Maior colónia do mundo da gaivota-de-audouin está nas ilhas barreira da Ria Formosa
Número de casais subiu de 2663 em 2019 para 7292 em 2024. Com a população estabilizada na ilha Deserta, foi a nova colónia da Culatra que mais cresceu, desde que surgiu, há dois anos.
São mais pequenas do que as gaivotas-de-patas-amarelas, têm-nas longas e cinzentas (as patas) e um bico vermelho intenso que é a sua principal marca distintiva. O seu estado de conservação degradou-se nas últimas décadas, passando, no ano 2000, do estatuto de “pouco preocupante” para “vulnerável”, em que se encontra ainda. Mas as gaivotas-de-audouin parecem gostar das Ilhas Barreira, em plena Ria Formosa, no Algarve: de uma população inexistente no início do século passou para mais de sete mil casais, neste Verão. As acções do projecto Life Ilhas Barreiras, no terreno desde 2019, deram uma grande ajuda.
O entusiasmo na voz de Joana Andrade não se esconde. Desde 2019 que a bióloga da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) coordena o projecto Life Ilhas Barreira, que conta entre as suas principais acções com algumas dirigidas à conservação desta espécie migratória, que tem na ilha Deserta (ou Barreta), e agora também na Culatra, os únicos locais de nidificação em Portugal. Com o período de implementação inicialmente previsto até final de 2023, o projecto foi prolongado até ao final deste ano, podendo assim incluir o plano de expansão da Zona de Protecção Especial (ZPE) da Ria Formosa para o mar, o que permitirá proteger os espaços de alimentação desta e de outras espécies de aves marinhas.
Mais uma medida que permitirá que a conservação da gaivota-de-audouin (Larus audouinii) continue a ser aquilo que se tem revelado nos últimos anos: um sucesso. Sem presença registada no país antes do início do século, começou por existir uma pequena colónia em Castro Marim, que não vingou.
Alguns anos depois foram detectados os primeiros casais na ilha Deserta, mas não eram mais do que umas poucas centenas. Aliás, em 2014, o número de casais registados rondava os 900 e no ano de arranque do projecto Life Ilhas Barreira, em 2019, foram contabilizados 2663 ninhos. O grande salto aconteceu, precisamente, durante o desenvolvimento do projecto com financiamento europeu, chegando, este ano, aos 7292 ninhos. “A nível mundial estima-se que existam entre 16 mil a 21 mil casais. O que quer dizer que temos entre um terço a quase metade da população a nidificar cá, tornando a nossa colónia a maior do mundo”, diz Joana Andrade.
Alguns factores naturais da ilha Deserta apresentam-se como importantes para essa expansão — a Deserta não é habitada, só tem visitantes durante o dia, e, depois da remoção dos gatos que por lá existiam (uma das actividades do Life), os predadores praticamente desapareceram. “Acaba por ser um sítio mais tranquilo, mais seguro”, diz a bióloga da SPEA. Mas isso podia não ser suficiente, como demonstra o crescimento mais modesto da espécie antes do arranque do projecto Life.
Com a chegada das equipas envolvidas no Life — um projecto coordenado em conjunto pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e pelo MARE/Universidade de Coimbra, com o apoio da SPEA —, começaram a ser aplicadas algumas acções especialmente dedicadas a garantir que a espécie encontrava naquele território um local propício à nidificação.
Os gatos que por lá andavam foram removidos; foram colocadas armadilhas perto das áreas onde a colónia se instalava, para manter afastados os roedores que ainda ali existem e que também causam alguns danos a ovos e crias; e colocou-se em curso um plano de remoção de plantas invasoras, concluído com sucesso no ano passado, e que permitiu recuperar a vegetação típica das dunas. “O que também é favorável para as colónias se estabelecerem”, diz Joana Andrade.
Além disso, houve um investimento em informação e sensibilização junto de operadores turísticos e de recuperação da sinalética no local — como aquela que avisa os visitantes para não abandonarem os trilhos que atravessam a Deserta.
Culatra traz novos desafios
O resultado foi o crescimento da população de gaivotas-de-audouin na ilha Deserta que, desde o ano passado, “está estabilizada nos cerca de cinco mil casais”, refere a responsável da SPEA. E o crescimento da população até essa dimensão poderá ter contribuído para que a espécie tenha, entretanto, escolhido outra área para nidificar.
“A população da Deserta está estabilizada, a que está a aumentar é a da colónia da ilha da Culatra, que é recente. Só há cerca de dois anos é que começaram a instalar-se ali, mas eram apenas alguns casais, poucochinho. Este ano essa colónia chegou aos dois mil casais”, diz.
Joana Andrade diz não ter uma resposta fechada para a razão de as gaivotas se terem expandido para a Culatra, mas admite que a dimensão dos três núcleos existentes na ilha Deserta possa ter contribuído. O que sabe é que esta localização traz um conjunto de novos desafios, que não permitem antever como será a evolução deste recente local de nidificação.
“É bom elas estarem a aumentar o seu território e não estarem centralizadas num único local, mas a Culatra é completamente diferente, porque tem vários problemas. Teremos de tentar monitorizar no futuro o sucesso reprodutor, porque há ali muitos factores de perturbação”, afirma. Ou seja, casas e pessoas, cães e gatos.
O fim do projecto Life, no final deste ano, não significará o desaparecimento de acções relacionadas com a conservação da espécie. “Estes projectos implicam sempre que quando terminam tem de haver um plano de acção, financiado, que os parceiros se comprometem a aplicar nos cinco anos seguintes”, explica Joana Andrade.
Por isso, a monitorização irá continuar, dentro do possível (não só das aves mas também das dunas, para garantir que a vegetação exótica se mantém ausente). E o resto poderá vir com a revisão e actualização do Plano de Acção para a gaivota-de-audouin, a nível mundial, que está em curso.
Quando foi desenhado, em 1996, o plano incluía vários países da zona do Mediterrâneo para onde a espécie se deslocava durante o período de reprodução para nidificar. Mas Portugal não fazia parte dessa lista, porque, nessa altura, ainda não havia qualquer colónia no país. Contudo, na revisão do plano, referente ao período entre 2011 e 2023, tanto Portugal como a Croácia passaram a estar incluídos, por serem novos locais de nidificação destas pequenas gaivotas.
O sucesso da espécie por cá está plasmado na avaliação feita daquele plano: é o país com pontuação mais elevada, ao nível da implementação de medidas de protecção, seguido de Espanha. Mas os desafios, como já se viu, não acabaram. E a SPEA avisa que a criação de um plano nacional para a espécie é essencial.
Já as perguntas sobre o futuro são muitas. A colónia da Culatra vai manter-se ou crescer? As gaivotas irão escolher novos pontos de nidificação? E os três núcleos da Deserta ainda podem crescer mais, sem que a sua presença se torne uma potencial ameaça para outras espécies ou mesmo para o sistema dunar?
Questões que têm razão de ser. A população de gaivotas-de-patas-amarelas (Larus michahellis), que vive na ilha de Deserta, diminuiu nos últimos anos — de 1366 casais em 2018 passou para apenas 618 em 2024 — e não se pode excluir que o crescimento das suas vizinhas não tenha uma influência nesta evolução.
Já em relação às dunas, a situação parece mais clara. “Uma das coisas que temos estado a avaliar no projecto é o impacto das colónias nas dunas, que também são um habitat prioritário para as ilhas barreira manterem a sua funcionalidade. O que temos visto é que, apesar da dimensão das colónias de gaivotas-de-audouin, e de terem algum impacto, a vegetação recupera, quando elas se vão embora. Já na área das gaivotas-de-patas-amarelas as dunas estão com um factor de degradação bastante elevado, até porque elas continuam por lá [no Inverno]. Mas, como esta população tem estado a diminuir, a regeneração tem sido mais rápida”, diz Joana Andrade.
A poucos meses de partirem para África, onde irão passar o Inverno, as gaivotas-de-audouin continuam, por enquanto, a ser os habitantes mais abundantes da ilha Deserta. Mas com uma espécie vulnerável nunca nada pode ser dado como garantido, por isso, se for passear por ali, não se esqueça: não saia dos trilhos e, se levar um animal de estimação, como um cão, não permita que ele o faça também. As aves, as dunas e a restante fauna e flora que as povoam contam com isso para prosperar.