Cunha Rodrigues: “O país tem um problema com as escutas”
Ex-procurador-geral da República pede reflexão sobre recurso a escutas que considera terem-se generalizado pondo em causa o princípio da “proporcionalidade”.
O ex-procurador-geral da República José Narciso Cunha Rodrigues defende que o sucessor de Lucília Gago deve "ter mundo e bom senso" e lembra que os magistrados "não são ungidos pelo poder divino". Em entrevista ao programa Hora da Verdade, do PÚBLICO/Rádio Renascença, recusa teorias de "campanhas orquestradas" e pede reforma da justiça que devolva "confiança" aos cidadãos.
As últimas semanas ficaram marcadas por uma entrevista da procuradora-geral da República, Lucília Gago, à RTP. Também acha que existe uma campanha orquestrada contra Lucília Gago e contra o Ministério Público?
Em termos de comunicação social, não se pode falar de campanhas, muito menos orquestradas. Pode falar-se de outra figura, que é a agenda setting e é aquilo a que eu chamaria espiral de silêncio, em que até um certo momento ninguém fala de ninguém e a partir daí todos replicam as mesmas coisas. Eu vivi isso noutros tempos e senti como era realmente necessário saber alguma coisa de teorias da comunicação para explicar certos fenómenos.
E porque é que acha que isso acontece? Em relação, por exemplo, ao actual estado do Ministério Público e a Lucília Gago?
Porque há problemas, obviamente. Há factos que merecem ser levados até ao público e porque esta matéria é essencial para a democracia e, portanto, para a convivência e para a paz social.
O Ministério Público parece lidar mal com a crítica e com o escrutínio. A seu ver, o Ministério Público tem de ser escrutinado, ou não?
Sim, obviamente, e é. O primeiro escrutínio que é feito ao Ministério Público é pelos juízes. Depois, a comunicação social tem um papel também importante para comentar, para explicar e, por vezes, para criticar decisões que o Ministério Público tomou.
E o poder político ou os partidos não podem também criticar?
Podem. Podem tomar posições sobre intervenções, sobre o próprio papel do Ministério Público, sobre as reformas a fazer.
Tem havido uma ingerência política no trabalho do Ministério Público ou isso não está a acontecer?
Não, não há. A ingerência política é uma coisa que nós não podemos ver nas actuais circunstâncias. É evidente que os políticos têm um papel importante, logo por ser a Assembleia da República, que legisla sobre o Ministério Público e sobre a justiça. E é natural também que algumas decisões colidam com aquilo que é a opinião de agentes políticos. Mas todo este quadro resulta da lei.
Nos últimos anos, houve intervenções recorrentes do poder político no sentido de judicializar aspectos importantes da vida política e pública. Depois, quando a justiça intervém, os políticos acham que é uma intromissão na política. Mas ela resultou de leis que foram feitas pelos políticos e, nomeadamente, pela Assembleia da República. Os magistrados não têm de ficar melindrados ou susceptibilizados pelo facto de haver reformas que alteram as condições de trabalho e as funções das magistraturas.
Mas o que se verifica é exactamente isso: os magistrados no Ministério Público ficam muito melindrados cada vez que se fala em mudar alguma coisa.
Sabe que é difícil falar dos estados de alma. Os estados de alma dependem da pessoa. E há, naturalmente, da parte dos magistrados, um certo receio de que haja reformas que possam prejudicar a sua independência ou autonomia.
A seu ver, corremos esse risco?
Penso que não.
Mas o que tem sido proposto, por exemplo, são alterações ao funcionamento da hierarquia do Ministério Público. Isso não implica os magistrados terem algum melindre também sobre o que pode vir aí?
Essa pergunta é muito importante. Sabe porque é que há problemas na hierarquia? Foi publicada uma lei que deu como consequência este imbróglio em que estamos. A lei foi aprovada pela Assembleia da República.
Mas o senhor não concorda com essa lei, é isso?
Nessa parte não concordo. Porque a hierarquia deve ser reposta como deve ser. Neste momento, em rigor, não há o poder de dar instruções na base do Ministério Público.
A reforma que aí vier devia rever aquilo que foi legislado?
Quando essa lei foi publicada, eu considerei que era preciso rectificá-la imediatamente. Era preciso repor a lei anterior, que atribuía à hierarquia do Ministério Público, do topo até à base, poderes de dar instruções aos magistrados subordinados.
E é isso que tem também toldado um bocadinho o funcionamento do Ministério Público e a própria acção de Lucília Gago?
Não, não digo que seja isso. Mas também é isso. A procuradora-geral fez uma directiva para contornar o problema e o Sindicato de Magistrados do Ministério Público interpôs um recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que está no Supremo há anos.
Como é que é possível estarmos há tanto tempo à espera de uma clarificação?
Não devia ser possível.
O que é que falhou?
Falha uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo.
Lucília Gago termina o mandato no Outono. Qual o perfil ideal de um procurador-geral da República?
É evidente que um procurador-geral da República tem de ser tecnicamente muito competente e ter uma visão multicultural do direito, ter cultura, mundo e bom senso. Porque o bom senso deve ser uma das qualidades inatas de qualquer magistrado.
E tem notado falta de bom senso, é isso?
Sim, mas não é neste caso concreto. Tenho notado em todo o lado. Trabalhei 12 anos no Tribunal de Justiça em contacto com todos os países. E sempre houve decisões que podiam ser consideradas falta de senso. Os magistrados não são ungidos pelo poder divino. Fazem um curso de Direito, têm de ter um mestrado. E trabalham numa área em que o erro é comum. Porque é que há recursos? É para corrigir os erros.
Voltando à sucessão de Lucília Gago, o processo de escolha do PGR devia ser alterado, ter um cunho menos político?
Não. O procurador-geral da República deve ter uma legitimidade política. É o único membro das magistraturas que tem uma legitimidade política. Deve ter a confiança política do Presidente da República e do Governo.
Num processo da Start Campus houve um recurso de medidas de coacção em que o Ministério Público apresentou um documento anexo com duas mil páginas com recortes de jornais. Ou seja, é o Ministério Público que utiliza as notícias que foram feitas com base em violação de segredo de justiça a seu favor. Acha que o Ministério Público é que está a alimentar algumas notícias para depois fazer pressão junto dos juízes?
Não, não acho isso. Mas eu não juntaria extractos de jornais a um processo. Até porque as notícias e os jornais não nascem nas redacções. Nascem porque há pessoas que levaram às redacções os factos. Muitas vezes são pessoas interessadas num processo. Portanto, é uma maneira de pressionar a justiça.
Nos últimos meses ficámos também a saber que há políticos escutados pela justiça há quatro anos. Diria que o país tem um problema com escutas que nunca conseguiu resolver e que se normalizou?
O país tem um problema com as escutas. Os meios tecnológicos evoluíram de tal maneira que os agentes da justiça se sentiram atraídos para, numa linguagem comum, investigar sentados.
A ideia que dá é que muitos processos existem só com base em escutas.
Admito isso. As escutas são um meio excepcional de investigação. A escuta é um meio de adquirir meios de prova. A jurisprudência agora entende que ele próprio é uma prova. Não era essa a finalidade inicial. Mas o que acontece com as escutas é que elas têm a tendência para se expandir no tempo e no espaço. Deixam de ser escutadas só as pessoas que têm que ver com o processo, mas a família, os amigos e pessoas que não têm nada que ver com o assunto. Penso é uma matéria que hoje lesa direitos fundamentais das pessoas e que devia ser analisada em profundidade.
Há um excesso por parte dos próprios actores do sistema de justiça? Do Ministério Público e dos juízes?
Sim. É evidente que só pode haver escutas com autorização dos juízes e geralmente com promoção do Ministério Público. Todos os meios intrusivos da vida privada e da autonomia individual devem ser usados com parcimónia e segundo o princípio da proporcionalidade. No meu tempo havia muito menos escutas porque não havia meios para fazer escutas. Eu sempre fui muito prudente nessa área porque a escuta é um meio invasivo, intrusivo da vida privada e da própria capacidade de as pessoas agirem e interagirem sem medo e sem receio.
O procurador-geral da República deve passar essa mensagem de que não se deve exagerar?
O procurador-geral da República tem exactamente a função de instruir, de dirigir a magistratura do Ministério Público e de actuar quanto aos meios que podem ser utilizados ou devem ser utilizados. Nem todos os meios que são legais podem ser utilizados de uma forma que eu diria não proporcional.
Sobre este caso, trata-se de João Galamba, do ex-ministro que foi alvo de escutas durante quatro anos e o que o país sabe é que a procuradora-geral da República acha normal e acha até que podia ser mais tempo.
Sim, mas a senhora procuradora-geral tem a opinião dela. A vida política tem uma exposição muito maior. E, portanto, para se tornar eficaz e livre de pressões, não deve estar sujeita, por qualquer motivo mínimo, a esse tipo de actuação intrusiva de escutas, muito menos durante anos.
Os membros do Governo são ou não pessoas iguais às outras?
São iguais como pessoas, não são iguais como cidadãos. Exercem funções públicas, funções de muito melindre que têm também de ser protegidas, num sentido que não podem gerir a coisa pública com uma pressão constante sobre eles e com ameaças de que a vida pessoal e familiar venha para a vida, para a praça pública.
Em 1994, foi encontrado um microfone no seu gabinete, na Procuradoria-Geral da República. Nunca se percebeu ao certo o que é que aconteceu. Diria que não se aprendeu nada com o que aconteceu nessa altura?
Essa altura é uma altura pré-histórica. Não havia os meios de invasão que há hoje. O próprio microfone que foi encontrado era um microfone de rádio transformado num aparelho de escuta. Mas devíamos ter aprendido. Todos os titulares de poder estão sujeitos a essas manobras, e que acontecem em muito maior grau porque há novas tecnologias que são eficazes e potentes para isso.
A comissão de inquérito ao caso das gémeas está a pedir o acesso a comunicações privadas entre Marcelo de Rebelo de Sousa, o seu filho e também Lacerda Sales. Isso é razoável?
Não sei, não quero intrometer-me nos poderes da Assembleia. Mas a Assembleia da República, quando investiga, deve agir com os mesmos caracteres de competência técnica, de bom senso, que existem para os magistrados. E espero que isso esteja a ser feito pela Assembleia.
Sobre o Manifesto dos 50, já disse concordar com algumas das ideias para reformar a justiça incluídas no manifesto, mas que não aceitaria subscrever o documento porque acha que quem o assina está a exagerar nas críticas ao sistema. Qual é a parte com que concorda e com que discorda?
Concordo com o primeiro comunicado que foi feito, mas depois houve uma fuga para a frente, criando aquilo a que chamei uma espécie de coro da tragédia grega que comenta tudo aquilo que está a acontecer. E não é esse o papel das pessoas que na democracia querem construir. Acho que a grande solução que falta implementar é política e deve ser implementada através de leis.
É claro que há um problema muito grave no nosso país. E não devemos misturar tudo. A situação dos tribunais administrativos e fiscais é totalmente intolerável. Ainda há dias estive com um advogado que tem um processo nesses tribunais há 23 anos. É totalmente intolerável. E deve ser feita imediatamente alguma coisa para melhorar o sistema.
A meu ver, a lei foi mal feita, foi mal executada e estamos agora, tantos anos depois, numa situação que é perfeitamente intolerável e que viola gravemente os direitos fundamentais das pessoas.
O Governo já veio dizer que está preparado para uma consensualização sobre uma reforma da justiça. Que prioridades devia assumir?
Há reformas da justiça de primeiro grau que são questões de logística, questões orçamentais, questões de intendência para os tribunais funcionarem, isto é, agentes em número suficiente, instalações adequadas e coordenação da gestão. A gestão hoje é multipolar. Está no Conselho Superior de Magistratura, está no Ministério de Justiça, está no Conselho Superior do Ministério Público.
Mas, em segundo lugar, há que tecnicamente reajustar leis que perderam a sua eficácia e que têm de ser vistas uma a uma.
E depois, em terceiro lugar, mas talvez a mais importante, é necessário prestar atenção a esta sociedade que evoluiu. Já não é a sociedade de há 50 anos. Agora, não pensem que as coisas vão mudar a curto prazo. Noutros países, a situação é praticamente a mesma.
O grande poder que tem a magistratura, e particularmente os juízes, é também uma grande responsabilidade e uma capacidade de explicar publicamente porque é que foi decidido de uma maneira, não de outra.
A justiça está em crise neste momento?
Não está em crise. Das actividades humanas, a justiça é, porventura, uma das mais incertas. Porque não há um juiz que descobre os factos. São as partes, são as testemunhas. E se as testemunhas não têm um compromisso ontológico com a verdade, elas vão mentir no tribunal. E, portanto, há uma incerteza que é natural. Qual é a maneira de absorver a incerteza? É confiança. É necessário repor a confiança. E isso é o que, de mais urgente, temos de fazer. Quando todos os dias aparecem nos jornais agentes políticos, agentes empresariais, a criticar a justiça, isso gera um efeito de escândalo e de perturbação que não ajuda a confiança.