Quando os vinhos nos enchem o coração

O meu pai gelou quando viu a garrafa em cima do balcão da cozinha e a minha mãe rapidamente argumentou: “Devemos cozinhar com o vinho que bebemos.” A carne estava maravilhosa.

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Goncalo Villaverde
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Crescer em Azeitão é sinónimo de aprender a gostar de queijo intenso, comer doce de ovos com canela e bolos secos estaladiços. É crescer numa vila bonita rodeada de vinhas até perder de vista.

Cresci a ouvir que a minha terra tinha bom vinho. Conhecia-lhe apenas o cheiro porque não o podia provar. Na escola primária tive a sorte de visitar tanto a Quinta da Bacalhôa como as caves José Maria da Fonseca.

No entanto, tenho duas memórias mais antigas que envolvem vinho. A primeira é aquele clássico das crianças curiosas que não resistem em pôr um dedinho dentro do copo do avô. Na minha cabeça é no copo do avô, porque para mim os avós dão-nos espaço para tudo, até para fingir que não nos viram pôr o dedo num copo totalmente proibido a crianças. Mas é que o vinho tem uma cor que aguça a curiosidade, mesmo que à primeira o saber não condiga com a beleza da cor. Primeiro estranha-se e, um dia, entranhar-se-á.

A minha outra memória ensinou-me, desde cedo, que nem todos os vinhos têm o mesmo valor e importância. Eu acho a história engraçada, já o meu pai...

Tínhamos em casa uma pequenina garrafeira que garantia que haveria vinho para ocasiões especiais. Um dia, o vinho que a minha mãe usava para cozinhar acabou e a carne estava por temperar. O meu pai disse-lhe que usasse um vinho da garrafeira. Ela não bebe vinho, nunca bebeu, qualquer garrafa estaria bem para o efeito. Pois bem, de forma aleatória, escolheu a garrafa mais cara que havia naquela garrafeira. O meu pai gelou quando a viu em cima do balcão da cozinha e a minha mãe rapidamente argumentou: “Devemos cozinhar com o vinho que bebemos.” A carne estava maravilhosa.

Hoje, com idade para o saborear, falta-me ainda a sapiência daqueles que dizem coisas bonitas acerca dos vinhos. Eu escolho-os tendo por base, apenas, o meu paladar, se me enchem o coração o suficiente para me acompanhar em bons momentos, ou não. O vinho será sempre um bom amigo.


Este artigo foi publicado no n.º 7 da revista Solo.

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