aflige, corrói. A liberdade dos outros destrói as coisas que eu amo. A liberdade dos outros insulta-me, insulta os meus valores e insulta a minha inteligência.

A liberdade dos outros chega até a ferir a liberdade dos outros. Fere a democracia. Fere a humanidade. É uma selva, um circo. Não pode valer tudo mas ainda assim tem de valer quase tudo. Tem de valer o máximo possível para que possamos ser o máximo possível. Para que nos deixem ser o máximo possível.

É impossível amar verdadeiramente a liberdade dos outros. A liberdade dos outros é muitas vezes injusta. É impossível não lhe desejar uns limites mais justos. Mais justinhos. Mais ajustados.

Mas a liberdade é as liberdades de cada um. Os limites da liberdade são os limites de todos.

Este é um tema complexo que nós gostamos de fingir que é simples. A liberdade é boa quando é boa, e não é boa quando não é boa, e quem não sabe distinguir estes dois momentos (sempre evidentes e claros e universais) não tem o compasso moral alinhado.

Somos livres de discutir os limites da liberdade como se fossem uma coisa simples porque somos livres de cometer erros. Mas quem não abraça a complexidade, dorme com a ignorância. Somos livres de ser ignorantes, mas somos mais livres se não formos ignorantes.

Lutar pela nossa liberdade é fácil, mesmo quando é difícil, isto é, mesmo quando a luta pela nossa liberdade é feita contra grandes poderes, o impulso de lutar por ela é fácil porque é natural. Vem da nossa vontade de sermos inteiros. É humano.

Lutar pela liberdade dos outros é difícil porque não é natural. É a resposta necessária a uma pergunta inevitável e egoísta: se eu não defendo a liberdade deles, quem é que defende a minha? Implica retirar a nossa sensibilidade do centro para a colocar numa órbita com outras sensibilidades que não nos interessam para nada, de gente que nos irrita, de ideias que nos enojam. É sobre-humano.

E é muito arriscado. A liberdade é sempre um risco. Pode correr tudo mal. Posso perder a minha liberdade às mãos de outros. Posso ouvir coisas que me transtornam. Posso cair em mentiras, ceder a tentações, ser arrastado para indignidades. A liberdade está sempre em perigo de vida porque a liberdade permite muita coisa e irrita muita gente. Mas eu não troco a liberdade de ninguém pela minha paz de alma. Nem dou a minha liberdade à cooperativa.

Amo a minha liberdade. Por ela, faço quase tudo, incluindo defender a terrível, a inconveniente, a desagradável liberdade dos outros — que nunca é absoluta, mas é sempre absolutamente importante.

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