Ossos de animal esquartejado indicam chegada dos humanos há 21 mil anos à Argentina

Ossos de parente gigante dos tatus apresentam marcas de esquartejamento que são atribuídas à nossa espécie, o que indica a chegada mais cedo do que se pensava dos humanos ao Sul da América do Sul.

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Reconstituição artística de animal extinto (que é parente dos actuais tatus ) a ser esquartejado Damián Voglino/Museu de Ciencias Naturales A. Scasso/Província de Buenos Aires
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Ossos descobertos na Argentina de um parente gigante dos tatus, com marcas de corte que sugerem abate, indicam que os humanos estavam presentes no Sul da América do Sul há cerca de 21 mil anos, o que é mais cedo do que se pensava.

Os ossos eram de um grande mamífero herbívoro, do género Neosclerocalyptus, que pertencia a um grupo chamado ​gliptodontes” e que habitou as Américas durante mais de 30 milhões de anos antes de se extinguir no final da Idade do Gelo, há cerca de dez mil anos.

Os cientistas afirmaram que as marcas de corte nos ossos parecem ter sido feitas por pessoas que utilizaram ferramentas de pedra. Isto é um forte sinal da presença da nossa espécie, Homo sapiens, embora não tenham sido encontrados fósseis humanos no local, acrescentou a equipa de investigadores.

Os gliptodontes são parentes dos tatus actuais, embora muito maiores –​ algumas espécies eram tão grandes como um carro pequeno. Possuíam uma grande carapaça óssea que cobria grande parte do corpo –​ assemelhando-se a uma carapaça de tartaruga –, bem como uma armadura no topo da cabeça, uma cauda grande e forte e membros curtos.

O Neosclerocalyptus era um dos gliptodontes mais pequenos. O indivíduo deste estudo tinha cerca de 1,80 metros de comprimento e cerca de 300 quilos. As marcas nos ossos foram encontradas na pélvis, na cauda e na armadura do corpo.

“A localização destas marcas de corte é consistente com uma sequência de esquartejamento que tinha como alvo áreas com bastante carne, ou seja, as marcas de corte não foram distribuídas aleatoriamente, mas concentraram-se nos elementos esqueléticos rodeados de músculo, como a bacia e a cauda. Este é um padrão típico observado durante o processo de esquartejamento​”, explicou o antropólogo Miguel Delgado, da Universidade Nacional de La Plata (Argentina), e autor sénior do estudo publicado esta quarta-feira na revista Plos One.

A forma das marcas de corte é consistente com as marcas provocadas por lascas de pedra, acrescentou Miguel Delgado, referindo-se a um tipo de ferramentas líticas.

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Desenho do esqueleto do Neosclerocalyptus com as zonas com marcas de corte assinaladas a azul-claro Del Papa et al./Revista PLOS ONE

“Os únicos capazes de as fazer [estas marcas] eram os humanos”, realçou o antropólogo Mariano del Papa, da Universidade Nacional de La Plata, e o principal autor do estudo.

A cronologia do povoamento das Américas tem sido motivo de debate, com algumas descobertas recentes a indicarem que os humanos chegaram muito antes do que se pensava. O papel das pessoas na extinção de muitos mamíferos de grande porte nas Américas também tem sido objecto de controvérsia. Os fósseis de Neosclerocaliptos estão entre as provas mais antigas da interacção humana com estes grandes animais da Idade do Gelo.

As novas descobertas representam a prova mais antiga da presença do Homo sapiens e da interacção humana com animais de grande porte no Sul da América do Sul durante o auge da última Idade do Gelo, conhecida como o Último Máximo Glacial. É também uma das provas mais antigas da presença da nossa espécie em toda a América do Sul, destacaram os investigadores.

“Até recentemente, o modelo tradicional sugeria que os humanos modernos (Homo sapiens) entraram nas Américas há 16 mil anos, já que a maioria das provas arqueológicas é desse período. Desde há alguns anos têm-se, no entanto, encontrado novas provas que indicam uma presença humana anterior”, disse Miguel Delgado.

“Actualmente, sabemos que há provas fiáveis de há 23 mil anos no Brasil, mas vale a pena referir também que foram encontrados sítios do mesmo tempo na América do Norte com material datado entre 21 mil e 23 mil anos, e sítios ainda mais antigos na América Central datados entre 26 mil e 19 mil anos”, acrescentou Miguel Delgado.

Os ossos do Neosclerocalyptus foram descobertos em 2015 nas margens do rio Reconquista, perto da cidade de Merlo, na área metropolitana de Buenos Aires, e datam da época do Plistocénico. O método de datação por radiocarbono determinou que os fósseis tinham cerca de 21 mil anos.

Martin de Los Reyes, paleontólogo da Universidade Nacional de La Plata e um dos autores do estudo publicado na revista Plos One, realçou: “Esta seria a primeira prova de humanos na Argentina e no Cone Sul da América do Sul.”

“Estamos a mudar o paradigma tradicional que fala de um momento específico da chegada do homem às Américas”, acrescentou Miguel Delgado.