O sarilho que importa: liberdade de escrever, de publicar, de ler

Os ataques verbais e boicote a livros têm vindo a tornar-se comuns. Consideramos que se trata de incidentes menores? A ignorância, a ingenuidade e o silêncio ferem a democracia.

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Comunicado recente de editores, escritores e associações portuguesas denuncia ataques de grupos de extrema-direita a autoras de livros infanto-juvenis Manuel Roberto
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No Portugal de 2024, que celebra os 50 anos da Revolução dos Cravos, uma menina de 8 anos, assustada com os ataques e ameaças por parte de um grupo de extrema-direita contra a sua mãe, que é autora de livros infantis, acorda depois de um pesadelo e pede à mãe para apagar o livro e parar de escrever. É este o espírito da revolução que celebrámos em grande número em Abril? Vamos permitir que isto continue? Qual é a nossa responsabilidade para com esta criança de 8 anos e outras, mais novas e mais velhas?

Em Abril, tive o prazer de organizar um debate sobre o lugar e o papel das organizações culturais em democracias em declínio. Uma das nossas convidadas foi Emily Drabinski, presidente da American Library Association (ALA).

Muitas pessoas desconhecem ainda o aumento acentuado de exigências para proibir livros nas bibliotecas escolares e públicas dos EUA (mais dados aqui). Os livros contestados tratam normalmente de questões LGBTQI+, raça e racismo, escravatura, genocídio de povos indígenas, religião. Existem também inúmeras exigências para transferir livros sobre a puberdade da secção juvenil para a secção adulta… John Oliver, com o seu inteligente sentido de humor, apresentou a terrível realidade num dos seus programas, dedicado às bibliotecas: exigências por parte de cidadãos para remover livros que nem sequer estão na sua biblioteca pública (sendo os critérios muitas vezes um título, um resumo ou uma capa), assédio a bibliotecários, multas ou despedimento de bibliotecários e directores de bibliotecas que se recusam a retirar livros, etc. Como Emily Drabinski nos explicou, a censura assume diferentes formas:

Grupos de extrema-direita organizados e bem financiados aparecem em bibliotecas com longas listas de livros e exigem que sejam removidos.

Esforços coordenados para assumir o poder, uma vez que as bibliotecas nos EUA são geridas por Conselhos (Boards).

Legislação a nível dos estados: por exemplo, uma multa de 250 dólares (cerca de 231 euros) para bibliotecários que se recusem a retirar um livro; bibliotecários colocados em licença administrativa sem vencimento devido a todo o tipo de acusações (por exemplo, promoção da homossexualidade ou pedofilia); bibliotecários proibidos de fazer circular determinado material.

Enquanto presidente da ALA, Emily Drabinksi viajou por todo o país. Contou-nos sobre bibliotecários em pequenas cidades que estão a ser atacados, sentindo-se sozinhos e aterrorizados, sem sinais de solidariedade vindos da sociedade. O impacto na sua saúde mental é considerável. Muitos estão a lutar contra esta tentativa organizada de os apresentar como criminosos; uma entre eles processou os seus assediadores. A ALA criou uma linha telefónica de apoio entre pares. Apoia também financeiramente os bibliotecários que enfrentam discriminação e são colocados em licença administrativa sem vencimento.

Relatos muito semelhantes chegam do Brasil. O Guardian noticiou recentemente que “a onda sem paralelo de proibições de livros é uma cópia das guerras culturais dos EUA”. Há algumas semanas, participei num debate organizado pela FEBAB – Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas de Informação e Instituições, onde a principal convidada era Tracie Hall, ex-directora executiva da ALA. Quando questionada sobre como irão as bibliotecas sobreviver no século XXI, a sua resposta foi concisa e clara: "Se forem espaços intencionalmente educativos parte da infra-estrutura educativa; se forem capazes de ajudar as pessoas a imaginar o seu potencial; se forem locais para a preservação da memória; se compreenderem as barreiras que as pessoas enfrentam.” É disso que tratam as bibliotecas, é disso que tratam os livros. Na verdade, o lema da FEBAB é “Bibliotecas fortes; sociedades democráticas”. Perfeitamente consciente da gravidade das ameaças e ataques contra livros, autores e bibliotecários (e contra a democracia) no país, criou a campanha “Bibliotecas que não se calam”, tornando, antes de mais, o assunto mais visível através de testemunhos de profissionais, oferecendo material promocional que pode ser amplamente partilhado, para além de informação.

Pensamos que Portugal está imune? Para começar, isso seria ingénuo, e a realidade está, na verdade, a contradizer esse pensamento. Citando um comunicado muito recente de editores, escritores e associações portuguesas, temos assistido nos últimos meses em Portugal a “repetidos ataques de elementos da Habeas Corpus e do partido de extrema-direita Ergue-te a escritoras de livros infanto-juvenis e a bibliotecários, à leitura tranquila numa Biblioteca pública e a apresentações de livros e debates”.

Em termos concretos, de acordo com o comunicado e com o que temos visto nos meios de comunicação social, isto está a traduzir-se em “ataques verbais, num intento claro de boicote aos livros, às suas autoras e ao seu público, esses elementos têm invadido e desrespeitado a privacidade das autoras. Procuram criar um clima de medo e insegurança, intimidam com berros e insultos, calúnias e mentiras. O discurso de ódio, violento e discriminatório, proferido por estas organizações, é público e conhecido das autoridades. Muitos destes ataques e ameaças são feitos publicamente, gravados pelos próprios e, depois, orgulhosamente partilhados nas redes sociais.” À hora em que este artigo está a ser escrito, e cerca de 48 horas após a emissão do comunicado, que pede à Ministra da Administração Interna e à Ministra da Justiça acções concretas contra estes ataques à democracia, este tem sido subscrito por mais de 1300 pessoas, de ocupações muito diversas.

No debate com Emily Drabinski, perguntei se não estaremos a exagerar ao querermos agir contra a mais pequena tentativa de intolerância, de discurso de ódio, de assédio. A resposta foi: “Estamos nesta situação porque há décadas que estamos a ceder centímetros. Cada um destes momentos deve ser trazido à luz. Não podemos ceder nem um centímetro mais. Cada evento precisa de ter muita atenção, todos devem saber.” Emily referiu ainda que participou recentemente numa reunião no Canadá onde algumas bibliotecas/bibliotecários estão a optar claramente pela autocensura para evitar sarilhos, questionando se valeria a pena o tempo dos funcionários. Não sei o que ela respondeu nesta ocasião específica, mas sei o que afirmou quando foi nomeada presidente da ALA em Julho de 2023: “Precisamos de criar sarilhos – sarilhos bons, o tipo de sarilhos que importa, o tipo de sarilhos pelos quais me tornei bibliotecária – e precisamos de o fazer em conjunto”, construindo “o poder colectivo necessário para preservar e expandir o bem público”.

A ignorância, a ingenuidade e o silêncio ferem a democracia. E temo que sejamos culpados, enquanto sociedade, em relação aos três. Em Outubro de 2023, após a interrupção do lançamento do livro No meu Bairro, de Lúcia Vicente, partilhei num post a minha emoção e sentimento de esperança perante as declarações públicas de solidariedade de dois teatros: o Teatro do Bairro Alto e o LU.CA – Teatro Luís de Camões. Ao mesmo tempo, senti-me surpreendida por não ter havido uma revolta geral – do sector cultural, para começar – contra este acto de censura. Consideramos que se trata de incidentes menores? Achamos que não são assim tão importantes? Acreditamos que não valem o esforço nem o tempo?

Os incidentes estão a multiplicar-se, como vimos. Vidas são invadidas, crianças são aterrorizadas (os “danos colaterais” que devemos ter sempre em mente), eventos são interrompidos, livros são atacados. Lúcia Vicente, Mariana Jones, Ana Rita Almeida são apenas alguns dos nomes que todos devemos conhecer, algumas das pessoas que devemos apoiar, em solidariedade. Não devemos ceder nem um centímetro, isto tem de parar já! Devemos tornar cada incidente público e o mais visível possível; devemos apresentar queixa à polícia; devemos mostrar a nossa solidariedade de todas as formas possíveis; devemos fazer colectivamente o que nos compete (políticos, autoridades, profissionais da cultura, cidadãos individuais) e defender a democracia – defender o direito de escrever e de publicar; defender o direito de ler (ou de não ler). Este é o tipo de sarilho que importa.

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