Alex Couto manda Sinais de Fumo para o bairro onde cresceu

O bairro do Viso, em Setúbal, não é o paraíso no primeiro romance de Alex Couto, que põe amigos a criar uma startup de venda de erva, eles contra todos e todos no delírio de empreendedores da troika.

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Alex Couto escreveu Sinais de Fumo DR
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Deixem para aqueles rapazes empreendedores do Viso fazer o que Alex Couto ouviu a vida toda, de uma forma ou de outra, sabendo ele que a tradução era sempre esta: arregaça as mangas que tu és o que fazes.

E ele fez. Depois de duas edições independentes, escreveu o primeiro romance, Sinais de Fumo, a história de um grupo de amigos que cria uma startup de venda de cannabis e derivados quando a zona onde vivem fica sem fornecedor de erva. Sob a liderança mais ou menos orientada de Charlie Brown, a Green arranca com o terramoto da troika em Portugal, em pleno delírio colectivo do empreendedorismo.

Foi neste período político e económico que o escritor de 33 anos cresceu, primeiro no bairro de pescadores em Setúbal onde centra o livro e depois numa Lisboa gentrificada e inacessível, também ela objecto de criações literárias passadas (e futuras) de Alex Couto.

Sinais de Fumo (Suma de Letras, chancela de ficção de entretenimento da Penguin), lançado em Março, foi “um grande esforço biográfico” que mistura a infância e a adolescência com os vizinhos do Viso.

“Hoje que estou a tentar desanuviar da ficção literária, lendo ficção científica, vejo o bairro muito mais como uma zona demarcada que aplica uma certa tensão na psicogeografia de quem por lá caminha do que como uma personagem”, reflecte. “É também o poder mágico da literatura: estás a ler um livro que não tem nada que ver com nada e aquilo dá-te uma lente nova para olhares para a realidade. E o que eu noto é que o bairro faz pressão. Faz pressão financeira, em que tu tens mais dificuldades em arranjar empregos estudando naquelas escolas e sem ir para a universidade, e faz pressão psicológica, em que o perigo é maior por estarmos no bairro. E eu digo isto porque vi tardes nossas incríveis a comer entremeadas, fumar na esquina e beber fresquinhas transformarem-se em autênticos filmes de terror”, assim, enfatiza, com um estalar os dedos.

Melhor para o colorido da narrativa do que para a realidade, “a zona do bairro intensifica os eventos que lá acontecem”. Mas é por causa dele que este livro existe, não apenas nas descrições cinematográficas, que demonstram anos de observação tanto entrosado no grupo quanto absortamente fora dele, nem pelos amigos que Alex transformou em personagens principais, mas por “uma calinada” ao chegar ao fim da escrita, quando distraído pôs o narrador a dizer “aqui no nosso bairro”.

O relato e os esporádicos comentários de uma testemunha ocular omnisciente, bem como o uso do pretérito imperfeito, deram bem com a sensação de pertença ou não-pertença que este livro também ajudou a expiar.

“Descobri que o Thomas Carlyle, quando escreveu sobre a Revolução Francesa, utilizou exactamente o mesmo truque. Isto foi cerca de 1840, por isso não é um truque muito original, mas eu acho que neste contexto de tentar mostrar uma história onde as pessoas geralmente estão de fora cumpre um propósito.”

A “poesia da banalidade” e a linguagem hiperlocal, explicada num “glossário sadino stoner” no final do romance, “reforçam os laços com as pessoas que reconhecem este território e esta linguagem oral” que Alex usa como fronteira invisível não apenas do bairro vs cidade, mas do bairro vs online.

“A nova geração está ainda mais linkada à Internet do que a minha e eu acho que tentei representar isso no livro. Isto é um livro sobre ganza, sobre o bairro e sobre a Internet”, apresenta-o, em três vértices bem aguçados (por vezes, o lado do criativo e copywriter toma conta da conversa, repara): “Eu vou comparar muito este livro a quando os 'chungas' metem o braço por cima de ti, quer seja para te assaltar ou para te seduzir. O livro faz isso utilizando uma linguagem própria para te levar a conhecer o universo da obra.”

É neste mata-leão, sentados no banco de trás do Beemer da Alex, com a playlist de Alex, que entramos e saímos do bairro, misturamos negócios e prazeres, conhecemos as regras tão pouco explícitas numa incubadora de startups municipal como nos negócios de rua (eles andam nos dois) e recuamos dez anos até uma geração à rasca que continua a desenrascar-se — sempre à margem das medidas para jovens apresentadas por sucessivos governos. Ou, no caso dos visigodos do livro, sempre à margem, ponto.

“Nós tínhamos uma vida muito em bando”, comenta Alex. Nas férias da escola, recorda, acordava às 9h com os vizinhos a tocarem à campainha para jogarem Playstation 2 na casa do avô, onde havia muitos livros. “Jogar em minha casa era um plano comunitário. E eu lembro-me muito bem de lhes dizer: ‘Pessoal, hoje não vai dar, hoje eu tive uma ideia para um poema’.” Sem problema, respondiam-lhe. “Tu escreves o poema e nós ficamos aqui a jogar”, conta. “Eu pedia-lhes música para conseguir ter alguma coisa a tocar que não fosse só eles a mandarem vir uns com os outros. Às vezes, os rapazes espreitavam por cima do meu ombro e ficavam só a ver-me escrever.”

Mesmo quando arrendou um apartamento em Lisboa aos 21 anos, a ganhar o ordenado mínimo, e deixou de apanhar o comboio todos os dias, “não havia coisa que fizesse que não fosse debatida colectivamente”. Coisas como fumar menos, fugir ao padrão da masculinidade, ir para a faculdade ou escrever um primeiro romance, mesmo um que nunca prometeram ler.

“A malta incentivou-me numa lógica muito rap: estás a representar a nossa zona e és o nosso anfitrião, por isso, se faz favor, faz isso bem e mete uma cena de tiros e uma cena de perseguição, porque senão isto não tem graça nenhuma.”

Sinais de Fumo tem acção, tem humor e crítica sobre temas bem definidos e interligados; tem saltos por vezes bruscos na narrativa e muitas personagens. Por se basearem em pessoas reais — como Charlie Brown, inspirado em alguém que queria que Alex usasse o nome real (e isto diz muito sobre homem e personagem) —, conseguem na sua maioria escapar a caricaturas.

“Não é muito fácil fazer este trabalho quando as pessoas estão a tentar blindar-se deste tipo de leituras”, justifica. “Perceber vem de um lugar de olhar e pensar: então, mas olha lá, porque é que tu nesta situação em que te deram esta oportunidade quiseste ter esta atitude? Vem de ouvir e vem de falar. Tentei fazer isso com o Igor. O Igor é a prova de que podes passar um romance inteiro sem progredir intelectual ou emocionalmente. Porque eu conheci muitas pessoas que não progrediram nem intelectual nem emocionalmente ao longo das vidas delas.”

Alex Couto está pronto para sair de Setúbal e abordar “outros dramas” mais actuais, como “tentar ter uma carreira na arte ou na literatura sendo de baixo nascimento”. Publicar um romance deixou de ser um sonho e passou a “um plano concreto” de uma das “novas vozes” da Penguin.

Os moodboards literários, com descrições imersivas de Dona Tartt, uma shaggy dog story de Thomas Pynchon e “pinturas” a óleo feitas com recurso a ferramentas de inteligência artificial, já deixam adivinhar o próximo, que deverá ter o “ângulo da crise de habitação”.

“De certa forma, acho que dei um bocado demasiado de mim”, admite. “Estava muito a fazer isto por todos os rapazes que não vão ter hipótese de contar a história deles e por todos aqueles que eu senti que tinham muito mais capacidades do que vender ganza no bairro sugeria.”

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