Como grelhar peixe? Os cozinheiros do “melhor peixe do mundo” respondem
As brasas, o sal, a grelha ideal e o momento de virar o peixe — tudo inquietações para quem não dedica a vida à arte do peixe grelhado. Pedimos dicas aos mestres assadores de Matosinhos.
Nas conversas com os cozinheiros de Matosinhos paira a curiosa ideia de que o peixe grelhado é uma moda. Se é verdade, veio para ficar. Na cidade há uma alta densidade de restaurantes — 450 em 62 quilómetros quadrados — e na Rua Heróis de França, nas costas da lota por onde o peixe entra em terra, os grelhadores estão em todos os quarteirões. “São o ex-líbris da rua”, diz Valentim Santos, o homem que reclama o feito de ter aqui posto o primeiro grelhador, no início dos anos de 1990, há 32 anos. É por aqui que procuramos as respostas definitivas para um dilema de Verão: quais as dicas para grelhar peixe como um profissional?
Foi mais tarde que a moda pegou a sério, diz Palmira Moreira, cozinheira e dona do Salta o Muro, uns números acima na mesma Rua Heróis de França. No início dos anos de 1990 servia tachadas de pratos apurados e pesados e, com o andar da década e a virada do milénio, o povo começou a ver que cada um é o que come: quis ser melhor, comendo o melhor peixe do mundo, como lhe chama o Turismo de Matosinhos, que criou a marca World’s Best Fish. A preocupação era a saúde e por muito arroz de polvo que fizesse, os clientes pediam peixe grelhado.
Aproveitou então um antigo forno com chapa das Fábricas Portugal que tinha na cozinha. “Quando aparecem espanhóis explico-lhes que é à la plancha”, ri-se António Moreira, que está na sala a aconselhar o melhor do dia. Palmira tornou-se mestre na arte de grelhar peixe e ninguém acredita que o faz na chapa, diz.
A chapa deve ser grossa para manter a temperatura sem grandes oscilações, não estando muito intensa. O mais difícil de esclarecer com Palmira Moreira é a altura ideal para virar o peixe. “Quando comecei, às vezes picava o peixe ao centro, para ver se já estava cozinhado. Agora, de ter tanta prática, já sei quando virar. Nem consigo explicar ao certo como se vê que está pronto”, diz Palmira.
Com o peixe escalado é mais certo: se o lume está brando, ao ganhar a mínima cor acastanhada na carne, está na altura de virar. No entanto, o que a maioria deseja é um peixe grelhado inteiro e suculento. Aí, não há outra maneira: os novatos têm de olhar para o relógio.
Cada minuto conta
Valentim Santos começa a fazer as brasas às 11 horas da manhã, para grelhar ao meio-dia. Está à porta do São Valentim, em frente a uma grelha encastrada na estrutura da esplanada, com todo o destaque que esta confecção merece. Fundou quatro restaurantes na Rua Heróis de França, todos de peixe grelhado: o Tito 1 e Tito 2, o Valentim e o São Valentim, o único que se mantém seu. “E já está na altura de começar a descansar”, comenta.
Aos 75 anos, faz as brasas duas vezes por dia, para almoços e jantares, e vai formando cozinheiros nesta arte. Há, no entanto, assuntos em que só ele toca. A lula é um deles. “Tem de ter um toque especial, não pode estar ao mesmo nível dos outros peixes [na grelha]. Como tem de se abrir para limpar, fica muito fina. Para não ficar borrachosa, aproximo-a ao máximo das brasas para lhe dar um choque. Em quatro minutos tenho a lula grelhada.”
Valentim continua a converter em minutos aquilo que já sabe intuitivamente: às sardinhas bastam uns sete no total; os peixes de posta mais alta e carne mais consistente podem chegar a levar uns 20 minutos a grelhar, porque é importante que a confecção seja lenta — bem afastada das brasas ou com pouco calor; robalos e douradas são mais rápidos — uns dez minutos, diz, frisando que devem ir à grelha inteiros, para não ficarem secos.
“O peixe escalado é mais rápido, mas perde muito sabor. Quando um cliente me pede um peixe grelhado inteiro vejo logo que percebe de peixe”, afirma Valentim. Sem ver o que se passa no interior do bicho, a noção do tempo é essencial para o virar: só há uma hipótese. “Quando é carne, vai-se virando até estar boa. No peixe a dificuldade é só o virar uma vez, na altura certa, para não o danificar”, explica.
Um pedaço de mar assado eximiamente é, afinal, um peixe íntegro, que não se parte em dois e mantém a pele intacta — bem escamosa, se falamos de sardinhas — a proteger a carne do fogo. Nisto, tentar facilitar o movimento do peixe com uma daquelas grelhas que o entalam, só vai acabar por dificultar. “Desculpe dizer assim, mas essas grelhas espremem o peixe”, sentencia.
Dica final: asse pimentos
Tudo o que acontece ao peixe durante o processo interessa — e não é pouco — mas o que está a acontecer lá em baixo, nas brasas, não é menos importante. As dicas de Valentim resumem-se a uma brasa de carvão de madeira bem viva, sem chama, e feita em boa quantidade logo de início, para que não se tenha de acrescentar carvão ao longo do processo.
Ao aquecer, os pedaços de carvão libertam gases e aromas que não se querem em contacto com o peixe. Esta é também a razão para não usar acendalhas, que cheiram a petróleo quando se incendeiam. Em vez disto, Valentim inflama o carvão incendiando caixas de ovos — provavelmente as dos ovos do belíssimo leite-creme do São Valentim.
Com tempo para deixar cada pedaço de carvão aquecer — uma hora para 30 quilos de carvão — as brasas estão no seu auge, provavelmente com alguma chama. Para as pôr no sítio, entram os pimentos, que além de darem uma ajuda, vão dar também uma salada. Postos directamente nas brasas, vão libertando água e vapor, “vão afagando o lume”, diz Valentim.
Com as brasas prontas e os pimentos completamente pretos (basta tirar a pele debaixo de água), o primeiro peixe deve ser feito na grelha mais alta possível, sem chamuscar. Ao longo do ritual, e conforme as brasas perdem força, a grelha pode aproximar-se do calor, sempre com o sal posto na hora, porque “a água do mar já lhes dá sabor”, explica o mestre: “O grão de sal é só para estalar na boca.” “Aos peixes mais gordos, ponho às vezes uma gotinha de limão antes de os grelhar, para cortar um bocadinho a gordura”, acrescenta.
As dificuldades da grelha parecem desvendadas, mas Valentim chama a conveniente humildade: “Isto não tem ciência ou regras exactas, aprende-se com a prática. Às vezes estou a falar com alguém longe da grelha e, não sei explicar porquê, sai-me ‘espera aí que o peixe está a chamar por mim’.” Uma última dica, então: não deixe o peixe a falar sozinho.