Um quinto dos jovens tem dois empregos: “Surreal que estas estratégias persistam”

Renato Miguel do Carmo, do Observatório das Desigualdades, refere que classe e género continuam a ser determinantes. Um licenciado ganha mais do que uma mulher com mestrado ou doutoramento.

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O mercado de trabalho está a “aumentar e reproduzir as várias desigualdades sociais”. É isto que mostram os resultados do livro Os Jovens e o Trabalho em Portugal – Desigualdades, (Des)Proteção e Futuro, com data de publicação marcada para 11 de Julho, e que se baseia em inquéritos a uma amostra não representativa de 5076 jovens.

A origem social continua a condicionar as aspirações profissionais e pessoais dos jovens: filhos de pais com menos habilitações literárias, com menores recursos e sobretudo a viverem no interior do país, ficam limitados a trabalhos mal pagos e a empregos mais precários. Os jovens mais “integrados e protegidos” residem sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa.

O género continua a ser um factor marcante no mercado do trabalho. Regra geral, “um licenciado ganha mais do que uma mulher com mestrado ou doutoramento”, refere o estudo. O facto de as mulheres ganharem “significativamente menos” do que os homens leva a que muitas delas tenham necessidade de ter mais do que um emprego: uma realidade comum entre os jovens.

O estudo, da autoria de Renato Miguel do Carmo, docente e investigador do Iscte, e coordenador do Observatório das Desigualdades, avançado pelo Expresso, mostra que 53% dos jovens já tiveram mais de um trabalho em simultâneo e cerca de 20% fazem-no de forma regular. Esta prática é mais comum entre os jovens com mais de 26 anos e salários mais baixos, de forma a conseguirem ter um rendimento razoável ou digno, explica o investigador.

O livro propõe duas linhas de políticas públicas para atacar o problema, nomeadamente através de medidas que impeçam que “um número elevado de jovens atravesse períodos de desemprego sem qualquer protecção social ou resposta institucional” e da “criação de mecanismos que aumentem os salários e a protecção social no emprego”.

Que conclusões destaca neste estudo?
Identificamos um conjunto de desigualdades estruturais entre os jovens, não se trata de um grupo homogéneo. Por exemplo, relativamente à origem social, os jovens que têm progenitores com níveis de educação mais elevados à partida têm mais vantagens e isso identifica-se quer do ponto de vista da sua trajectória escolar, quer do ponto de vista da sua inserção no mercado de trabalho. [Auferem] também melhores salários.

Há uma relação forte relativamente às desigualdades salariais e o género. Apesar de haver um quadro geral da precarização no trabalho dos jovens, é maior nas mulheres.

Há um conjunto de desigualdades que, apesar das alterações significativas que têm sido feitas, ainda persistem.

Problemas que não são novos, portanto. Onde é que as políticas públicas estão a falhar?
A questão tem que ver, desde logo, com uma grande rotatividade ao nível da inserção no mercado de trabalho, sobretudo nos jovens, que estão em situação de maior precariedade.

Essa rotatividade está associada também a baixos salários, que é um quadro que ainda persiste. O que significa que parte significativa destes jovens, para obter um rendimento decente, que lhes permita ter uma vida razoável, têm de exercer mais do que um emprego ou actividade.

Em termos de políticas públicas, as questões fulcrais são precisamente o aumento dos salários, não só dos salários mais baixos, algo que tem sido feito, de certa maneira, por via da política do aumento do salário mínimo, mas também a nível dos salários intermédios. Mais ainda num contexto do aumento do custo de vida e do problema do acesso à habitação, que afecta a população em geral, mas muito particularmente os mais jovens.

Há um conjunto de desigualdades cumulativas que não só persistem, mas que se vão aprofundando.

Era também importante aprofundar as políticas de protecção no desemprego. Os jovens são particularmente susceptíveis ao desemprego. Neste inquérito, uma parte considerável dos jovens que estiveram no desemprego não auferiram o subsídio de desemprego. Isso significa que as políticas públicas certamente estão a falhar no sentido de aumentar o nível de protecção social dos jovens perante situações de desemprego.

Uma das propostas feitas no estudo para atacar o problema é que o Estado Social seja alargado a jovens que atravessem períodos de desemprego. Estamos a falar concretamente do alargamento da atribuição de subsídios de desemprego?
Não temos dados que explorem concretamente isso, mas tem que ver com a questão da elegibilidade, de as pessoas poderem ter esse acesso; da sinalização até, de antecipar riscos, de antecipar que determinado tipo de crise vai afectar esta população — que, mais ainda, é uma população que está também nas margens do mercado de trabalho, e, portanto, com contratos mais instáveis e precários, e que são relativamente invisíveis aos radares dos institutos e das políticas públicas.

Um quinto dos inquiridos acumulou empregos. Que impacto é que isto poderá ter no futuro? Estamos a olhar para o duplo emprego como a solução para a precariedade?
Esta é uma realidade que está a aumentar e não só em Portugal. Em parte, tem que ver precisamente com o facto de os salários serem relativamente baixos, ou com a existência de uma situação mais precária. Nesse sentido, para terem um rendimento razoável ou digno, os jovens têm de acumular mais empregos.

Isto é particularmente preocupante nos que têm menores níveis de habilitação. Precisamente porque têm um menor prémio do ponto de vista salarial, e por serem menos qualificados, têm de recorrer a essas estratégias de acumular vários empregos. Estabelece-se também aqui uma relação entre precariedade e pluriactividade.

Mas [acumular empregos] não é uma realidade nova em Portugal. Nos anos 1970 e 80, obviamente num contexto de um país mais rural do que actualmente, a pluriactividade sempre foi um recurso das classes trabalhadoras, para poderem ter um rendimento um pouco mais elevado no final do mês. A questão é que, numa sociedade diferente, mais moderna, que se desenvolveu, não deixa de ser surreal que essas estratégias continuem a persistir, ainda que noutras roupagens.

Agora são sectores mais ligados aos serviços, às tecnologias, mas não há dúvida de que essas estratégias continuam a ser importantes para as pessoas terem um nível de rendimento um pouco melhor. E isso é preocupante.

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