Megaprojecto de pêra-abacate em Alcácer do Sal abalado por críticas. Será que cai?

Agricultores com explorações nas proximidades do projecto que envolve cerca de 660 hectares da cultura tropical temem ficar sem água nos seus furos. Plantação também é criticada por ambientalistas.

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A CCDR Alentejo deverá pronunciar-se novamente sobre este projecto em Álcacer do Sal Ana Rocio Garcia Franco/GettyImages
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  • Notícia actualizada a 12 de Julho com esclarecimentos da empresa responsável pelo projecto

A participação pública na análise da reformulação do projecto agro-florestal anunciado para as herdades da Murta e Monte Novo (HM-MN) localizadas no concelho de Alcácer do Sal terminou esta terça-feira com quase 1200 cidadãos, associações de agricultores, ambientalistas e outras organizações públicas a pronunciarem-se sobre o empreendimento baseado na cultura de pêra- abacate. As muitas críticas ao plano de instalação de uma cultura tropical no actual contexto de escassez de água, sobretudo nesta região do país, estão a abalar o projecto. Mas será o suficiente para o fazer cair por terra?

O tom geral das críticas ao projecto proposto pela empresa Expoente Frugal Lda., do grupo Aquaterra, pode ser sintetizado nas palavras com que Regina Falcão, porta-voz do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), se expressou ao PÚBLICO: “Os interesses económicos não podem ser mais fortes do que a defesa de uma zona protegida, onde se pretende fazer uma cultura tropical, apesar de subsistir a escassez de recursos hídricos e uma seca estrutural.”

Conjugando o aumento crescente de água para assegurar as necessidades dos empreendimentos turísticos instalados no cordão dunar Tróia/Comporta e das culturas intensivas e tropicais localizadas, sobretudo, no concelho de Alcácer do Sal, “podemos dizer que a região está a saque”, critica a porta-voz do GEOTA.

“Já não há capacidade para repor os volumes de água que venham a ser captados”, acentua Regina Falcão, frisando a “leveza com se fala culturas de regadio, quando o nosso futuro está hipotecado”, dada a enorme procura de água que este tipo de sistemas culturais exige.

34 captações de água subterrânea

O estudo de impacte ambiental (EIA) elaborado para o projecto de Alcácer do Sal previa inicialmente que a rega dos 722,24 hectares (ha) de plantação de pêra-abacate implicaria um consumo total de água na ordem dos 4,35hm3/ano. Seria assegurado por 34 captações de água subterrânea, onde seria retirado um caudal estimado de 3,22hm3/ano através de 17 captações instaladas a uma profundidade superior a 100 metros e outras 17 que extrairiam água a profundidades inferiores a 50 metros.

Como o período de exploração das herdades da Murta e Monte Novo ocorrerá durante os meses de Dezembro a Fevereiro, a empresa terá de recorrer aos furos de grande profundidade para proceder à rega antigeada. A captação dos furos curtos ocorrerá nos meses de Inverno, e a dos profundos durante todo o ano.

Mas para responder a todas as necessidades do sistema de rega, que não podem ser asseguradas só por caudais subterrâneos, a empresa Expoente Frugal Lda programou a instalação no canal do Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Sado (AHVS) de uma captação de onde seriam retirados 1139hm3/ano.

O PÚBLICO perguntou ao representante da AHVS, Gonçalo Lynce Faria, se a Expoente Frugal estava autorizada a captar do canal de rega conforme salienta o EIA elaborado para as herdades da Murta e Monte Novo. “Essa indicação aparece em todo o lado, mas não há qualquer licenciamento efectuado nesse sentido”, salienta o dirigente da AHVS.

Basear a produção de pêra-abacate nos caudais captados de furos “é um erro e não tem qualquer viabilidade”, acentua Lynce Faria, que alerta ainda para as consequências resultantes do consumo de água proveniente dos aquíferos subterrâneos. A margem do rio Sado onde se pretende instalar o projecto “é rica em água, mas consumi-la da forma como está a acontecer faz com que já se vá notando sinais de secura, nomeadamente nos sobreiros”, aponta. “Já se observam fenómenos estranhos nas árvores.”

Plano reformulado, mas pouco

O EIA recorre ao Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Tejo e Ribeiras do Oeste programado para o período de 2022-2027, e esclarece que no Sistema Aquífero da Bacia do Tejo-Sado/margem esquerda, a recarga é de 820,86hm3/ano e os consumos são de 367,05hm3/ano, o que corresponde a uma taxa de exploração de 56%.

Face à diminuição da precipitação nos últimos 20 anos, “considerou-se oportuno diminuir o limiar dos recursos subterrâneos disponíveis de 90% para 80% da recarga média anual a longo prazo, com o intuito de proteger e preservar as águas subterrâneas, face à diminuição das disponibilidades hídricas subterrâneas e aumento das extracções sobre as massas de água”, salienta o referido documento.

De referir ainda que nas imediações deste projecto agrícola da empresa Expoente Frugal existem outros projectos agrícolas e captações cujos caudais são destinados ao abastecimento público e industrial que “também prevêem consumo de água subterrânea, e que totalizam cerca de 18,09hm3/ano”, salienta o EIA.

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Producao de abacateiros preocupa por causa da gestao e falta de agua na regiao do Sul do país Rui Gaudêncio

O representante da AHVS sublinha a preocupação dos homens do campo pelo aparecimento “deste tipo de gente que não são agricultores, pois não passam de empresários que procuram o lucro imediato e daqui a dez anos vão-se embora para outro lado”. Se a cultura de pêra-abacate for viabilizada, avisa, os “agricultores locais que têm culturas regadas baseadas em furos vão sofrer as consequências com a falta de água”.

Esta preocupação teve eco na comissão de avaliação (CA) do EIA e, a 31 de Janeiro de 2024, concluiu que o projecto apresentado “induzia impactos negativos significativos a muito significativos”, emitindo um “parecer desfavorável” ao projecto. No entanto, a mesma comissão admitia a sua reapreciação, se o mesmo fosse reformulado. O procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA) ficou suspenso a aguardar alterações ao projecto inicial.

Assim, o projecto reformulado pelo promotor apresenta agora uma área de 2402,10ha, conforme as cadernetas prediais, e envolve uma área total de intervenção de 734,48ha. A área agrícola afecta à produção de pêra-abacate, que anteriormente propunha plantar 722,34ha passará para os 658,44ha.

A disponibilidade hídrica também sofre uma redução para os 3,99hm3/ano (2,85hm3/ano de água subterrânea e 1,13hm3/ano de água superficial).

Açude da Murta pode secar

Lynce Faria considera que a reformulação do projecto não é mais do que uma forma de “deitar areia para os olhos das pessoas”, dada a dimensão residual do corte efectuado na área que a empresa pretende plantar, assim como nos consumos de água.

Por seu lado, o GEOTA destaca que o açude da Murta, situado na Herdade de Murta, é um importante lugar de biodiversidade que fornece água doce a inúmeras espécies de aves e mamíferos, entre outros”. Sublinha ainda que “não se trata tão-somente de manter a diversidade de habitat, mas de concentrar esforços na mitigação das alterações climáticas, preservando e fomentando o uso sustentável dos recursos hídricos”.

O GEOTA deixa uma advertência: se os níveis de água subterrânea forem reduzidos pela extracção intensa para rega, “a nascente seca e a lagoa do açude pode secar, uma vez que as escorrências superficiais após as chuvas não são suficientes para manter a lagoa durante todo o ano”.

Agora, a CCDR Alentejo deverá pronunciar-se novamente sobre este projecto. Na prática, o que se constata é que as sucessivas aprovações de projectos agrícolas e turísticos”, na sua maioria pela CCDR Alentejo, como autoridade de EIA, “já permitiu a destruição de 30% da área da Zona Especial de Conservação (ZEC) Comporta-Galé, assim como o consumo excessivo de recursos hídricos”. “Tudo indica que se está a preparar o caminho para a aprovação [do projecto da pêra-abacate], diz Regina Falcão.

Lynce Faria ainda tem alguma esperança e espera que a decisão da CCDR “o faça voltar mais uma vez para trás”.

Empresa responde: projecto é compatível com a região

Reagindo às críticas formuladas pelo representante do AHVS ao projecto proposto pela empresa Expoente Frugal Lda, sobre o acesso à água gerida pela associação de regantes, fonte oficial do grupo Aquaterra, esclarece que as Herdades da Murta e do Monte Novo “têm áreas beneficiadas pelo Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Sado”. Desta forma, estas áreas “podem receber um volume de água superficial atribuído pela concessionária desta infra-estrutura, a AHVS”, que “corresponde integralmente ao volume já atribuído, por direito, a estes dois prédios”. O projecto da Expoente Frugal faz referência a 1,139 hm3/ano.

Por outro lado, o abastecimento do Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Sado “é proveniente da barragem do Vale do Gaio, não causando, assim, qualquer impacte ao nível dos recursos hídricos da Reserva Natural do Estuário do Sado (subterrâneos ou superficiais)”, salienta a fonte oficial da Aquaterra ao PÚBLICO, refutando ainda os receios dos agricultores do Vale do Sado, por os considerar “manifestamente infundados”. E acrescenta que o volume de água subterrânea proposto para o projecto “foi previamente validado pela APA/ARH” e pela informação veiculada pela Autoridade Nacional da Água, que “dispõe de todos os dados técnicos para decidir sobre a atribuição” da água proposta no projecto.

Para reforçar este argumento, a fonte oficial da Aquaterra salienta ainda que o sistema aquífero da bacia Tejo-Sado “foi avaliado globalmente para toda a sua extensão”, confirmando-se que o seu estado actual “possibilita o licenciamento de novas captações, desde que não excedam 80% das disponibilidades”. A maioria dos piezómetros instalados na bacia Tejo-Sado, próximos da área do projecto, “não apresentam tendência estatisticamente significativa de variação dos níveis”.

Na resposta às críticas formuladas pelo GEOTA, a Aquaterra assume o compromisso de “implementar um projecto compatível com os objectivos de gestão definidos para a área em causa”, denunciando o estado actual da área correspondente à Zona de Protecção Especial (ZPE) do Açude da Murta. Em “toda a sua extensão não tem qualquer tipo de ocupação”, frisando que da zona a oeste da ZPE, “foram retirados sectores de plantação para a minimizar qualquer perturbação sobre a área.”

Por fim esclarece que “não existe qualquer relação” entre o aquífero e o açude. Desta forma, alega, as captações de água subterrânea previstas no projecto “nunca poderiam vir a afectar o Açude da Murta.”

* Notícia actualizada a 12 de Julho com declarações de responsáveis do grupo Aquaterra, que representa a Expoente Frugal Lda, que vai gerir o projecto.