160 pessoas trans preservaram material reprodutivo para poderem ter filhos

Dados registados pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida revelam um crescimento progressivo do número de pessoas transgénero que preservam esperma ou ovócitos.

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Marcha do Orgulho LGBTI+ do Porto em 2024, entre a Praça da República e o Largo Amor de Perdição Paulo Pimenta
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Os dados registados pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida revelam um crescimento progressivo do número de pessoas transgénero que optam por preservar o seu potencial reprodutivo em Portugal: 10 em 2020, 24 em 2021, 32 em 2022, 55 em 2023.

A pioneira foi Daniela Filipe Bento, actual presidente da ILGA Portugal. Teve de bater o pé até o sistema incluir “situações de mudança de sexo, previamente à terapêutica (hormonal/cirúrgica)”.

Em Julho de 2015, tinha tudo pronto para mudar o nome e a menção ao sexo na conservatória do registo civil e para avançar para o tratamento hormonal. O médico de família encaminhou-a para o Serviço de Endocrinologia do Hospital de Santa Maria (Lisboa), que a encaminhou para o Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina Reprodutiva.

Primeiro entrave: o sistema não previa a possibilidade de uma mulher preservar uma amostra de esperma. Por sorte, Daniela ainda não tinha mudado os documentos. Outro entrave: o sistema não aceitava um diagnóstico de saúde mental. Daniela foi ao gabinete do cidadão explicar o seu caso. Ao fim de seis meses, conseguiu por fim preservar gâmetas.

Decorria Fevereiro de 2016. No ano seguinte, seis pessoas trans deram o mesmo passo. No ano seguinte, outras quatro. No ano seguinte, outras 12. Contando com as 17 que o fizeram este ano, o Conselho Nacional soma 160.

Alberto Barros, membro do conselho e director do Centro de Genética da Reprodução Prof. Alberto Barros, aventa duas hipóteses. “Por um lado, há cada vez mais informação. Por outro, não me passa pela cabeça que a intervenção médica não inclua informar as pessoas sobre a possibilidade de preservação dos gâmetas. Há um dever de informação que o médico tem de cumprir. As pessoas têm direito de decidir.”

O órgão regulador não esclarece quantas pessoas trans usaram tecidos preservados em procedimentos de procriação medicamente assistida. Mas já antes tinham recorrido a inseminação artificial casais formados por um homem trans com processo de transição concluído e mulher cisgénero, isto é, que se identificam com o género atribuído à nascença, em cujo útero fora depositado esperma de um dador.

Vladimiro Silva, director científico de três centros autorizados a executar técnicas de procriação medicamente assistida, tem lidado com alguns destes casos. Ainda há três semanas, uma mulher trans pediu para preservar esperma, dizendo que pensa usá-lo no futuro, com a namorada.

“Temos sempre de validar com o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, porque muitas vezes não é claro, há muita complexidade associada”, diz.

Ocorre-lhe um exemplo autorizado, envolvendo um casal formado por uma mulher e um homem trans. “O casal pretendia realizar a técnica de fertilização recíproca. A pessoa com identidade masculina e aparelho reprodutor feminino faria a estimulação ovárica. Os seus ovócitos, depois de fertilizados, seriam transferidos para o útero da companheira.”

Também lhe vem à memória um exemplo não autorizado, envolvendo um homem cis e um homem trans. “A pessoa com identidade civil masculina e órgãos sexuais femininos queria engravidar e o conselho não autorizou. Argumentou que estas técnicas se destinam apenas a casais heterossexuais, mulheres sem parceiro e casais de mulheres.”

Alberto Barros explica que as situações fora do comum “carecem de análise individual”. Até “ficou na legislação que os directores dos centros têm direito de exigir avaliação psicológica dos beneficiários”.

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