É no Telegram que a comunidade LGBT da Rússia encontra refúgio: “As pessoas queer estão em todo o lado”

Em Março, o executivo russo incluiu o “movimento LGBT” numa lista de organizações extremistas e terroristas. A comunidade utiliza o Telegram para encontrar recursos e apoio para fugir do país.

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Alguns canais LGBTQIA+ já foram alvo de ataques, foram identificados e deixaram de existir Teresa Pacheco Miranda
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Na Rússia, diz a lei, não se pode ser queer, mas isso não faz com que a comunidade deixe de existir, apesar das limitações à liberdade. Em Março, o executivo russo incluiu o “movimento LGBT” numa lista de organizações extremistas e terroristas. Hoje, é em chats no Telegram que a comunidade se encontra para socializar e encontrar recursos e apoio para quem quer fugir.

Timofey Sozaev criou um canal no Telegram, que apelidou como “ferramenta de empoderamento de pessoas LGBTQIA+”, em declarações à revista norte-americana Wired. Foi em 2019, após mais de 20 anos como activista pelos direitos da comunidade, que sentiu que tinha de sair da Rússia de vez. Estava nos Estados Unidos a visitar amigos quando descobriu que o Kremlin sabia de todo o trabalho que tinha estado a desenvolver até então. E por muito que lhe tenha custado — diz que sentiu que deixar o seu país era “entregar tudo” o que amava e valorizava ao inimigo — não voltou. “O meu corpo disse ‘não’”, conta.

Não tornou a casa, mas continuou a ajudar pessoas LGBTQIA+ que vivem em território russo. O canal de Sozaev não é caso único — está, aliás, muito longe disso. Na Rússia, onde vivem mais de 140 milhões de pessoas, cerca de metade da população utiliza o Telegram e existe um número incontável de grupos onde se discutem todo o tipo de temas.

Alguns canais LGBTQIA+ já foram alvo de ataques, foram identificados e deixaram de existir. Para não serem apanhados, os utilizadores vão trocando de canais com alguma frequência e nunca utilizam o nome verdadeiro. Quem quer fugir, explica Sozaev, é sempre aconselhado a apagar o Telegram do telemóvel para evitar problemas nas fronteiras. Mas, pelo sim pelo não, partilha-se no grupo instruções a seguir em caso de interrogatório. Depois, são postos em contacto com organizações que prestam apoio a esta população.

A RUSA LGBT, associação americana para pessoas LGBTQIA+ de língua russa, também tem um canal no Telegram. Lá, encontram-se pessoas que já estão em solo norte-americano há anos, quem acabou de chegar ou quem quer sair. Recentemente, a associação criou um chat no Telegram para pais LGBTQIA+, depois de um casal lésbico que chegou há pouco tempo aos Estados Unidos ter entrado em contacto com a associação por quererem que os filhos convivam com outras crianças. A associação oferece apoio em várias áreas e ajuda os imigrantes em questões legais e de saúde.

Uma viagem pela Rússia através da plataforma Queering the Map, uma espécie de Google Maps queer onde qualquer pessoa pode deixar um pin com uma mensagem, pinta uma comunidade desapontada com o seu país. Num ponto isolado, lê-se: “A minha cidade natal. Conheci lá tantas lésbicas espectaculares e incríveis. As minhas melhores amigas, amantes, parceiras. Construí lá relações muito importantes. Tornei-me lá na pessoa que sou hoje. Gostava que o governo e as leis não fossem tão estúpidos e cruéis, para que as pessoas pudessem continuar a viver lá. Agora quase toda a gente que conheço deixou a cidade”.

E noutro: “Nunca poderei ir para casa por ser quem sou. As pessoas queer estão em todo o lado.” Depois, espalhadas pelo mapa, mensagens de pessoas de outros países onde se repetem as mesmas palavras: “Nós vemos-vos, ouvimos-vos e acreditamos em vocês. Mantenham-se fiéis a vocês próprios e façam o que puderem para se manterem vivos. Só porque o governo não aceita a comunidade queer, não quer dizer que não existamos.”

Desde grupos extremistas até comunidades LGBTQIA+

O Telegram foi criado na Rússia em 2013 e desde sempre é tido como “seguro” por utilizar um sistema de encriptação ponta-a-ponta, mas especialistas têm dúvidas sobre o nível de privacidade que a aplicação oferece. Ao contrário do Facebook e do X (antigo Twitter), a plataforma usada por Sozaev não foi banida por Vladimir Putin porque se apresenta como “isenta”. É que o Telegram é usado pelo próprio governo russo para difundir informação (e desinformação) e propaganda, por isso “não há tanto interesse em mandá-lo abaixo”, diz Kyle Walter, responsável da Logically, startup de tecnologia britânica especializada em combater a desinformação, à Wired.

O serviço de mensagens tornou-se popular por permitir a criação de grandes redes, não há qualquer limite de pessoas para a subscrição de canais. Nos Estados Unidos, é um antro para conspiracionistas da teoria QAnon e de extrema-direita e, um pouco por todo o mundo, tem funcionado como ponto de encontro de ideologias extremistas. O Telegram já suspendeu alguns grupos dessa índole.

Mas esta ferramenta também é útil para quem precisa de escapar ao julgamento de um governo opressor. Na Rússia, qualquer site que contenha apoio à comunidade LGBTQIA+ é bloqueado pelo governo e passa a ser acessível apenas se o utilizador tiver VPN (que permite ocultar o endereço IP) — e a proibição da VPN já foi posta em cima da mesa. O Telegram oferece uma alternativa.

Walter tem uma justificação simples para explicar por que é que é o serviço alberga desde grupos extremistas até comunidades LGBTQIA+ — se uma plataforma não proíbe qualquer tipo de conteúdo transformar-se-á “num lugar para onde as pessoas que não são capazes de se expressar livremente nas plataformas tradicionais se vão mudar, porque se sentem mais seguras a publicar lá”.

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