Yupumá: um convite à alegria e à partilha vindo da Amazónia

Documentário realizado pela antropóloga Verónica Castro em colaboração com Kawá Huni Kuin fala de um povo indígena do Acre, Brasil. “No fim, está a alegria.” A estreia em Portugal é esta quinta-feira.

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A antropóloga e documentarista Veronica Castro, com Kawá Huni Kuni, protagonista e colaborador do filme Yupumá Nuno Ferreira Santos
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Entra-se na floresta de canoa, que avança pela água do rio Jordão, cor de chá com leite. Estamos na Amazónia brasileira, mas pertinho da fronteira com o Peru, no estado do Acre. Ouvem-se os sons da floresta, as aves, a corrente do rio. Vamos aprender a fazer yupumá, a proposta da antropóloga mexicana radicada em Portugal Verónica Castro e de Kawá Huni Kuin.

“Yupumá não tem tradução, nem em português, nem em inglês, nem em espanhol. Vou só dizer que yupumá é um conceito de experiência”, adianta Verónica Castro, antropóloga visual e cineasta, que passou 18 meses em território Huni Kuin, no Alto Rio Jordão, para fazer o documentário Yupumá, que se estreia esta semana nas salas portuguesas, e a sua tese de doutoramento na Universidade de Manchester, no Reino Unido. Os Huni Kuin – “os verdadeiros humanos”, em Hantxa Kuin, a sua língua – são a população indígena mais numerosa do Acre, com cerca de 14 mil indivíduos.

Kawá Huni Kuin foi, ao mesmo tempo, o colaborador imprescindível para Verónica Castro realizar Yupumá e também o fio condutor através do qual a antropóloga traça a descoberta do conceito de yupumá na aldeia de Nova Fortaleza, onde só se chega de canoa, ao longo do rio que vemos logo no início do filme.

Haux, haux”, diz Kawá, com a saudação comum dos Huni Kuin, apresentando-se: “Eu sou Kawá, do Acre, do povo Huni Kuin, moro no Rio Jordão”. Está em Lisboa, para o lançamento do documentário e para dar a conhecer a cultura do seu povo – fez uma apresentação na Casa Independente, junto com a sua irmã mais nova Bimi, ambos vestidos com roupas tradicionais, na qual cantaram, dançaram, contaram histórias tradicionais.

A viagem à Europa foi uma ideia que começou com um sonho. E é pelas suas palavras que começamos a entender o que é yupumá.

“Por exemplo: se eu pela primeira vez vou à caça, tenho de trazer anta [tapir] ou veado, para toda a comunidade ficar feliz. A tradição do nosso povo é que para fazer yupumá uma coisa tem de acontecer para toda a gente, para ficarem todos felizes. Então, se você trouxer [caça] pela primeira vez, toda a vez que você for à caça, vai encontrar algum animal bem grande", contou.

Este é um pormenor muito importante, diz Verónica Castro: “O sucesso de uma pessoa é o sucesso de uma comunidade. Ele não vai ficar em casa comendo o veado sozinho! Yupumá é o benefício para todos, a alegria é de todos. A alegria é contagiosa.”

Todos os membros da sociedade Huni Kuin passam pela experiência de yupumá. “Uma pessoa não faz nada sozinha na floresta. Ali vive-se, verdadeiramente, uma interdependência. E é isso que dá força às pessoas, saberem que não estão sozinhas, mesmo nas suas tarefas básicas.”

“Eu tinha sempre crianças à minha volta, mostrando-me como andar na floresta. ‘Aqui tem formiga, esta pica, esta não pica, esta é muito grande, pisa este lado, não pisa ali, há serpente ali’”, recorda.

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Casal Huni Kuin no filme Yupumá Yupumá

A comunidade Huni Kuin ajudou-a a fazer o filme. “Eu estava sozinha, no sentido em que era a única investigadora não indígena a viver ali. Então, como é que ia filmar? As pessoas à minha volta tinham de aprender como utilizar a câmara, como gravar som”, explica Castro. “Então tive momentos em que o meu gravador de som tinha sete anos. As crianças são muito perspicazes e muito curiosas, querem ajudar e fazer bem.”

Foi uma investigação com base na prática, e também uma colaboração. “Uma co-criação de um filme”, sublinha. Na qual Kawá se tornou imprescindível: “Não só porque, através dele, as comunidades me aceitavam e tinham confiança em mim, mas também porque ele estava pronto para aprender como se faz um filme.”

Kawá ajudou a filmar, a montar, e foi fundamental na tradução e legendagem da língua Hantxa Kuin. “Traduzi para português e para inglês. Mas tive de falar com os meus parentes, os mais velhos, para traduzir palavras que eu não entendia, mesmo na minha língua”, recorda.

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Kawá Huni Kuin, com um cocar e pinturas tradicionais, numa apresentação da sua cultura feita em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Filosofia amazónica

Yupumá não é a arrogância de achar que se faz sempre bem à primeira. Se não resultar na primeira tentativa, então é preciso passar por um ritual, uma dieta, uma purificação. “Se você não fez yupumá, então tem de desmontar aquela coisa e retornar, para poder fazer como se fosse pela primeira vez” – e bem, para que a partir daí tenha sempre sucesso, explica Kawá.

A alegria está sempre no fim desta experiência, sublinha a antropóloga. “A alegria não só de ter sucesso, mas também de ter sempre a janela aberta para ter sucesso”, diz. “São ideias que nascem nas comunidades indígenas da Amazónia e um contrapeso à convicção de que a filosofia só nasce na Europa.”

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Verónica Castro em primeiro plano, com Kawá Huni Kuin e a sua irma Bimi, numa apresentação sobre a sua cultura em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Este conceito de yupumá pode ser útil para quem não é da floresta, sugere Verónica Castro. “Se falhar, pode passar por um ritual, para ter outra oportunidade de fazer como se fosse a primeira vez”. Mas qual ritual? “Não vou ser eu a decidir os rituais para toda a gente. Cada um terá de escolher o seu. Mas se praticarmos o nosso ritual, seja qual for, para fazer yupumá, que nos levará para um estado de alegria… porque não?”

O documentário dá-nos a conhecer o pajé da aldeia (sacerdote, curandeiro, conhecedor de como comunicar com o grande espírito Yuxibu, algo que envolve o consumo de ayahuasca). Vemos as mulheres apanhar caranguejos na água, as redes para apanhar peixe, a elaboração de um belo cocar [adorno usado na cabeça por muitas etnias indígenas americanas] de penas, que no fim é abençoado pelo pajé… músicas com um ritmo encantatório, que mandam a tempestade embora. E também vemos como as penas de um papagaio morto vão sendo arrancadas para fazer talvez outro cocar. “Se você quiser aprender a língua indígena, vai ter de aprender com a memória desse papagaio”, ouve-se alguém dizer.

“O que as pessoas podem ver [no filme] não é só cantar, não é só usar cocar, não é só pintar, tudo aquilo tem significado. Através da tradição Huni Kuin, estamos aprendendo sobre nós mesmos, porque somos da natureza. E toda a humanidade vem da natureza”, sublinha Kawá.

O sonho da Europa

No filme, vemos Kawá passar pelos vários passos de um ritual, antes de partir para Inglaterra, com Verónica. Isso inclui cobrir o corpo com a tinta negra de um fruto, a recolha das secreções do muito verde sapo kambô (Phyllomedusa bicolor), raspando o líquido que escorre pelas suas finas perninhas esticadas, “baptizar a língua” com malagueta (tudo acabará com um grande vómito).

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Bimi Huni Kuin, irmã mais nova de Kawá, fotografada em Lisboa, também com as vestes tradicionais do seu povo Nuno Ferreira Santos

Mas como assim, sair da Amazónia com a antropóloga? “O Kawá disse-me: ‘Verónica, eu tive um sonho’. Nas comunidades Huni Kuin é importante partilhar os sonhos. Mas ele disse: ‘Tive um sonho em que vi os prédios enormes, ouvi as línguas. Quero que me leves à Europa’”, conta Verónica Castro. “Não posso fazer isso! Achei que era um bom sonho para ficar no sonho”, recorda.

“Ele era um homem de 26 anos e com um filho. Tem de caçar, cortar a lenha. Tem deveres a cumprir para ser um homem não só para a sua família, mas para a comunidade. Como é que ia tirar da floresta alguém tão importante?”, interroga a antropóloga.

“Ela disse-me que lá não tinha banana, macaco, farinha, não tinha jacaré para comer…”, recorda Kawá sorrindo.

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Kawá e a sua irmã Bimi Huni Kuin, em Lisboa, vestidos com a roupa tradicional do seu povo Nuno Ferreira Santos

Mas convenceu-a. Ela tinha-lhe dado aulas de inglês, e ele tinha-se distinguido na aprendizagem. Agora, era fluente em três línguas: hantxa kuin, português e inglês. “Ele falou: Verónica, quero ir à Europa porque eu quero comunicar a minha cultura directamente com a comunidade internacional, em inglês’. Ah, mas essa é outra proposta. E assim começou a história do Kawá a fazer yupumá, vindo à Europa.”

Alguns dos parentes mais velhos recomendaram isso mesmo a Kawá: que fizesse yupumá na sua viagem à Europa. “Tenho a certeza que fizemos yupumá”, diz ele agora. “O filme mostra como nós vivemos. A cultura faz parte da nossa vida, a cultura preserva a floresta e a floresta preserva a cultura. Para nós, os ancestrais estão dentro da floresta. Todas as pessoas que assistirem esse filme vão fazer yupumá também.”