“Um problema de sede insaciável”: a crise de água na Cidade do México

A Cidade do México enfrenta uma grave crise de água devido às alterações climáticas e problemas na distribuição. Em Portugal, uma crise assim é improvável, mas são necessárias precauções.

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A falta de água sente-se em todo o país, incluindo na Cidade do México. Na foto, um barco em Santiago, no norte do país, durante a época de secas DANIEL BECERRIL / REUTERS
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Uma segunda-feira, de repente, a água na localidade Benito Juárez, na Cidade do México (CDMX), saiu da torneira com um cheiro a gasolina muito forte. “Quando me apercebi da situação, pensei que deviam ser ideias minhas, mas, naquela noite, no chat online dos vizinhos do meu quarteirão, outras pessoas começaram a dizer a mesma coisa”, conta Loreta Castro, arquitecta especialista em planeamento urbano que mora na localidade.

“Eu, como trabalho com questões relacionadas com água, coloquei um tecido dentro da cisterna de água do meu prédio. Quando o tirei da cisterna dois dias depois, estava cheio de óleo”, diz. “Muita água foi desperdiçada porque tivemos de esvaziar completamente as cisternas por causa da contaminação. Deitamos fora cerca de 7 mil litros de água só no meu edifício. Tivemos de comprar garrafões de água e mudar um pouco todos os nossos hábitos de consumo. Economizar muito mais do que o normal, porque até tarefas como cozinhar ou lavar a roupa se tornaram um problema”, afirma a arquitecta.

Em Abril, a água potável da localidade Benito Juárez foi contaminada com hidrocarbonetos durante mais ou menos um mês. A situação, apenas mais uma na longa saga de problemas de água na Cidade de México, tornou-se viral nas redes sociais, mas ainda não há uma conclusão definitiva sobre o que aconteceu.

A contaminação por hidrocarbonetos ocorreu no meio de uma das piores crises de escassez de água que a Cidade de México alguma vez enfrentou, sendo inclusive catalogada por alguns especialistas como uma situação próxima do “Dia Zero”, como ia acontecendo na Cidade do Cabo em 2018. No entanto, o investigador Manuel Perló, da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM), é crítico desta perspectiva.

“Não estamos sequer a caminho de um Dia Zero, mas estamos em risco de que a quantidade e a qualidade da água na cidade diminua e cause sérios problemas em diferentes sectores da população e da economia”, afirma o especialista, ouvido pelo PÚBLICO.

Os problemas de falta de água na Cidade do México não são recentes. Entre 2020 e 2022, quatro dos 16 municípios da cidade – que tem, ao todo, 9 milhões de habitantes – tiveram água potável disponível apenas quatro dias ou menos por semana, segundo um inquérito de um órgão independente. Em 2020, o México foi o país que mais consumiu água engarrafada, precisamente por causa dos problemas de abastecimento, segundo um parecer do Instituto Mexicano para a Competitividade (IMCO).

Construída por cima de um lago, a Cidade do México está marcada por paradoxos. A cidade, que se abastece de água através de bacias hidrográficas que estão fora da região e de aquíferos subterrâneos que estão debaixo da cidade, sofre de secas e falta de água uma parte do ano, e de excesso de água e inundações durante a época de chuvas.

“Há pessoas que dizem: se têm tanta água, como é que têm problemas de falta de água? Esta é uma das primeiras perguntas que surgem quando se tenta entender o que está a acontecer na cidade”, afirma Perló.

“O problema não é a falta de água em si”

Há várias razões por trás da crise de água na Cidade do México. Os dois motivos principais, refere o investigador Manuel Perló, são as alterações climáticas e os problemas no sistema de abastecimento de água, que remontam há décadas.

A falta de chuva e a descida nos rios causadas pelas alterações climáticas afectam uma das principais fontes de abastecimento da cidade: o sistema Kutzamala, que proporciona 29% da água da Cidade do México. O resto da água provém de outras bacias, de aquíferos subterrâneos e de poços, todos recursos escassos.

“A cidade extrai o dobro da água do que é recarregado de forma natural pelos aquíferos. A extracção desta água do subsolo causa problemas na cidade. Do nada, há afundamentos em ruas inteiras, o que afecta a rede de distribuição de água e toda a infra-estrutura subterrânea da cidade. Por causa disso, começou-se a pensar em aproveitar bacias hidrográficas fora da região, como a bacia no rio Lerma, mas o problema de extracção dos aquíferos ainda não está resolvido”, explica Manuel Perló, que tem nas infra-estruturas hidráulicas uma das suas áreas de estudo.

“A água usada pela cidade depende aproximadamente 35% de bacias distantes, que não estão na cidade, como o sistema Kutzamala. Este sistema, comummente afectado pela seca, porque é constituído por um sistema de sete barragens que captam a água de rios e da chuva, está a enviar metade da água que normalmente envia”, afirma o especialista.

No entanto, a crise de água não se pode atribuir na sua totalidade à natureza. Há problemas que surgem porque o sistema de abastecimento de água e o sistema de despejo da água da Cidade do México estão dissociados e não interagem entre si, diz o especialista da Universidade do México. O sistema de despejo canaliza águas residuais para grandes sistemas subterrâneos de despejo que as levam para fora do Vale de México e para outras regiões do país, sem nenhum tipo de reaproveitamento no sistema de abastecimento.

A água de chuva também não é reaproveitada. Loreta Castro, que já fez projectos de reaproveitamento de água pluvial na cidade, como o parque hídrico La Quebradora, diz que “tem de ser criado um sistema, uma política pública” dedicada a este tema. “É importante pensar em estabelecer, por exemplo, uma política que diga que todas as praças na Cidade do México devem captar água da chuva”, opina a arquitecta.

Além disso, o sistema de distribuição de água da cidade, feito de materiais já muito deteriorados, perde entre 35 e 40% do total da água introduzida no sistema, diz Manuel Perló. “Se somarmos os factores, entende-se que o problema não é a falta de água em si. A Cidade do México tem recursos suficientes para fornecer água a praticamente todos os habitantes da cidade, mas as redes não chegam a todos os lugares e muita água é desperdiçada nas fugas do sistema”, explica o investigador da UNAM.

“Um problema de sede insaciável”

A crise é causada não necessariamente (ou apenas) pela falta de água, salientam os especialistas, mas pela pobre gestão do recurso. “A Cidade do México tem um problema de sede insaciável que não se resolve trazendo mais água. Se o recurso não é aproveitado de forma racional porque o sistema é altamente ineficiente para o distribuir e o aproveitar, não vamos encontrar uma solução”, afirma Manuel Perló.

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Em 2020, o México foi o país que mais consumiu água engarradafa, precisamente por causa dos problemas de abastecimento, segundo o Instituto Mexicano para a Competitividade (IMCO) EPA/RAYNER PENA R

O que se deve fazer, diz por sua parte Loreta Castro, “é pensar na água e em como a usar”. “Se durante as chuvas utilizarmos apenas a água da chuva, por exemplo, e durante a seca usarmos apenas as reservas de água, não teremos um problema de esgotamento nestas reservas, porque as grandes bacias localizadas fora da cidade podem armazenar o excesso de água durante as chuvas para que, durante a seca, possamos utilizá-la juntamente com a água dos poços”, opina a arquitecta.

A especialista salienta que consertar as fugas do sistema de abastecimento, tratar e aproveitar a água residual e criar espaços de captação de água da chuva a nível local e doméstico é crucial para melhorar a crise de água. “Há tecnologias para isso, simplesmente não as implementamos”, afirma.

Os olhos do país estão agora nas soluções que deverão ser apresentadas pelo novo governo da Presidente Claudia Sheinbaum, cientista climática e ex-governadora da Cidade do México, que toma posse a 1 de Outubro.

“Não se podem resolver todos os problemas em seis anos, é preciso ter um programa sistemático e consistente ao longo de cerca de 20 anos para alterar significativamente os padrões de funcionamento do sistema de água que temos actualmente”, afirma Manuel Perló.

Para isso, opina o especialista, será preciso investir em infra-estrutura e operadores de água com capacidade “ampla e flexível”, assim como “pensar em soluções baseadas na realidade do país, nos seus recursos”.

“Precisamos do envolvimento de todos, porque não se trata apenas da Cidade do México; muitas cidades e áreas metropolitanas do país também enfrentam problemas muito sérios. É fácil o Governo dizer ‘vamos fornecer água a todos’, mas se não se indicar exactamente de onde virá a água, como será financiada essa infra-estrutura e garantir a boa qualidade da água, qualquer proposta é apenas uma declaração sem fundamento real. Será necessária muita firmeza, determinação e organização eficaz para implementar as acções relacionadas à água”, afirma o investigador da UNAM.

A época de chuva já está à porta no México, mas, no próximo ano, uma seca como a que se acaba de viver no país “certamente virá”. “Não sei como vamos aguentar se as reservas de água não recuperarem o suficiente. Podemos continuar a usar a água dos recursos que já temos, mas vai haver um momento em que não teremos mais. É a crónica de uma morte anunciada se continuarmos a fazer o mesmo de sempre. Estamos a caminhar de uma forma cega, sem ver as soluções que estão diante de nós”, diz Loreta Castro.

“Se tenho água sempre, não penso que posso não ter no futuro”

Em Portugal, uma situação em que falte água nas torneiras seria completamente extrema, afirma Maria José Roxo, especialista em seca e desertificação. No entanto, a especialista evidencia que “toda a sociedade portuguesa tem de ter muito claro que estamos perante uma mudança no clima, patente nas secas generalizadas que temos vivido no país”.

“[Se uma seca tão grave chegasse a Portugal], as pessoas perceberiam o que é a crise climática e o que é a mudança climática. Espero que isso nunca aconteça, até porque penso que o Governo e as instituições devem trabalhar para criar mais reservas de água e criar sistemas muito mais eficientes. Agora, isso também implica que as pessoas estejam muito bem informadas e que percebam que não podem utilizar os recursos como os utilizavam no passado”, afirma Maria José Roxo.

As alterações climáticas podem tornar situações de seca mais recorrentes, especialmente em zonas que são mais susceptíveis a estas situações, como o sul do país. Precisamente, no sul, “já estivemos muito perto” de uma crise muito severa de água, diz a especialista.

“Quando a água começa a faltar, reduzem-se todos os consumos daquilo que não é para o uso humano, e vemos isso no Algarve. Nessa zona, a falta de água na torneira é muito mais evidente, porque é uma região com uma economia onde a procura de água é muito grande, quer pelo turismo, quer pela própria agricultura”, explica a especialista.

Ainda que o sul seja mais susceptível às secas, Maria José Roxo salienta que a situação também se pode viver no resto do país. Viseu, por exemplo, teve problemas severos de água em 2017, quando a Barragem de Fagilde teve os níveis mais baixos de sempre.

Para gerir a água num futuro cada vez mais incerto, “o princípio de precaução” é crucial, refere a especialista.

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A barragem de Santa Clara, no Algarve, teve níveis baixos de água em 2023 Rui Gaudencio

“A seca é um fenómeno natural, mas a resposta é estrutural. É preciso criar mecanismos e estratégias para minimizar os efeitos da seca, mas quando começa a chover, a sociedade esquece-se do problema. Temos de começar a armazenar e consumir água de forma muito mais racional e eficiente e pensar em estratégias a longo prazo. Não planos de quatro anos, que é o que dura um governo, mas de 10 ou 20 anos. Recursos como a água precisam desse tempo para serem recuperados”, afirma.

As estratégias devem ser integrais. É crucial priorizar a protecção de solos e florestas para armazenar águas subterrâneas através da captação de chuva, da mesma forma como é importante repensar e reformular as redes de distribuição da água para diminuir o desperdício, explica a especialista.

Uma outra estratégia que devia ser considerada é a utilização de águas residuais tratadas, afirma. “Nós estamos a lançar essa água para o mar, mas pode ser usada para limpar cidades, regar jardins, para outros usos que não, obviamente, o consumo”, explica a especialista.

A manutenção das barragens também merece atenção. “Todos falam de barragens, da sua capacidade e de construir mais. Ora, aquilo que nós temos de pensar é que, quando há uma seca grande, as barragens têm de ser limpas para aumentar a sua capacidade de armazenamento. Se não as limparmos, vão estar entupidas de sedimentos arrastados pela chuva e dá-nos uma ilusão de óptica. Pensamos que temos muita água, mas na realidade temos menos água porque as barragens estão cheias de outros materiais”, afirma Maria José Roxo.

O cuidado da água ainda passa por um uso mais reduzido e poupado da água, quer para consumo doméstico, quer para consumo agrícola e industrial.

“As pessoas têm de ter consciência de que a água é um bem precioso e que não é para gastar assim facilmente. Mas isso tem muito a ver com a disponibilidade: se eu tenho água sempre, eu não penso que posso não ter no futuro. Aqui deve haver uma campanha de educação e de sensibilização das populações para esse contexto”, afirma a especialista.

Texto editado por Claudia Carvalho Silva