De ocupação em ocupação. Assim se tenta sair da rua em Londres

Em Croydon, no sul de Londres, um colectivo de ocupantes tenta arranjar habitação digna em edifícios abandonados, perante uma crise de arrendamento sem precedentes.

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Sem apoios, os ocupas tentam arranjar solução para a crise de habitação Hannah McKay / REUTERS
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Nas ruas de comércio e nos bairros sociais de Croydon, nos subúrbios a sul de Londres, alguns edifícios outrora abandonados estão lentamente a voltar à vida.

Numa antiga escola, as paredes descascadas recebem uma nova camada de tinta e já roupa a secar num estendal. Num centro de jovens desactivado, há risos no ginásio transformado em dormitório, e um vaso de flores roxas decora um balcão de cozinha.

O colectivo de ocupantes Reclaim Croydon tomou conta de instalações comerciais desactivadas para, assim, conseguir camas para pessoas sem-abrigo, afirmando que está a fornecer uma solução comunitária para um mercado de habitação em ruptura.

"O governo está a falhar com os sem-abrigo", acusa uma das pessoas que o ocupou o centro juvenil, conhecida como Leaf.

Leaf, que vem da cidade de Reading e é uma pessoa não-binária, conta que estava a viver nas ruas e em ocupações porque o aumento das rendas tinha ultrapassado os apoios sociais e habitacionais do governo. Leaf argumenta que muitas das propriedades desactivadas e vazias do país poderiam ser transformadas em casas.

Leaf, pessoa não-binária, tem 28 anos e ocupa um antigo centro de juventude Hannah Mckay/ Reuters
O centro, no sul de Londres, foi ocupado pelo grupo Reclaim Croydon Hannah Mckay/ Reuters
Leaf já viveu nas ruas e noutros edifícios ocupados Hannah Mckay/ Reuters
A crise de habitação em Londres tem vindo a piorar Hannah Mckay/ Reuters
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Leaf, pessoa não-binária, tem 28 anos e ocupa um antigo centro de juventude Hannah Mckay/ Reuters

"Se as pessoas responsáveis se preocupassem realmente com quem está a passar dificuldades, tornariam essas casas habitáveis", afirma Leaf. "A carência habitacional é uma escolha política directa".

Tal como a maioria dos ocupantes entrevistados pela Reuters, Leaf, 28 anos, só quis dar um nome, para evitar chamar a atenção das autoridades.

Há muito que a Grã-Bretanha não tem habitação suficiente, mas um aumento de 22%, nos últimos cinco anos, nas rendas em Inglaterra deixou um número crescente de pessoas com dificuldades em encontrar um lugar para viver. A habitação está entre as cinco questões mais importantes para os eleitores, segundo as sondagens que antecipam as eleições britânicas da próxima quinta-feira, 4 de Julho.

As rendas elevadas e os preços inacessíveis das casas levaram a que pessoas na casa dos 20 ou 30 anos continuem a viver em casa dos pais ou em casas partilhadas. Nos casos mais graves, as pessoas acabam a dormir na rua e em edifícios vazios, de acordo com números oficiais.

Os serviços públicos em áreas como a saúde mental foram afectados por uma década de controlo rigoroso das despesas e pelo aumento da procura, o que contribui para o número de pessoas que se tornaram sem-abrigo, segundo analistas políticos e activistas

Outros estudos também revelaram que as minorias étnicas são desproporcionadamente afectadas. Um relatório de 2022, publicado pela instituição de caridade Centre for Homelessness Impact, mostrava que, em Inglaterra, as pessoas negras tinham três vezes mais probabilidade de se tornarem sem-abrigo do que as pessoas brancas.

Os maiores partidos políticos britânicos não disponibilizaram pessoas para discutir a crise da habitação. No entanto, tanto os conservadores do Primeiro-Ministro Rishi Sunak, como o Partido Trabalhista, principal partido da oposição, comprometeram-se a resolver o problema através da construção de mais casas.

O Partido Trabalhista, que se espera que ganhe as eleições com uma vitória esmagadora, afirmou que iria rever o sistema de planeamento do país (frequentemente citado como excessivamente complexo e desfavorável aos construtores) e construir 1,5 milhões de casas nos próximos cinco anos.

Os conservadores tiveram dificuldades ao reformar o sistema de planeamento devido à oposição dos legisladores regionais e dos residentes, que procuraram preservar os espaços verdes e o carácter original dos seus bairros.

Edifícios devolutos

Os defensores da habitação há muito que defendem que as autarquias locais também deveriam utilizar algumas das cerca de 700 mil casas devolutas existentes em Inglaterra como uma solução mais barata e mais rápida.

"Estamos a ver cada vez mais municípios a dizer que os orçamentos para alojar as pessoas que teoricamente eles têm o dever legal de alojar estão literalmente a levá-los à falência", disse Chris Bailey, director de campanha da instituição de caridade Action on Empty Homes.

O London Councils, a associação das autoridades locais da capital inglesa, revela que o número de pessoas que se apresenta como sem-abrigo aumentou 14,5% o ano passado até Setembro, com mais de 175 mil pessoas em situação de sem-abrigo.

O custo de fornecer alojamento temporário em hotéis, albergues ou casas partilhadas aumentou quase 40% no ano passado, para 90 milhões de libras (cerca de 106 milhões de euros) por mês, segundo o London Councils.

Desde 2018, oito municípios — incluindo Birmingham, a maior autoridade local da Europa — declararam falência.

O Croydon Council, que declarou ser incapaz de equilibrar as suas contas três vezes entre 2020 e 2022, gastou mais de 38,6 milhões de libras (cerca de 45,4 milhões de euros) em alojamento temporário entre 2022 e 2023, sem as receitas com rendas.

O município aumentou o imposto municipal, pago pelos residentes, em 15% no ano passado. Também aumentou os impostos sobre propriedades vazias e segundas habitações.

"Espera-se que esta medida contribua para que mais casas vazias voltem a ser utilizadas", afirmam as autoridades locais em comunicado enviado à Reuters.

Croydon quer vender o centro de juventude ocupado, que fechou durante a pandemia. "Estamos a tomar medidas para retomar a posse e proteger este edifício público", refere também em comunicado.

Croydon, uma localidade com arranha-céus e blocos de escritórios, tinha quase quatro mil propriedades abandonadas em Outubro de 2023, de acordo com dados do governo.

Nas principais ruas comerciais, aumentam as empresas fechadas e cartazes que anunciam as liquidações totais.

O número de pessoas sem-abrigo aumentou devido à inflação habitacional Hannah Mckay/ Reuters
Um cartaz que diz "o custo da ambição rouba-nos a todos" feito por uma das pessoas que ocupa o antigo centro da juventude em Croydon Hannah Mckay/ Reuters
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O número de pessoas sem-abrigo aumentou devido à inflação habitacional Hannah Mckay/ Reuters

Alex, de 28 anos, organizador do Reclaim Croydon, diz que o grupo já recuperou cerca de 30 edifícios desde que foi criado no ano passado, proporcionando casas a mais de 100 pessoas.

O grupo começa por se certificar que os edifícios estão desocupados e por verificar se estes têm serviços básicos como água corrente e electricidade. Em seguida, efectuam reparações para os tornar habitáveis, o que pode incluir a instalação de chuveiros e cozinhas, a reparação de fugas e a remoção de bolor.

As pessoas que vivem nos edifícios têm origens diversas. Os ocupantes do centro de juventude, para além de Leaf, incluem um estudante e um trabalhador dos transportes que não conseguia pagar as rendas de Londres.

Alguns estão a tentar fugir das ruas, outros da agitação de viver em diferentes alojamentos temporários. "Muitas pessoas na Grã-Bretanha ficam presas no limbo dos sem-abrigo e preferem ficar connosco", disse Alex.

Entre eles está Oumnia, de 35 anos, que disse que lhe foi oferecido alojamento temporário num albergue enquanto esperava que o seu pedido de asilo fosse processado. "Era um quarto pequeno e eu tenho dois filhos. Não é suficiente para nós e não é saudável", disse Oumnia, que se recusou a dar mais pormenores sobre si própria.

O Reclaim Croydon encontrou um quarto para a família num edifício de tijolos vermelhos que outrora albergou um escritório de advogados. No entanto, poucos meses depois da sua chegada, um aviso de despejo foi colado na porta. A Reuters não conseguiu contactar os proprietários, uma vez que a escritura do terreno não contém contactos.

A meia dúzia de ocupantes fez as malas e mudou-se para uma pequena escola feminina, escassamente mobilada, que estava vazia desde 2020.

Oumnia e os seus filhos pequenos vivem agora num anexo com uma pequena cozinha e uma casa de banho. À noite, por vezes, os residentes reúnem-se num antigo ginásio para partilhar um prato de guisado de galinha e pão.

Nos corredores de uma antiga escola, as pessoas que a ocupam deixam a roupa pendurada, a secar Hannah Mckay/ Reuters
Uma criança vê televisão no edifício que ocupa, com a sua família, outrora uma escola Hannah Mckay/ Reuters
Um antiga sala de aulas transformada num quarto Hannah Mckay/ Reuters
As pessoas que ocupam o edifício juntam-se, quando podem, para fazer refeições Hannah Mckay/ Reuters
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O antigo edifício de advogados, agora casa para muitos Hannah Mckay/ Reuters
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Nos corredores de uma antiga escola, as pessoas que a ocupam deixam a roupa pendurada, a secar Hannah Mckay/ Reuters

No entanto, não se sabe quanto tempo podem ficar. O edifício é propriedade da Barnardo's, uma instituição de caridade para crianças.

"Temos conhecimento de que uma propriedade pertencente à Barnardo's em Croydon está actualmente a ser ocupada por invasores. Estamos a trabalhar com as autoridades locais para resolver a situação de forma segura", afirmou o grupo cujo lema é "Mudar uma infância, é mudar uma vida".

A cultura de ocupação

A cultura da ocupação existe na Grã-Bretanha há centenas de anos. Após a II Guerra Mundial, muitos soldados e as suas famílias mudaram-se para bases militares vazias. Na década de 1970, o movimento assumiu uma vertente política, com os anarquistas a ocuparem edifícios como acto de protesto.

Desde 2012, é ilegal ocupar edifícios residenciais. Mas a ocupação comercial não é uma infracção penal, desde que não haja danos e os ocupantes saiam quando ordenados por um tribunal.

A Associação Britânica de Proprietários estima que a ocupação de edifícios comerciais tenha aumentado quase 300% desde Dezembro de 2021, um problema que o seu director, Sajjad Ahmad, atribui às políticas governamentais e não aos ocupantes.

"Muitas dessas pessoas que podem ver na rua ou a ocupar prédios não são viciados em drogas", disse Ahmad. "Falamos com elas e apercebemo-nos de que algumas são pessoas qualificadas e que ainda têm emprego."

Depois de 1945, a Grã-Bretanha iniciou uma campanha de construção de casas, tendo grande parte do seu parque habitacional público sido construído para famílias com baixos rendimentos.

Porém, uma parte desse parque foi vendida e não substituída por outra solução, ao abrigo da política da antiga primeira-ministra Margaret Thatcher.

Em 2017, o governo afirmou que eram necessárias 300 mil novas casas por ano em Inglaterra até meados da década de 2020 para resolver o problema da acessibilidade na habitação. Desde então, foram construídas, em média, menos de 250 mil por ano. Alguns proprietários também não se importam de deixar as suas propriedades vazias, beneficiando do aumento dos preços.

Leaf, 28 anos Hannah Mckay/ Reuters
Youness, 49 anos Hannah Mckay/ Reuters
Pixie, 22 anos Hannah Mckay/ Reuters
Leaf tem uma deficiência física e acha que não sobreviria na rua Hannah Mckay/ Reuters
Youness já teve de mudar a família de um edifício ocupado para outro Hannah Mckay/ Reuters
Pixie vive no antigo centro jovem Hannah Mckay/ Reuters
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Leaf, 28 anos Hannah Mckay/ Reuters

Os ocupantes disseram à Reuters que encontrar um quarto foi transformador, restaurando um sentido de dignidade, mesmo que tivessem medo de ser expulsos.

"Foi a primeira vez que me senti como um ser humano desde que cheguei ao Reino Unido", disse Youness Elaissaoui, um imigrante marroquino de 49 anos que passou algum tempo na escola e no antigo escritório de advogados.

Leaf, que caminha com uma bengala, disse que encontrar uma comunidade de ocupantes foi uma forma de salvar a sua vida. "Sou deficiente. Não sobreviveria nas ruas. Tão simples quanto isso", concluiu.