Prémio Gulbenkian para a Humanidade reconhece importância da agricultura sustentável

Um milhão de euros do prémio foi para dois projectos na Índia e Egipto que trouxeram milhares de agricultores para a agricultura sustentável e para académico indiano que defende direitos para o solo.

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Vijay Kumar (à esquerda) e Nagendramma Nettem vieram da Índia receber o prémio atribuído à Andhra Pradesh Community Managed Natural Farming Daniel Rocha
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As palavras são de Vijay Kumar, um dos líderes do programa que está a alterar o modo de se fazer agricultura no estado de Andhra Pradesh, no Sudeste da Índia: “Não precisamos de um grama de fertilizantes.” A técnica usada neste programa iniciado em 2016, que permite aos agricultores pouparem dinheiro em fertilizantes químicos e pesticidas e dá um sustento mensal acima do que eles ganhariam com os métodos de produção química, já chegou a um milhão de pequenos agricultores daquele estado.

É essa razão que fez Vijay Kumar viajar até Lisboa e sentar-se para falar com o PÚBLICO numa sala da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). Ele veio representar o Andhra Pradesh Community Managed Natural Farming (algo como Agricultura Natural Gerida pela Comunidade Andhra Pradesh – sigla APCMNF, em inglês), que apoia a liderança de mulheres e que nesta quinta-feira se tornou um dos vencedores do Prémio Gulbenkian para a Humanidade 2024, que no seu quinto ano de existência dá palco e reconhecimento ao poder da agricultura sustentável.

Além do APCMNF, o prémio foi atribuído à plataforma Sekem, que desde 1977 tem um programa de agricultura biodinâmica no Egipto que ajudou a transformar mais de 12.000 hectares de deserto em terra arável, plantou 649 milhares de árvores e apoiou perto de 6000 agricultores, e ainda ao renomado académico indiano Rattan Lal, vencedor do Prémio Mundial de Alimentação em 2020.

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Rattan Lal, da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, fez investigação sobre agricultura sustentável na Nigéria Daniel Rocha

Nascido em 1944, o investigador estudou durante décadas a agricultura sustentável e acredita que é possível produzir mais alimentos gastando menos recursos e menos terra agrícola – com ajuda do conhecimento científico e da eficiência –, e é um defensor dos direitos do solo. Em 2004, o académico foi um dos autores de um importante artigo publicado na revista Science que mostrava que o solo tinha uma enorme capacidade de reter carbono, podendo ser um poderoso aliado na luta contra as alterações climáticas.

“Tenho vindo a advogar que o solo, enquanto entidade viva, necessita de ter direitos: de ser protegido, de prosperar, de florescer. Só porque uma pessoa é dona do solo, não quer dizer que possa fazer aquilo que quiser”, diz ao PÚBLICO o investigador, que fez parte do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, sigla em inglês), sendo um dos cientistas reconhecidos quando o IPCC recebeu o Nobel da Paz, em 2007.

É também ele que expressa algo que está implícito na escolha dos vencedores de 2024 feita pelo painel de jurados deste prémio, liderado por Angela Merkel, ex-chanceler alemã. Ao ser um dos vencedores, Rattan Lal diz que está a ser “reconhecida a importância do solo, da agricultura sustentável, do agricultor que trabalha a terra e da educação”. Num contexto de alterações climáticas, perda de biodiversidade, guerras e a degradação contínua dos solos em todo o mundo, este reconhecimento traz-lhe “optimismo” em relação ao futuro.

“Os vencedores deste ano demonstraram, de forma exemplar, como na prática os sistemas alimentares sustentáveis podem contribuir para a resiliência climática”, adianta Angela Merkel, citada num comunicado da Fundação Calouste Gulbenkian. A presidente do júri relembra que o segundo dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável pretende acabar com a fome de uma forma permanente, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável. Nesse sentido, cada premiado provou “que os modelos sustentáveis podem prosperar em ambientes desafiantes e diversos”, frisa António Feijó, presidente do Conselho de Administração da FCG, citado no mesmo comunicado.

Por tudo isto, os três vencedores vão dividir em partes iguais o prémio de um milhão de euros.

A natureza, cheia de vigor

Na Índia, o programa APCMNF apoiou-se num trabalho feito anos antes que deu poder a 8,5 milhões de mulheres através de grupos de auto-ajuda. “Através delas apercebemo-nos de que muitas outras intervenções eram possíveis”, explica Vijay Kumar. Na altura, muitos agricultores estavam a abandonar os campos. “Queríamos uma solução que fosse de longo prazo, que resolvesse as causas [do problema]”, diz o responsável, vice-presidente executivo da agência que implementa o programa, a Rythu Sadhikara Samstha (Cooperação para o Empoderamento dos Agricultores). O programa “inclui tanto homens como mulheres, mas as mulheres assumem a liderança”.

Nagendramma Nettem é uma dessas mulheres e viajou com Vijay Kumar para também receber o prémio. A agricultora pertence à aldeia de Ghantapuram, no distrito de Anantapuramu, na região mais a oeste daquele estado e é uma campeã deste movimento que vai transmitindo o conhecimento da agricultura natural. Licenciada em Economia, desde 2010 que lidera um grupo de mulheres de auto-ajuda financeira na sua aldeia e em 2016 iniciou as práticas do APCMNF em 800 metros quadrados de terreno.

“Eu perdi saúde por causa da agricultura química”, explica ao PÚBLICO, com ajuda de um tradutor. “Quando transitei para a agricultura natural, a saúde melhorou, a saúde dos filhos melhorou e, mais importante, a mãe Terra, a natureza, recuperou, cheia de vigor.”

A agricultora cultiva 16 variedades de alimentos no mesmo pedaço de terra, desde vegetais, passando por milho-miúdo, lentilhas, sementes oleaginosas, tubérculos. Esta dinâmica do sistema da APCMNF permite ir produzindo durante todo o ano, com um rendimento mensal. Se alguma cultura apresenta um mau desempenho, as outras não deixam os agricultores de mãos vazias.

A cobertura anual do solo com plantas e as variedades cultivadas são dois dos nove princípios da agricultura natural, que tem como objectivo estar “em harmonia com a natureza”, explica Vijay Kumar. Os outros sete são o mínimo de perturbação do solo, que não é lavrado, o uso de bioestimulantes como catalisadores dos processos bioquímicos do solo, o uso de sementes indígenas, a integração de animais na agricultura, o aumento de resíduos orgânicos no solo, a gestão de pestes e doenças através de extractos botânicos e a proibição de fertilizantes sintéticos, pesticidas e herbicidas.

“A mãe natureza não precisa de fertilizantes ou pesticidas. As plantas estão a alimentar o solo através da fotossíntese e isso é alimento para os micróbios no solo, e eles retornam com todos os nutrientes que as plantas necessitam na altura certa”, afirma Vijay Kumar, que explica que o programa APCMNF está em contacto com investigação científica feita na Índia e em outras partes do mundo.

Sem gastos em fertilizantes e em pesticidas e com produções melhores, o rendimento de Nagendramma Nettem aumentou. “Agora, sou capaz de educar os meus filhos, de suportar outros custos, como a renda de casa”, diz. A agricultora tornou-se uma perita, uma dos 10.000 campeões que estão a espalhar a palavra da agricultura natural para outros pequenos agricultores do estado.

Vijay Kumar espera que nos próximos anos este método de transmissão ajude a chegar a prática a oito milhões de agregados familiares de agricultores. “O estado vai ser mais do que auto-suficiente a nível alimentar, vamos ter excedente”, garante. Com o valor do prémio que agora recebe, o responsável quer que esta técnica chegue a outros países.

“Desabrochar o potencial”

O director executivo da iniciativa Sekem, Helmy Abouleish, também quer alterar a forma como o Egipto faz agricultura e gere os seus solos através da agricultura biodinâmica. Este método, com 100 anos, foi trazido para o Egipto em 1977 pelo seu pai farmacologista, Ibrahim Abouleish (1937-2017), que viveu muitos anos na Áustria. Quando voltou ao Egipto, o farmacologista inaugurou a iniciativa Sekem num terreno que era deserto, a 60 quilómetros a nordeste do Cairo.

“O seu sonho e a sua visão eram estabelecer um modelo no deserto para uma comunidade onde as pessoas vivem, aprendem e trabalham juntas”, recorda Helmy Abouleish ao PÚBLICO. Além da técnica de agricultura, a organização aplica um conceito chamado “economia do amor”, mais sustentável e equitativa. “Não é sobre agricultura, nem economia, mas é sobre fazer desabrochar o potencial das pessoas na sua jornada na mãe Terra”, afirma.

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Helmy Abouleish (à direita), director-executivo da Sekem, e Naglaa Ahmed, directora-executiva de projectos da Associação Biodinâmica Egípcia Daniel Rocha

Quase 50 anos depois, a Sekem expandiu-se, tendo agora uma universidade e a Associação Biodinâmica Egípcia (ABE), que está a ajudar a espalhar a palavra entre os sete milhões de agricultores egípcios sobre os benefícios de integrarem a rede Sekem.

“O grande desafio é que este sistema tem de ser provado de agricultor em agricultor, é necessário tempo”, diz Naglaa Ahmed, directora executiva dos projectos da ABE ao PÚBLICO. “Eles estão à procura de soluções para os problemas convencionais da agricultura e das alterações climáticas”, acrescenta, dizendo que o prémio vai servir para ajudar mais 5000 agricultores.

Quando são certificados na técnica da agricultura biodinâmica, os agricultores podem receber créditos de carbono dados pela Sekem e vendê-los no mercado de carbono, permitindo colocar os seus produtos orgânicos a preços competitivos no comércio. A produção passa por algodão, chás, produtos alimentares, entre outros.

“Queremos atingir os 20% da agricultura egípcia, porque acreditamos que esta é a massa crítica necessária para que todo o sistema mude”, explica Helmy Abouleish. Para os agricultores que já fazem parte da Sekem, embora o rendimento seja fundamental, o mais importante é “fazer parte de uma comunidade e terem uma hipótese de aprenderem e desenvolverem”, explica. O objectivo do seu pai está, assim, a cumprir-se.

Nos últimos anos, o Prémio Gulbenkian para a Humanidade já premiou a activista climática Greta Thunberg (2020), o Pacto Global de Autarcas para o Clima e a Energia (2021) o IPCC e a Plataforma Intergovernamental Científica e Política sobre a Biodiversidade e os Serviços dos Ecossistemas (2022) e, no ano último, três protectores da floresta: Bandi Apai Janggut”, na Indonésia, Cécile Bibiane Ndjebet, nos Camarões, e Lélia Wanick Salgado, no Brasil.