Mendonça Mendes chama Montenegro a jogo: “Se Governo quer aprovar OE tem de esforçar-se por negociar”
Antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e adjunto de António Costa avisa que situação orçamental não consegue acomodar Programa do Governo e recusa pressão do Presidente para aprovar OE2025
António Mendonça Mendes, membro do Secretariado Nacional do PS, desconfia das hesitações e "manobras" do Governo para baixar IRS já e prevê que Luís Montenegro esteja a criar uma narrativa para, com ajuda das regras de Bruxelas, recuar em promessas eleitorais. Em entrevista ao PÚBLICO e Rádio Renascença no programa Hora da Verdade, o agora deputado socialista diz ter "muitas dúvidas sobre a exequibilidade do Programa do Governo" e até que é "uma ameaça às contas públicas".
O Governo insiste que o projecto do PS que prevê alterações no IRS já este ano viola a lei-travão e que este é o tempo do Presidente da República. Espera que Marcelo Rebelo de Sousa envie o diploma para o Tribunal Constitucional (TC) ou que o promulgue logo?
Foi o Governo que decidiu que este ano deveria haver uma descida adicional de IRS: fez uma campanha baseada na descida de impostos já; disse no Programa do Governo que havia uma verba disponibilizada. Portanto, foi o Governo que definiu qual a redução de receita que queria para 2024 adicional à que já havia. Vejo, por isso, com alguma surpresa esse tipo de afirmações por parte de membros do Governo porque aquilo que o PS fez no Parlamento foi uma proposta alternativa à do Governo, dentro da margem, para distribuir a redução [do IRS] de uma forma mais justa. E que recolheu o consenso dos deputados, desde a Iniciativa Liberal até ao Partido Comunista.
O PS é um partido responsável e não pressiona o Presidente: durante a fase que tem para tomar a sua decisão deve fazê-lo. Vejo com algum espanto a forma como os membros do Governo falam sobre matérias que estão na competência do Presidente da República sem grande sentido institucional. O que é relevante do ponto de vista político é que o Governo disse que queria baixar os impostos adicionalmente este ano. E, por isso, ficaria surpreendido se o Governo fizesse alguma manobra que impedisse essa baixa de impostos.
Como, por exemplo, recorrer ao TC se o Presidente da República promulgar?
Não vou falar daquilo que pode ou não pode acontecer. Todas as ferramentas que existem do ponto de vista constitucional são legítimas e, portanto, essa legitimidade nunca está em causa. Aquilo que o Governo vai fazer, dentro das competências e instrumentos que tem... não vejo nenhum drama relativamente a essa matéria. Do ponto de vista político, aquilo que registo, com muita surpresa, é que um Governo que entra a dizer que quer baixar os impostos, na realidade, hesita quando é para baixar esses mesmos impostos. Espero que seja consequente.
Não há quaisquer dúvidas sobre a constitucionalidade da medida?
Como deputado subscritor de um projecto de lei, quando os serviços da Assembleia da República o admitem e dizem expressamente que não viola a norma de travão, eu confio.
Quando fala em manobras do Governo, está a falar exactamente do quê?
Tenho visto declarações, tanto do primeiro-ministro no debate quinzenal em resposta ao líder do PS, como numa entrevista do ministro da Presidência, a falarem da baixa de impostos de uma maneira diferente do que falaram antes. O Ministro das Finanças chegou a dizer que iriam adaptar as tabelas de retenção na fonte em Julho com efeitos retroactivos a Janeiro. Havia toda uma narrativa de que queriam baixar os impostos já, e, no momento em que se concretiza essa redução, há hesitação por parte de todo o Governo.
A que atribui isso?
Terá que fazer essa questão ao Governo. Eu não tenho nenhum ressentimento relativamente ao facto de o PS ter perdido as eleições e passado para a oposição; faz parte da democracia. Mas tenho muitas dúvidas sobre a exequibilidade do Programa do Governo. Ou seja, não me parece que a situação orçamental do país, mesmo sendo sólida, seja susceptível de acomodar todas as promessas que estão no Programa do Governo.
Julgo que a execução do Programa do Governo constitui uma ameaça às contas públicas. Dá-me a ideia que o Governo também já o entendeu e procura encontrar argumentos para que, mais à frente, diga que não o consegue executar porque a oposição aprovou outras medidas ou porque as contas públicas, afinal, não estavam tão bem como se dizia.
Com o objectivo de provocar uma crise política?
Não estou a dizer isso. Neste momento, o Governo está a trabalhar no plano orçamental de médio prazo com a Comissão Europeia, e já terá consciência de que, dentro dessas regras de rigor orçamental, não caberá a descida muito acentuada de receita que tem previsto e o aumento muito acentuado de despesa. Preventivamente, está a preparar o país para que, a partir de 22 de Setembro, quando estarão concluídas as negociações com a Comissão, possa dizer que a não execução do Programa do Governo decorre de um bloqueio da Assembleia da República (AR), ou porque apresentou medidas ou porque não permitiu outras. Estou convencido que, nessa altura, vai ficar muito evidente para todos que as várias medidas que estão incluídas no Programa do Governo não têm possibilidade de serem executadas num quadro orçamental de estabilidade e de rigor.
E estou muito expectante para ver como é que o Governo vai fazer o escalonamento plurianual das várias despesas adicionais e cortes de receitas que tem. Parece-me que o caminho que está a ser tomado vai conduzir, inevitavelmente, a desequilíbrios orçamentais de médio prazo, e isso é muitíssimo negativo para as famílias e empresas.
A partir do resultado das europeias, que o PS ganhou, a possibilidade de viabilizar o Orçamento do Estado para 2025 (OE2025) é maior ou menor?
Não me parece que esta seja a fase em que devem pedir aos partidos da oposição qual é o seu posicionamento relativamente a um documento que desconhecem. É o Governo que tem a iniciativa e que deve liderar esse processo orçamental num quadro em que tem um Parlamento com um pequeno apoio. O Governo tem que fazer um esforço, e um esforço que seja visível, para poder aprovar esse orçamento.
Há duas questões que devem ser colocadas ao Governo: em que momento vai iniciar o processo de negociação orçamental? Antes de aprovar em Conselho de Ministros a proposta de lei e a enviar para a AR, ou depois, no Parlamento? E com quem pretende fazer essa negociação – com todos os partidos, ou, preferencialmente, com um ou mais do que um partido? Qualquer decisão é legítima.
Seria um bom sinal da parte do Governo que esse diálogo começasse antes da aprovação em Conselho de Ministros.
Negociar não é fazer simulacros de audição da oposição. As reuniões promovidas aqui ou ali são muito genéricas, em que o Governo em nada se compromete, muito menos com uma metodologia de trabalho com os partidos na Assembleia da República, e em que mais tarde confronta os vários partidos com as suas próprias propostas sem ter havido nenhuma negociação.
Sem negociação, é muito difícil para o PS avaliar se pode ou não viabilizar o diploma mais à frente?
Mais do que falar do Orçamento de Estado, é falar da forma e do comportamento político. Se o Governo pretende aprovar o OE2025, tem que se esforçar por o negociar.
O principal partido da oposição gostava de ter uma relação preferencial?
Não é uma questão de gostar. A relação preferencial que o PS teve entre 2015 e 2019 foi com os partidos à sua esquerda e assumiu-o. Antes de apresentar a proposta ao Parlamento já tinha feito todo o enquadramento desse processo negocial e definia claramente com quem a queria viabilizar. O Governo tem assumido a aprovação pela AR do OE2025 como um processo meramente formal, quando não é. Não é um processo de carimbo pela AR das decisões do executivo; é um acto político.
Há ou não vantagem para o PS ter uma crise política no Outono?
O PS não mudou a sua posição tradicional: os mandatos são para cumprir e, portanto, a legislatura deve ser cumprida. E é nesse cenário de normalidade que devemos actuar.
O PS perdeu as eleições legislativas, tem agora quatro anos de oposição e é nesse período que deve trabalhar. Os portugueses não esperam do PS que seja um factor de instabilidade política e, por isso, assumimos com o mesmo empenho a nossa tarefa na oposição e temos muitos desafios nos próximos anos, desde as presidenciais até às autárquicas. Já tivemos agora as europeias, temos agora um processo de estados gerais para podermos relançar as bases do programa para o país. É normal que os partidos possam trabalhar, quer estejam no Governo, quer estejam na oposição.
Dizer que o PS não será um factor de instabilidade política é dizer que não irá provocar a queda do Governo com o chumbo do Orçamento.
Não podemos perguntar aos partidos que desconhecem em absoluto qual é a proposta orçamental, qual é o seu sentido de voto. Não é justo. E a queda do governo, nos termos da Constituição ela decorre ou do chumbo de uma moção de confiança ou da aprovação de uma moção de censura.
O PS não usará o argumento de o Presidente ter dissolvido o Parlamento quando não houve Orçamento para 2022 e agora tomar decisão diferente com a AD?
Já estou habituado a que não haja uma doutrina fixa daquilo que é o comportamento do sr. Presidente da República. Por isso, já nada me surpreende em qualquer decisão que possa tomar, quer seja ou não incoerente relativamente a posições anteriores, porque já todo o país está muito habituado à inconstância do Presidente da República. Não é previsível qual a doutrina que adoptará nas várias circunstâncias. Diria que temos que aguardar.
O Presidente está à bolina…
[Risos] Eu concordo com a sua frase.
Um eventual chumbo do OE2025 pode não levar a uma crise política, mas haver um segundo Orçamento ou vivermos em duodécimos…
Não é positivo para o país viver em duodécimos. É muito importante que, nos mercados financeiros, onde financiamos as famílias e as empresas, haja uma segurança relativamente àquilo que é a trajectória do país. Um país que não consegue aprovar o seu orçamento terá, seguramente, problemas a curto e médio prazo do seu financiamento, aumentando os custos de financiamento das famílias e das empresas.
O Presidente da República pode ser um motor de pressão para o PS?
A minha resposta é taxativa: não. O Presidente, pelo seu mandato e pela forma como tem gerido os últimos anos de mandato – e não digo isto com uma satisfação particular –, não tem sido um factor de estabilidade no país. E os portugueses, de uma maneira geral, não lhe reconhecem essa mesma estabilidade. Por isso, aquilo que esperam é que haja responsabilidade por parte de todos os partidos e da Assembleia da República de uma maneira geral. Não me parece que o Presidente da República tenha aqui um grande acrescento.
Com esta direcção de Pedro Nuno Santos as relações com a Presidência da República esfriaram?
Não me parece. Do ponto de vista institucional nunca houve problema na relação com a Presidência da República. O adversário político do PS não é o Presidente da República; é a família política a que pertence o Presidente da República, que é o actual Governo.
As minhas considerações sobre a forma como o Presidente se tem vindo a posicionar no espaço político português, que o tornou um factor de instabilidade e não um factor de estabilidade, são objectivas. A banalização da palavra retira poder à magistratura de influência. Fiquei muito surpreendido por o Presidente da República ter dito que não ia falar muito sobre a vida política porque estávamos a começar a campanha eleitoral e depois falou três vezes sobre a aprovação do Orçamento do Estado. É fazer exactamente o contrário daquilo que diz.
E pressionar.
E é exactamente por isso que o peso da sua palavra é menor quando ele efectivamente tem que funcionar.