Mário Cruz fotografou o lado invisível da crise da habitação

Entre 2013 e 2023, Mário Cruz fotografou moradores de edifícios devolutos da capital. No livro ROOF encontramos pessoas “quase invisíveis na nossa sociedade”.

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Em 2013, decorria ainda o programa de resgate económico da troika​, quando o lisboeta Mário Cruz conheceu e fotografou o senhor Gomes, em Chelas, Lisboa. O homem, então com 63 anos, tinha sido “empurrado” para o interior de um edifício abandonado, a que passou a chamar casa. Estava desempregado e sem direito a apoios do Estado.

Dez anos depois, em 2023, num período de crescimento económico, Mário retratou o senhor Carlos, em Campolide. Encontrou-o no interior de um contentor, a sua casa improvisada, onde permanece nas horas em que dorme e naquelas em que não está a trabalhar. O salário de funcionário público que aufere como jardineiro da Junta de Freguesia de Campolide não lhe permite pagar uma renda na capital.

Entre 2013 e 2023, muito mudou em Portugal. Mas nem tudo. Se, em 2013, os salários de muitos portugueses permitiam-lhes fazer face às despesas de habitação, dez anos depois tal podia não ser verdade.

O fotógrafo Mário Cruz, fundador do espaço lisboeta dedicado à fotografia Narrativa, testemunhou e documentou essa mudança na cidade onde nasceu e reside, acompanhando os casos de pessoas que vivem, devido à falta de apoios sociais, no interior de edifícios devolutos. “Fala-se muito, hoje, da crise da habitação”, constata o fotógrafo, numa entrevista ao Ípsilon a partir de Arles, a cidade francesa onde decorre o festival Les Rencontres D’Arles. Foi lá que apresentou, no dia 2 de Julho, o seu mais recente livro, ROOF, centrado na precariedade habitacional em Lisboa. “Eu não encaro o problema da habitação em Portugal como uma crise. Uma crise é uma situação temporária, tal como foi a crise da troika. No que toca à habitação, estamos diante de um problema estrutural, crónico, que já nos acompanha há muito tempo.”

João, colaborador da Câmara de Lisboa, observa a casa onde vive sozinho, num prédio inacabado em Marvila. Perdeu o emprego durante a crise económica, o que resultou na perda da sua casa. Em 2019, mesmo com a ligação à autarquia não consegue encontrar uma casa que possa pagar. ©Mário Cruz,©Mário Cruz
Um edifício devoluto junto ao Tejo que serviu de casa durante a crise da troika, no Braço de Prata, em Lisboa. A porta foi removida para impedir a ocupação do espaço. Passados dez anos, este e outros edifícios próximos deram lugar ao empreendimento "Prata", onde um T1 tem o preço de venda de 560 mil euros. ©Mário Cruz
Paula e Carlos, duas das pessoas que vivem em arrecadações de uma escola abandonada, em Marvila. Apesar de viverem num local abandonado, o espaço que ocupam já foi assaltado várias vezes. A escola é actualmente a casa de dezenas de pessoas, tendo vários imigrantes ocupado recentemente com tendas um dos pisos do edifício. Recentemente, Carlos emigrou para a Alemanha em busca de uma vida melhor e Paula continua a trabalhar como empregada doméstica recebendo o salário mínimo pelo seu trabalho. ©Mário Cruz
Vítor, 65 anos, dorme em dois colchões sobrepostos no chão de um edifício empresarial, nos Olivais, em Lisboa. Vítor foi convidado a viver no local por outros residentes da fábrica quando o viram a dormir na rua, depois de ter sido despejado pelo senhorio por incumprimento no pagamento das rendas. Em 2011, passados sete meses de ter perdido o seu trabalho numa oficina de automóveis, acabou por viver num pequeno beco com um toldo até ter um quarto neste edifício. A sua pensão não lhe permite arrendar uma casa em Lisboa. ©Mário Cruz
Rui, no interior da sua casa em Benfica, a casa com cerca de 20 metros quadrados está devoluta desde 2009. A sua maior preocupação é que alguém o veja entrar e sair do edifício. Para ter acesso ao local, tem de passar por uma zona de mato intenso e entrar por uma janela de pequena dimensão. ©Mário Cruz
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João, colaborador da Câmara de Lisboa, observa a casa onde vive sozinho, num prédio inacabado em Marvila. Perdeu o emprego durante a crise económica, o que resultou na perda da sua casa. Em 2019, mesmo com a ligação à autarquia não consegue encontrar uma casa que possa pagar. ©Mário Cruz,©Mário Cruz

O projecto ROOF, que o fotógrafo transformou em livro no mês em que se celebraram os 50 anos do 25 de Abril, nasceu em 2013 e foi publicado no ano seguinte pelo jornal norte-americano New York Times. “Dei início ao trabalho, na altura, motivado pela crise financeira que se vivia. As pessoas tinham perdido o emprego e viam-se obrigadas a deixar as suas casas, muitas a entregá-las aos bancos, e a encontrar uma solução. Tinha urgência em mostrar a realidade desse período para dar a conhecer ao mundo esse aspecto da crise, em Portugal.”

Apesar de nunca ter dado por terminado oficialmente o trabalho, parou de fotografar ROOF em 2014. Cinco anos depois, voltou ao projecto. “Portugal era o ‘menino bonito’ da Europa em termos económicos. Muito se falava da recuperação do país, do facto de ter conseguido dar a volta, mas algo não batia certo. Eu continuava a ver na minha cidade sinais de vida em espaços que, à partida, estariam mortos, vazios, devolutos.”

Mário Cruz retomou ROOF para documentar um outro tipo de pobreza, que surgiu no Portugal pós-troika, no Portugal do turismo, da gentrificação das cidades. Numa irónica viragem de 360 graus, quem trabalha hoje e ganha o salário mínimo, ou até um pouco mais, enfrenta o risco real de estar na mesma condição em que estaria em 2013 numa situação de desemprego, refere. “Em 2023, o cenário era, na verdade, muito mais dramático do que em 2013 e 2014”, avança. “Ou seja, agora as pessoas tinham dinheiro. Estamos a falar de pessoas que têm, no fundo, uma vida normal, que têm o seu emprego, o seu trabalho, o seu círculo de amigos; a diferença é que não conseguem pagar uma casa. E isso foi bastante chocante.”

O livro ROOF reflecte, ao mesmo tempo, unidade e circularidade. É impossível destrinçar a que era pertencem cada uma das 70 fotografias a preto e branco. Não é por acaso. “Não queria que na minha obra estivessem muito presentes as causas deste fenómeno. O que para mim era muito importante era que não se conseguisse perceber se estamos diante de uma fotografia de 2013 ou de 2023. Porque não se pode distinguir algo que continua.”

A obra está dividida em quatro peças – o livro de 140 páginas, um caderno com 22 fotografias onde sobressai o jogo negativo-positivo, um longo desdobrável e um jornal com um texto, em tom de manifesto, do projecto – “embrulhadas” numa caixa negra de papel selada por um autocolante que é preciso rasgar para chegar ao interior. “Essa caixa selada remete para a acção que estas pessoas precisam de realizar para terem uma casa”, explica o fotógrafo premiado em 2016 pelo World Press Photo (Picture of the Year) e nos Magnum Photography Awards. “Têm de derrubar portas, destruir barreiras.” Depois de quebrado o selo, é garantido o acesso aos vários volumes, “tal como acontece numa casa com as várias divisões”. E cada divisão tem uma função diferente. “Cada objecto tem o seu tipo de papel, uma impressão e tinta específicas, um aspecto plástico diferente”, pensado à exaustão por Cruz e pelo fotógrafo italiano Alex Paganelli. Em ROOF reina o negro fundo, a escuridão. Em tons de cinza desmaiado surgem as cenas que descrevem a sombria realidade dos retratados e dos lugares arruinados que habitam.

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O livro ROOF, de Mário Cruz

Ao fotografar, Mário teve a certeza de que estava diante de “uma realidade escondida”. “As pessoas que retratei não entram para as estatísticas de pessoas em condição de sem-abrigo porque não dormem nas ruas, não estão junto às carrinhas de distribuição de alimentos à espera de uma refeição [porque podem pagar a sua própria comida]. Por isso, estamos a falar de pessoas que, na verdade, são quase invisíveis na nossa sociedade.”

“Não se arruma um tecto que cai sobre nós”

Embora institucionalmente invisíveis, as pessoas que vivem em lugares devolutos não passam despercebidas a quem mora ou trabalha perto delas. Em Chelas, 2013, “choviam produtos de higiene e enlatados no interior da quinta abandonada” onde vivia o senhor Gomes​. Os vizinhos estavam cientes da sua presença, tentavam ajudá-lo. Durante muito tempo, apesar das várias tentativas, Mário Cruz não viu vivalma na quinta. Havia roupa estendida, a secar no exterior, que era trocada com regularidade, mas nunca pessoas. “Cheguei mesmo a questionar num café local se, de facto, vivia ali gente, porque as janelas estavam entaipadas.”

Manteve-se a dúvida até ao dia em que Mário viu finalmente o sexagenário a lançar um escadote em direcção a uma janela do primeiro piso. “O senhor Gomes entrava no edifício já ao final do dia, com pouca luz, e saía muito cedo, logo após o nascer do Sol”, recorda o fotógrafo. “Ele tinha construído um escadote de madeira com as próprias mãos para poder entrar e sair do edifício. Era um exercício muito difícil – eu tive muita dificuldade em fazê-lo –, mas ele estava habituado.”

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À esquerda, o senhor Gomes, de 63 anos, dentro do seu quarto numa antiga moradia abandonada, em Chelas; à direita, Gomes utiliza um escadote para sair da sua "casa", que foi entaipada para impedir a sua ocupação. ©Mário Cruz

Entre Cruz e Gomes nasceu uma relação de amizade. Foi assim que o fotógrafo percebeu que o “senhor Gomes”, como sempre o trata, ao longo de uma vida na construção civil, raramente celebrou um contrato de trabalho com quem o empregou. E que, por isso, quase nunca fez descontos para a Segurança Social – o que limitou o apoio que podia receber do Estado naquele momento de maior aperto. “Como é que uma pessoa de 63 anos que tinha trabalhado a vida inteira fica, de repente, naquela situação?”, lamenta Mário Cruz. O que viu em Chelas marcou-o. “A fotografia da sombra reflectida numa parede é do senhor Gomes. Sobre ele, vê-se o tecto a colapsar. Foi a partir dessa fotografia que dei o nome ao projecto.”

Gomes tinha um cuidado extremo ao receber Cruz. “'Mário, deixa-me arrumar as coisas antes de chegares', dizia-me. Mas não se arruma o tecto que está a cair sobre nós”, sublinha. “Todo esse cuidado, essa dignidade, essa preocupação com a higiene, a arrumação, impressionaram-me.” E não foi caso único. Mário Cruz sentiu existir sempre, da parte de quem o recebia, um cuidado em mostrar um lugar limpo, organizado. “Em muitos dos sítios que visitei chovia no interior porque o telhado não estava nas melhores condições. Mas era recorrente, nesses dias, as pessoas deixarem o guarda-chuva à porta de casa, para não molharem o chão do interior.” Via muitas vezes um tapete à porta de entrada. “Há pessoas que compram mobiliário que mandam entregar no local abandonado”, aponta. Essa personalização dos espaços é muito evidente nas fotografias que captou. “O local, ainda que abandonado, assume muito da personalidade da pessoa que está a acolher naquele momento. A pessoa transforma-o, adapta-o às suas necessidades, e cuida dele – o lugar, no entanto, nunca deixa de espelhar fragilidade, a fragilidade que o próprio morador sente.”

Num lugar devoluto, não há, salvo raras excepções, ligação eléctrica, água corrente, saneamento básico, sublinha Cruz. “Isso tem implicações na hora de se conseguir um emprego, por exemplo. O senhor Gomes, em 2013, não tinha uma morada para dar a um possível empregador. E não conseguiria receber correspondência se não tivesse pedido a um café das imediações que a recebesse.” Havia casos em que os proprietários dos edifícios abandonados tinham conhecimento da presença de moradores e, entendendo ser uma situação temporária, permitiam a sua estadia. “Há casos até em que os proprietários autorizavam as ligações de água ou electricidade.”

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O interior de um edifício devoluto, em Lisboa, onde existe ligação à rede de electricidade ©Mário Cruz

A lente de Cruz foi apontada a um perfil específico de pessoa. Um conjunto de princípios éticos e de pré-requisitos foram norteando o projecto de cariz documental. “Para mim, era muito importante não incluir exemplos de pessoas com dependências ou pessoas que tivessem problemas psíquicos.” Evidentemente, sublinha, não por uma questão de discriminação destas populações, que carecem igualmente de apoio social, mas por querer realçar que este é um problema que não afecta apenas pessoas em situação de maior vulnerabilidade. “Foi um processo muito exaustivo, exigente”, conta. “Nunca sabia, à primeira abordagem, quem iria encontrar.”

Em todos os casos – “são entre 20 e 30 locais aqueles que constam no livro” –, o fotógrafo permaneceu entre 24 e 48 horas nos sítios. “Foi uma experiência difícil de gerir”, admite. “Não apenas por constatar que é possível, em pleno século XXI, que as pessoas possam chegar àquela situação, mas porque – e tenho de ser sincero – o que via acontecer se passava em Lisboa.” Era, afinal de contas, a sua cidade, a cidade onde cresceu. “As melhores memórias da minha vida são daquela cidade. Ver-me em locais onde nunca pensei entrar, sentir desconforto extremo, insegurança extrema na minha cidade…” Interrompe a linha de pensamento para descrever que, num dos locais, “as pessoas tinham de tapar os buracos das paredes para não entrarem ratos no quarto”. “Tapavam-nos com a própria roupa – a roupa com que saíam, no dia seguinte, e que tentavam esticar, para procurarem um emprego.” Tudo o que viveu pesou na fotografia que produziu. “Influenciou o meu olhar e o meu pensamento sobre o trabalho.”

"Telhados de vidro"

Carlos, o jardineiro da Junta de Freguesia de Campolide, vive num contentor abandonado mesmo em frente à vila onde sempre viveu. “A vila foi entaipada”, conta o fotógrafo. “Ninguém sabe se vai nascer ali um novo empreendimento de luxo, como acontece a poucos metros dali.”

“Outra pessoa que fotografei, um antigo combatente da guerra colonial, vivia, em 2023, num edifício abandonado que faz paredes-meias com o Palácio de Belém”, conta. “Os guardas da GNR que guardam o palácio, sabendo da sua situação, ofereceram-lhe um estrado de cama para poder dormir com mais conforto.”

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Um residente de uma vila abandonada nos Sapadores regressa a casa depois de encontrar um estrado de uma cama. Durante a crise financeira de 2010-2014, a vila acolheu muitos desempregados. ©Mário Cruz

Numa escola abandonada, em Marvila, Mário encontrou dezenas de pessoas. “Pessoas que trabalham – vemo-las sair às oito da manhã para irem trabalhar –, pessoas reformadas, imigrantes.” Numa das suas visitas, foi abordado pela polícia, que “defendeu” quem lá vivia. “Estas pessoas vivem aqui”, disseram-lhe, temendo que a atenção conduzisse ao seu despejo.

A exposição de ROOF, que Mário Cruz inaugurou numa casa abandonada junto à Sé de Lisboa entre Abril e Junho, decorreu numa zona onde impera o alojamento local. “Nesse edifício eu recriei muitas das habitações improvisadas. Quem via as fotografias de pessoas que não tinham uma casa onde viver via, ao mesmo tempo, os turistas às janelas e os colchões a arejar nas varandas, à hora do check-out.”

“O poder político tem telhados de vidro, no que toca à questão da habitação, mas esse é partilhado. Nós, cidadãos, precisamos de começar a exigir muito mais às nossas autarquias, ao nosso Estado, que está a falhar permanentemente. Até porque, e é importante referir, muitos dos edifícios que eu vi abandonados eram públicos, património do Estado.”

Mário gostaria de ver a exposição noutros concelhos portugueses. “Sinto que se o trabalho fosse sobre a crise de habitação nas Filipinas seria mais fácil de colocá-lo em circulação. Seria um sinal muito positivo se, por exemplo, a Câmara Municipal do Porto ou outras câmaras olhassem para o projecto e percebessem que é importante mostrar, falar, discutir, para se arranjarem soluções.”

Acredita que ROOF é lançado na altura certa. “Agora, mais do que nunca, a habitação é uma preocupação dos portugueses. Em Lisboa e noutras regiões do país.” Até quando?

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