Primeiro gato-bravo identificado no vale do Côa em “mais de 30 anos”

Felino em risco de extinção regional visto em terreno gerido pela Rewilding Portugal. “O gato-bravo está a precisar de projectos de monitorização sérios”, diz Pedro Ribeiro, biólogo da organização.

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Fotografia de gato-bravo no paul de Toirões Rewilding Portugal
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Durante o último Inverno, o paul dos Toirões teve como habitante especial um gato-bravo, o primeiro visto naquela região do vale do Côa, na Beira Alta, “em mais de 30 anos”, de acordo com um comunicado da Rewilding Portugal divulgado esta quinta-feira. Foi a primeira vez que se identificou um gato-bravo num dos territórios daquela organização.

Com um estatuto de conservação a nível nacional “em perigo”, o segundo mais perigoso para as espécies em risco de extinção, o gato-bravo (Felis silvestris) é o único felino selvagem nativo de Portugal além do lince-ibérico. Mas a hibridação com o gato doméstico (Felis catus), a perda de habitat e a redução de presas, como o coelho, tem vindo a fazer emagrecer a população, cujo número de indivíduos maduros pode ser menor do que 100, de acordo com o Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental publicado em 2023.

“É um predador, tem funções muito importantes de manter um número baixo de presas – já que come ratos, ratinhos, coelhos. Mas é uma espécie que está a ir pelo mesmo caminho que o lince-ibérico [que a nível nacional esteve praticamente extinto no virar do século], explica Pedro Ribeiro, técnico da Rewilding Portugal, ao PÚBLICO.

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Fotografia nocturna do gato-bravo encontrado no paul de Toirões Rewilding Portugal

O biólogo foi quem detectou o felino em fotografias obtidas por câmaras fotográficas que, como armadilhas, se activam com a presença de animais que passam nas redondezas e captam as suas imagens. As câmaras estavam no paul de Toirões, um terreno de 300 hectares gerido pela Rewilding Portugal, que fica uns dez quilómetros a sul de Vilar Formoso, no distrito da Guarda.

O paul de Toirões faz parte de vários terrenos em que a Rewilding Portugal está a trabalhar, ao longo do vale do rio Côa, para serem renaturalizados. O objectivo é tornar estes pontos naturais e com o mínimo de intervenção humana para que a vida selvagem se possa estabelecer aqui e, deste modo, reconquistar as dinâmicas ecológicas, como a migração de herbívoros, ao longo daquele vale.

Nesse contexto, o gato-bravo será mais uma peça dos ecossistemas da Península Ibérica, actualmente muito erodidos pelas actividades humanas. Por isso a boa surpresa. “Foi muito entusiasmante, foi a primeira vez que consegui apanhar um bicho destes nas câmaras. De repente vi um gato, que me pareceu o gato-bravo”, descreve Pedro Ribeiro. O indivíduo foi fotografado tanto à noite como de dia durante os meses frios da temporada 2023-2024.

Os gatos-bravos são conhecidos pela sua pelagem, com riscas escuras distintivas, e por terem um porte maior do que os gatos domésticos. “Têm uma cauda mais curta e grossa e apresentam cinco a sete barras grossas na cauda. Têm uma lista preta nas costas, do pescoço até à ponta da cauda, e riscas notórias na parte de cima do pescoço”, descreve o biólogo. Além disso, os gatos-bravos têm os olhos verdes e as vibrissas – os bigodes – brancas, compridas e para baixo, mais compridas do que as dos seus parentes domesticados.

No entanto, a partir de fotografias é difícil ter a certeza de que se está perante um gato-bravo. Assim, o passo seguinte foi procurar excrementos na região onde o felino foi fotografado para se fazer uma análise genética. A equipa enviou as amostras encontradas para o grupo de Genética de Conservação e Gestão da Vida Selvagem, coordenado pelo investigador Paulo Célio Alves, que pertence ao instituto Cibio/Biopolis, da Universidade do Porto. “A confirmação demorou dois meses, ficámos supercontentes”, admite Pedro Ribeiro. “Mostra que o trabalho que estamos a fazer” já está a resultar no “aparecimento de espécies tão importantes”.

O problema do gato doméstico

O território do gato-bravo estende-se da Península Ibérica até à região da Geórgia e da Arménia. A nível global, este felino não está em risco de extinção. Mas em Portugal continental, nos últimos 30 anos, as bolsas mais importantes deste predador situam-se apenas no Norte, junto à fronteira com Espanha, e na região do Guadiana.

Na bacia hidrológica do Côa, os registos existentes são apenas na serra da Malcata, e são escassos. “O número de avistamentos baixou bastante, mas também o nível de monitorização. Desde os anos 1990, os registos têm diminuído bastante”, diz Pedro Ribeiro, falando a nível nacional. “O gato-bravo está a precisar de projectos de monitorização sérios, para saber como está no nosso país, e depois deverá precisar de alguns projectos de conservação dirigidos, como no caso do lince.”

Além da perda de habitat e da diminuição dos coelhos, a competição e a hibridização com o gato doméstico são problemas para o gato-bravo. O gato doméstico alimenta-se com a ajuda dos humanos e, ao mesmo tempo, é um predador de muitos animais, sem necessitar propriamente deste tipo de caça para a sobrevivência. Por isso, tem um impacto ecológico e na biodiversidade importante, e compete pelos recursos do gato-bravo, que, por sua vez, está dependente da caça que faz, não caçando para lá do necessário.

Por outro lado, o território do gato doméstico pode alargar-se muito além dos limites das povoações humanas. “Encontram-se gatos domésticos a muitos quilómetros de distância das aldeias”, refere Pedro Ribeiro, que defende que estes animais devem circunscrever-se às casas, não devem ser abandonados, e aqueles que estão perdidos devem ser recolhidos, esterilizados e adoptados.

A esterilização é muito importante para travar o cruzamento entre gatos domésticos e gatos-bravos, diminuindo a hibridização para que os gatos-bravos não percam a sua identidade genética. “A hibridização faz com que se perca riqueza genética da espécie e as características naturais que fazem com que seja um predador diferente dos outros”, remata o biólogo.

A análise genética que foi feita não determinou a quantidade de hibridação do felino, nem sequer se era macho ou fêmea, embora os técnicos do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas tenham dito a Pedro Ribeiro que poderia ser uma fêmea juvenil. “Pelas fotografias, não tem um grande porte”​​, explica, acrescentando que o animal estaria na fase de dispersão, quando procura um novo território para viver. Embora o biólogo não saiba de onde é que o animal veio, é provável que tenha origem numa colónia de Espanha, já que as populações em Portugal são diminutas.

Quanto ao destino do gato-bravo, o técnico diz que é possível que o animal continue no paul dos Toirões ou nas redondezas. Um dos objectivos da Rewilding para os lugares que gere é manter a tranquilidade destes territórios, uma característica importante para muitos animais, incluindo aquele predador. “​Em zonas que não tenham o nível de tranquilidade que é preciso, os animais não ficam lá”, afirma Pedro Ribeiro. “Podem passar, mas vão-se embora.”

Notícia corrigida às 13h22 de 22 de Julho de 2024: o gato-bravo e o lince-ibérico são nativos em Portugal e não endémicos, como escrito anteriormente, já que não habitam exclusivamente Portugal.