É preciso libertar e salvar o Vascão, o derradeiro habitat do minúsculo saramugo, pede a WWF

A organização ambientalista WWF defende a remoção de 17 pequenos açudes e outras barreiras físicas instaladas pelo homem para que a linha de água recupere o seu curso normal.

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Um novo relatório da WWF Internacional e da ANP/WWF identifica o rio Vascão, situado na bacia do Guadiana, como um dos rios da Europa cujos projectos de restauro podem diminuir o impacto da seca, beneficiando as pessoas e a biodiversidade. A organização ambientalista defende a remoção de 17 pequenos açudes e outras barreiras físicas instaladas pelo homem para que a linha de água, que guarda o derradeiro habitat do minúsculo saramugo, recupere o seu curso normal.

Em Outubro de 2021, foi removida uma barreira fluvial no rio Vascão, um dos afluentes do Guadiana em território português a jusante de Alqueva e que define a fronteira geográfica entre o Alentejo e o Algarve. Dando sequência da elaboração de um relatório ministerial, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) promoveu a substituição de uma travessia rodoviária suportada em diversas tubagens de betão, por uma ponte que veio “libertar” a linha de água de uma barreira física que impedia a passagem de peixes.

Esta operação passou a estar referenciada nos relatórios da World Wide Fund For Nature (WWF), organização que tinha elaborado um estudo preparatório para remoção de barreiras fluviais do rio Vascão e da ribeira de Odeleite.

Os dois cursos de água algarvios são os últimos habitats onde ainda é possível identificar os derradeiros exemplares de saramugo (Anaecypris hispanica), espécie de peixe de água doce. "Estas remoções têm o potencial de restaurar 93 quilómetros de rio de fluxo livre e melhorar significativamente o habitat, não só para o saramugo, mas também para a enguia-europeia e outras espécies nativas em risco de conservação, incluindo mamíferos como a lontra e o lince-ibérico", descreve a ANP/WWF.

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Saramugo (Anaecypris hispanica) Tiu Cancho/DR

Para além do saramugo, classificado no Livro Vermelho das espécies como estando criticamente em perigo, o Vascão acolhe ainda a boga-de-boca arqueada (Iberochondostroma lemmingi), classificada, em perigo, e o caboz-de-água-doce (Salaria fluviatilis), também em perigo.

Foram as barreiras naturais como o Pulo do Lobo, que contribuíram, ao longo de milhões de anos, para a diferenciação genética do saramugo. Por outro lado, o próprio rio Guadiana, onde nunca foi encontrado um único exemplar deste pequeno peixe que não ultrapassa os 7 centímetros, foi outro dos impedimentos naturais que ditaram a diferenciação genética e um dos factores que mereceram a atenção da WWF no âmbito do seu programa Rivers2Restore.

Porquê o Vascão?

O Rivers2Restore contempla a recuperação de 2200 quilómetros de linhas de água na Áustria, Finlândia, Alemanha, Grécia, Itália, Letónia, Países Baixos, Portugal, Roménia, Eslováquia e Espanha, países seleccionados pela WWF.

E o rio Vascão, um afluente da margem direita do Guadiana, que, em grande parte do seu curso, faz fronteira entre as províncias do Alentejo e do Algarve, foi seleccionado por ser o rio português que apresenta o percurso natural mais longo entre os que não têm barragens ou outras interrupções artificiais.

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ICNF - Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas Açude removido para dar lugar a uma ponte
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Mas apesar da importância ecológica que ainda preserva, o rio Vascão “é fortemente fragmentado por pequenas estruturas, como travessias rodoviárias e açudes”, explica o relatório Rivers2Restore. Neste rio, estão contabilizadas ainda outras 17 barreiras que se considera que “têm um impacto substancialmente negativo na migração de peixes”.

Fazendo a história do rio desde a Idade Média, observa-se que muitas das encostas dos rios e zonas montanhosas foram e continuam a ser ocupadas pela pecuária, e o terreno fértil (principalmente depósitos sedimentares ribeirinhos) são hoje terras agricultadas. Centenas de açudes foram sendo construídos ao longo do rio Guadiana e nos seus afluentes para mover as mós dos moinhos que tratavam o cereal produzido nas extensas searas alentejanas ou, mais recentemente, criar passagens fluviais para veículos. A intensificação da pastorícia, da agricultura e da pesca vieram “provocar uma redução na biodiversidade e nos stocks de peixe, para passarem a prevalecer espécies agressivas e com uma capacidade de reprodução enorme”, salienta o relatório Rivers2Restore.

Além do achigã, foram identificadas como espécies de peixe exóticas (ou seja, trazidas de outras regiões do planeta e introduzidas pelo homem nos cursos de água) no Vascão, afluente do Guadiana, a perca-sol, o chanchito (ou perca-espanhola), e o peixe-mosquito.

Ao todo já foram identificadas 12 espécies exóticas na bacia do Guadiana. Essas espécies expandem-se e colonizam as ribeiras afluentes. O lúcio-perca, por exemplo, foi detectado pela primeira vez em 2013 na foz do Vascão, por uma equipa da Universidade do Algarve. O seu impacto no ecossistema é negativo, já que se trata de uma espécie extremamente voraz, e com a qual as espécies nativas têm muita dificuldade em competir.

Os açudes abandonados e passagens rodoviárias pouco utilizadas continuam a bloquear o livre curso do rio Vascão, afectado, sobretudo nas últimas três décadas, pela intensificação das alterações climáticas, tendo as temperaturas cada vez mais quentes um impacto significativo na redução dos caudais médios.

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17 barreiras obsoletas

A WWF pretende que as entidades públicas portuguesas intervenham no sentido de inverter o cenário que foi descrito, propondo a remoção de 17 barreiras que neste momento impedem o curso normal do rio, que, argumentam, “pode ser totalmente recuperado, permitindo assim que a maioria das espécies de água doce possa circular livremente”.

Da observação de cerca de uma centena de quilómetros do curso do rio Vascão, o relatório da WWF conclui que “todas as 17 barreiras fluviais estão agora obsoletas”, com excepção de algumas travessias rodoviárias. Uma dezena delas tem uma altura entre 1 e 4,5 metros e “pode ser totalmente removida”. As outras sete são vaus antigos ainda utilizados para a passagem de automóveis, mas que podem ser substituídos por pontes que não bloqueiem o curso fluvial.

Acresce ainda que a vegetação ribeirinha, parcialmente removida para dar lugar ao cultivo ou a abertura de acessos para a circulação de pessoas e viaturas, “também deve ser restaurada, e o acesso do gado ao rio deve ser gerido de forma a restringir o acesso às margens”, propõe o relatório Rivers2Restore.

2200 quilómetros de rios restaurados

O Vascão, conclui a WWF, tem uma grande probabilidade de alcançar um estatuto ecológico “elevado”, o que significa que as suas águas poderão recuperar a boa qualidade. Em simultâneo, as populações das oito espécies de peixes que ainda se encontram no curso do rio, 88% das quais em declínio e 63% ameaçadas ou vulneráveis, “poderão estabilizar”, acredita a organização ambientalista.

O Rivers2Restore é um conjunto de 11 projectos para implementar em países como Áustria, Finlândia, Alemanha, Grécia, Itália, Letónia, Países Baixos, Portugal, Roménia, Eslováquia e Espanha, seleccionados pela WWF e que, a serem implementados, poderão perfazer 2200 km de rios restaurados.

No seu conjunto significa que pode ser atingida a meta de quase 10% da meta da Estratégia de Biodiversidade da União Europeia, incluída na Lei de Restauro da Natureza, que exige aos Estados-membros a ligação de, pelo menos, 25.000 quilómetros de rios da Europa até 2030.

O traçado natural dos rios europeus está hoje fragmentado por mais de um milhão de barreiras, como barragens, açudes, eclusas, vaus e rampas. Se adicionarmos as espécies invasoras (peixes e plantas exóticas), a contaminação por fertilizantes e outras substâncias poluentes e o aumento das temperaturas, “não admira que 70-90% das planícies aluviais da Europa se encontre num estado degradado e mais de metade dos rios europeus não conseguiu alcançar um bom estado ecológico”, observa a WWF, com um reparo final: “Hoje, mais de um terço das espécies de peixes europeias está actualmente em risco de extinção, muito maior do que a ameaça de extinção enfrentada por aves e mamíferos.”

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