Desobediência civil não está na lei, mas direito de manifestação está — e deve ser respeitado

Amnistia Internacional defende que é preciso rever a legislação sobre direito de manifestação em Portugal, criando mecanismos para uma maior protecção jurídica do direito de reunião pacífica.

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Activistas do Climáximo atiram tinta vermelha aos vidros do hotel onde funcionou a sede da noite eleitoral da Aliança Democrática, em Março deste ano Nelson Garrido
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Há uma impaciência crescente em relação aos activistas que se nota na forma como as autoridades respondem a um dos direitos fundamentais para a participação política: o direito de reunião e manifestação pacífica, denuncia a Amnistia Internacional.

Na semana em que foi conhecida a condenação de oito activistas do Climáximo, a Amnistia Internacional apresentou o relatório Pouco Protegido e demasiado Restringido: o estado do direito de manifestação em 21 países da Europa”, numa sessão no Museu do Aljube, em Lisboa, e com direito a uma audiência no Parlamento. Se a coincidência com a data da leitura da sentença foi casual, já não terá sido por acaso que Portugal foi escolhido para o lançamento deste relatório europeu.

“Portugal pode não estar entre os países identificados como em situação mais preocupante, como Alemanha, Bélgica, França, Itália ou Reino Unido, mas está nesse grupo onde já há sinais de risco”, explica ao Azul Inês Subtil, coordenadora de investigação da Amnistia Internacional.

Esta é a primeira análise aprofundada feita pela AI sobre o direito de manifestação – que na lei portuguesa é protegida enquanto “reunião pacífica” –, descobrindo em todo o continente europeu um padrão de leis que ainda facilitam a repressão de movimentos sociais. No foco do relatório estão movimentos de diversos quadrantes: em Portugal, foram entrevistados cerca de 30 activistas de 14 colectivos, entre os quais os movimentos Vida Justa, Climáximo e Marcha do Orgulho LGBTI+ do Porto, que marcaram presença na mesa redonda de lançamento.

Equilíbrio de direitos

Além do lançamento oficial no Museu do Aljube, na terça-feira da semana passada, o relatório foi apresentado na quarta-feira por Inês Subtil e por Catrinel Motoc, coordenadora de campanhas do gabinete regional da Amnistia Internacional para a Europa, à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, numa audição na Assembleia da República.

“Trata-se de um direito, e não de um privilégio, e deve ser tratado desta forma”, sublinhou Motoc aos deputados portugueses.

Na sessão, o deputado social-democrata Pedro Neves de Sousa fez uma das grandes perguntas que têm sido levantadas perante protestos disruptivos, em particular de movimentos de justiça climática que recorrem à acção directa: como equilibrar o direito de manifestação com outros direitos que são postos em causa nestes protestos?

“Convido os senhores deputados a dizerem se houve alguma manifestação fofinha que tenha produzido mudanças e grandes conquistas nos nossos direitos”, respondeu Inês Subtil.

Em entrevista ao Azul, a jornalista explica que “as acções de protesto têm essa natureza disruptiva, geram um certo grau de desconforto para outras pessoas”. Contudo, no entender da Amnistia Internacional, refere, “bloquear estradas não equivale a violência, nem deve ser considerado dessa forma”. “Deve ser dada tolerância a essa natureza disruptiva a não ser que as perturbações causadas sejam graves e duradouras.”

“Não estamos a dizer que as forças de autoridade não devem cumprir a lei”, reforça Inês Subtil, mas “deve haver espaço para o diálogo para que esse equilíbrio de direitos possa existir”.

O que se tem observado, contudo, é “um grau de tolerância quase zero em relação às acções de desobediência civil” – em particular no caso dos movimentos climáticos. Os activistas condenados na semana passada responderam pelo crime de atentado à segurança de transporte rodoviário. Mas existem exemplos de tolerância no decorrer de outros protestos com bloqueio de estradas: durante os cortes de estradas dos agricultores, no início do ano, “houve permissão para que aquele protesto acontecesse”, recorda Inês Subtil, em conversa com o Azul.

Acto político

Já quando ocorrem crimes como dano de propriedade, por exemplo, “deve ser analisado o carácter reversível e a dimensão desse dano”. “Não somos apologistas da destruição de objectos de arte”, sublinha Inês Subtil, que recorda, contudo, que “a maioria destes grupos usa métodos que são reversíveis”.

É preciso, resume, aplicar um “princípio de proporcionalidade em relação às sanções”, tendo em conta que mesmo as acções mais disruptivas não deixam de estar sob o direito de reunião. “São actos políticos, feitos sob uma mensagem política”, reforça, denunciando as “sanções demasiado severas em relação aos actos a que se referem”.

“O direito de reunião é uma espécie de parente pobre dos direitos”, refere ainda Inês Subtil, que lamenta ver atribuído um grau de importância menor (por exemplo, por comparação com a liberdade de expressão) a um direito que “assegura todos os outros direitos”.

“Temos os direitos que temos hoje porque pudemos lutar por eles”, reforça a representante da AI. “A partir do momento em que este direito não é tratado com o seu grau de importância e como pilar da democracia, corremos o risco de retrocesso.”

Formalismo e arbitrariedades

A desobediência civil não é um direito consagrado na legislação dos 21 países analisados no relatório da Amnistia, mas é um direito implícito no âmbito do direito de reunião pacífica e de manifestação. Ao falhar nisso, “muitas das leis domésticas acabam por violar o direito internacional”, nota Inês Subtil.

Um dos mecanismos identificados em Portugal para estas limitações é a legislação sobre manifestações, que prevê a comunicação prévia dos protestos e limita os horários e locais onde podem ocorrer. Apesar de ser possível alguma tolerância, o que se verifica é que estas disposições têm servido de justificação para dispersar protestos.

Apesar do crescimento de movimentos inorgânicos, em que não há uma hierarquia de organização, as pessoas que comunicam estes protestos passam a ser consideradas as suas promotoras – e responsabilizadas por qualquer coisa que corra mal.

“Em Portugal, nem sequer é necessário ser promotor para ser alvo de um processo criminal”, alerta ainda Inês Subtil, dando o exemplo do activista do grupo Aterra que interrompeu um discurso de António Costa em 2019: Francisco Pedro, apesar de “nunca se ter identificado como promotor daquela iniciativa”, foi julgado enquanto organizador de um protesto que não foi notificado à Câmara Municipal de Lisboa, respondendo por isso pelo crime de desobediência qualificada e por “perturbar a ordem e tranquilidade públicas”.

Mas também noutro tipo de movimentos existe esta arbitrariedade na procura por responsáveis: nos protestos de professores, vários docentes foram notificados para prestar declarações enquanto promotores das manifestações. O critério de escolha dos professores “nunca foi conhecido”, diz Inês Subtil, mas em conversa com os docentes foi possível perceber que a polícia acabou por identificar como responsáveis pelos protestos “quem deu entrevistas à televisão”.

Força excessiva

No relatório, a Amnistia identifica um “retrocesso sistemático do direito de manifestação pela Europa”, registando o uso de força excessiva e desnecessária por parte das forças de segurança, detenções e acções judiciais arbitrárias e ainda “restrições indevidas ou discriminatórias”.

Este retrocesso na Europa tem mesmo desembocado numa tendência para equiparar activistas e movimentos sociais a organizações criminosas, como aconteceu na Alemanha com o grupo Última Geração. No país, houve mesmo activistas a ficarem retidos durante 30 dias para impedir que participassem em manifestações.

“Isto é gravíssimo”, sublinha Inês Subtil, que nota, contudo, que em Portugal também há sinais preocupantes, com movimentos como o Climáximo e a Greve Climática Estudantil a serem já referidos no capítulo sobre organizações criminosas do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI).

Além das penas consideradas demasiado pesadas para actos manifestamente políticos, a Amnistia mostra ainda preocupação com os atrasos nos julgamentos de alguns casos. Os activistas do Climáximo que bloquearam a Segunda Circular, em Lisboa, em Outubro do ano passado, ainda não foram chamados a julgamento. Há indícios de que “alguns juízes estão a juntar processos”, diz Inês Subtil, que questiona: “Porquê? Para quê?”

Desde o final do ano passado, a Amnistia Internacional tem desenvolvido em Portugal um programa de observadores para acções de protesto, que têm estado presentes em algumas manifestações para registar eventuais ocorrências desta natureza.

O que fazer?

A Amnistia Internacional deixa sete principais acções e recomendações específicas para Portugal. A primeira, refere Inês Subtil, é abrir o debate sobre a revisão da legislação sobre direito de reunião pacífica em Portugal, questionando as actuais restrições quanto à hora, local e conteúdo dos protestos, assim como as sanções e punições para quem não cumpre o regime de notificação. Este debate alargado deve debruçar-se também sobre a criação de mecanismos para uma maior protecção jurídica dos activistas.

A Amnistia alerta ainda para o tratamento discriminatório e diferenciado por parte das forças de segurança, com casos de dispersão de protestos sem aviso prévio, privação temporária de liberdade, apreensão de telemóveis ou práticas arbitrárias de paragem e revista, que penalizam não apenas determinados tipos de colectivos mas também determinados grupos, como as pessoas racializadas.

A organização apela ainda a um incentivo de boas práticas no policiamento dos protestos – “o papel das autoridades deve ser o de facilitar as manifestações e o direito de reunião”, sublinha Inês Subtil –, incluindo a identificação dos agentes no local, o que permite também uma responsabilização dos agentes das forças de segurança.

Por fim, a Amnistia Internacional alerta para uma retórica negativa e estigmatizante contra os protestos, levada a cabo também por agentes políticos. “Estamos a falar do direito de reunião”, sublinha Inês Subtil. “Os direitos que temos hoje existem porque alguém lutou por eles no passado, e os direitos que teremos amanhã decorrem desse direito de reunião e do exercício livre e protegido desse direito.”