Foram precisos 16 anos, mas Cavendish ultrapassou Merckx e tocou a imortalidade

A corrida do ciclista britânico está feita. Passou o belga como o maior vencedor de etapas e fez história no Tour.

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Mark Cavendish celebra na Volta a França GUILLAUME HORCAJUELO / EPA
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Nesta quarta-feira, talvez tenha sido escrita uma das mais belas páginas da história do ciclismo – daquelas pelas quais todo o mundo estava a torcer, mas que para muitos não passaria da absoluta quimera. Mark Cavendish venceu a quinta etapa da Volta a França, chegando ao 35.º triunfo na prova. A partir de agora, não há ninguém acima dele – nem Eddy Merckx, que vai ficar para sempre nas 34.

Não há ninguém como Cav na história do ciclismo e este desfecho chega numa fase em que já não era suposto – se é que esta é uma formulação legítima no desporto.

Aos 39 anos, Cavendish já não é o melhor sprinter do pelotão – neste Tour 2024, talvez não seja sequer um dos dez melhores. Mas de um ciclista que venceu pela primeira vez no Tour em 2008, há 16 anos, não se pode esperar menos do que uma aura de imortalidade. E vencer neste ano, com esta idade e naquele local, com uma mão-cheia de gente mais forte, não é muito menos do que tocar a imortalidade.

Era suposto?

Antes do Tour, escreveu-se nestas páginas que uma das histórias a seguir nesta prova seria a possível vitória 35 de Cavendish. “Não é difícil prever que o mundo vai estar a torcer por isto”, prevíamos, mesmo que constatando que seria um objectivo difícil. Estávamos enganados. Pareceu até que a vitória de Cavendish na chegada a Saint-Vulbas, na zona Este de França, foi uma demonstração da força que supostamente não tinha. E não foi tão difícil como supostamente seria.

A sagacidade de procurar a roda certa seria sempre um predicado de Cavendish – e apanhou, e bem, a de Philipsen –, mas a força de sprintar mais do que os outros, exibindo a potência física, não seria, necessariamente, uma virtude actual do britânico. Não que tenha sido fácil, mas não foi propriamente um triunfo em photo-finish. Cav ganhou e ganhou bem.

Agora, a corrida do inglês está feita. Vai poder correr livre, leve e solto, sem o peso de conquistar a 35.ª, que já é dele. Tudo o que vier a partir daqui será apenas mais um degrau que o próximo Cavendish terá de escalar para ser o maior de sempre. E isso deve durar muitos anos – se é que vai acontecer.

Importa lembrar que Cavendish chegou a ter uma travessia no deserto, em parte desencadeada por um problema de saúde foi afectado duas vezes pelo vírus Epstein–Barr – e uma depressão que lhe enevoou a estabilidade mental. E esteve três anos sem vencer uma corrida.

A carreira estava terminada e já ninguém dava nada pelo "míssil da ilha de Man". Até que um dia ele disse "eu não quero acabar assim". Deram-lhe a mão, voltou ao Tour, voltou a vencer, chegou a Eddy Merckx em 2021 e, nesta quarta-feira, em 2024, ultrapassou-o.

Depois da penumbra e das trevas, ele voltou. Como um imortal.

Dia calmo... até aparecer Cavendish

Tal como na terceira etapa, quase todo o dia de prova foi feito num ritmo lento e sem qualquer motivo de interesse – pelo menos a nível de ciclismo.

A dada altura, Clement Russo, um dos dois fugitivos, viu uma tabela de basquetebol na berma da estrada e teve tempo e disponibilidade física e emocional para, em andamento, tentar acertar com uma garrafa de água no cesto. Falhou. Falhou isso e falhou o objectivo de chegar com o seu amigo Matteo Vercher à meta. Ambos foram apanhados ainda bastante longe do fim e nada se passou depois disso.

A meio da etapa, podia ler-se no Twitter alguém escrever “se neste momento está a dormir uma sesta, então é uma pessoa esperta”. E também se pôde ouvir na transmissão televisiva o director-desportivo da equipa Wanty dizer no rádio “Kobe, se fores agora podes ser o mais combativo do dia”, provocando um dos ciclistas da equipa, Kobe Goossens. Houve tempo para piadas, basquetebol em bicicletas, provocações aos ciclistas e sorrisos.

Um triunfo "à Cavendish"

No sprint final houve muita luta, vertente na qual Cavendish sempre se sentiu confortável – e teve, na carreira, os seus momentos de limites ultrapassados –, mas não fez nada, nesta chegada, que valesse uma acção do VAR do ciclismo.

Começou no centro, atrás do seu comboio, foi à direita, atrás da roda de Philipsen, voltou ao meio, leu rapidamente qual seria a melhor trajectória (e ele é tremendo nessa arte), decidiu ir à esquerda e acabou lá, a sprintar sozinho.

Até nisso o destino foi amigo do britânico: poderia ter acabado com um ou dois adversários ao lado, mas todos vieram atrás, incapazes de discutirem a vitória, podendo oferecer a Cavendish um plano televisivo e fotográfico só para si.

A seguir ao britânico chegaram Philipsen e Kristoff, mas os nomes atrás do vencedor pouco interessam neste dia.

Nesta quinta-feira, o pelotão vai até Dijon, em mais uma tirada plana, desenhada para mais um final em pelotão compacto, com sprint na meta.

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