Educação para os media
Os filmes que eles fazem são “portas para outros mundos”
Encontro anual “À Nous Le Cinema!” junta crianças e adolescentes de 14 países diferentes. Este ano conheceram-se e mostraram os seus documentários na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa.
A Sala Félix Ribeiro, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, ainda tem as luzes acesas e o entusiasmo das turmas que vêm de escolas de diferentes partes do mundo sente-se no emaranhado de conversas em diferentes línguas, a diferentes tons. Quando as luzes se apagam, todos sabem o que fazer: o filme vai começar, é hora de fazer silêncio. Há, logo ali, um momento que prova que o cinema é língua universal. A sala está a rebentar pelas costuras porque este ano o encontro de cinema “À Nous Le Cinema!”, momento final do projeto "Cinema, Cem Anos de Juventude", acontece, pela primeira vez, em Lisboa. Ao longo de cinco dias, de 3 a 7 de junho, serão mostrados os filmes que os alunos ali presentes fizeram ao longo deste ano letivo.
Mas o filme que estão prestes a ver não é resultado desta experiência. Na tela gigante começa a passar uma montagem de excertos de Ossos, filme do realizador português Pedro Costa estreado em 1997, quando nenhum daqueles jovens cineastas era sequer nascido. Vê-se o bairro das Fontainhas e outros pedaços de uma Lisboa que já não existe, e embora a história do filme esteja relacionada com um relato que o próprio realizador ouviu, as perguntas que os espectadores lhe farão mais tarde mostram que há temas que ali surgem que ultrapassam fronteiras geográficas e temporais. “Eu reparei que, nos seus filmes, você mostra desigualdades sociais que não estamos acostumados a ver. Porque escolhe esses temas?”, pergunta uma aluna brasileira.
Pedro Costa não está ali ao acaso. Este ano é o padrinho do encontro “À Nous Le Cinema!” e, além de responder às perguntas dos mais novos, irá ver e comentar os seus filmes. À medida que vai respondendo às questões que lhe são colocadas, fala sobre a História do Cinema — a oficial e a do seu cinema. Os braços no ar vão-se levantando, e algumas perguntas denotam uma reflexão em torno destes temas que não começou apenas naquele dia; outra aluna pergunta-lhe como é que se filma um sítio do qual não fazemos parte. No caso de Costa, acabou por fazer parte, já que chegou às Fontainhas através de famílias cabo-verdianas que lhe pediram, no momento da rodagem de Casa de Lava (1994), que entregasse cartas aos seus familiares, quando regressasse a Lisboa. Acabou por ir filmar o bairro, mudar-se para lá e até hoje continua ligado àquelas pessoas e àquelas histórias — conta.
Os alunos ouvem-no, interessados. Mesmo que provavelmente nenhum deles saiba apontar no mapa onde ficava o Bairro das Fontainhas e que muito poucos se relacionem diretamente com a história do seu filme. O que vão aprendendo neste programa em que participam, alguns há já alguns anos, é que o cinema pode ser precisamente sobre isso: encontrar o desconhecido e expandir o mundo interior.
Onze escolas portuguesas, do Centro ao Sul
Na primeira fila da plateia veem-se duas figuras centrais nestes encontros: Alain Bergala, crítico de cinema francês associado aos Cahièrs du Cinema e fundador do projeto “O Mundo à Nossa Volta – Cinema, Cem Anos de Juventude”, e Teresa Garcia, que no início dos anos 2000 criou “Os Filhos do Lumière”. Ambos acreditam numa aproximação ao cinema desde a infância; e que o segredo está em ver os filmes menos óbvios, aprender os códigos do cinema e filmar. Este projeto internacional que os une, para o qual “Os Filhos do Lumière” foram convidados há 18 anos, é a montra de um processo que dura um ano inteiro.
A primeira escola portuguesa a participar neste encontro foi a Escola Secundária de Serpa. Desde então, nunca mais pararam. Teresa Garcia recorda-se de ir falar com o diretor, dizer que podiam levar um projetor para a escola, caso tivessem interesse em receber “Os Filhos do Lumière”. Deixou logo claro que todos eram bem-vindos: “Mesmo aqueles que são maus alunos, mesmo aqueles que não vão às aulas.” Só precisavam de garantir que teriam professores comprometidos com a implementação, porque “são eles que fazem a ponte entre a escola e o projeto”.
Por cá, começou a trabalhar-se a tal aproximação ao cinema. Quando surgiu a oportunidade de ir a um encontro internacional pela primeira vez, o próprio projeto mudou. “Quando convidaram ‘Os Filhos do Lumière’ a integrar este projeto, eles já trabalhavam há doze anos entre franceses. Na altura em que nós e os espanhóis nos juntámos, eles disseram que tínhamos trazido sangue novo. De repente havia já uma outra maneira de olhar para as coisas, e isso ajudou imenso, porque uns viam os trabalhos dos outros, todos os anos nos encontrávamo e mostrávamos os filmes. E isso abre imensas portas para o mundo”, recorda a realizadora e fundadora d’“Os Filhos do Lumière”.
Hoje já são cerca de 50 escolas de 14 países. De Portugal, participam onze, vindas de Lisboa, Sintra, Serpa, Mértola e Évora. O que estas quase duas décadas têm mostrado a Teresa Garcia é que esta é uma experiência marcante tanto para alunos como para professores. Conta que “há antigos participantes, hoje já adultos, que se lembram de pequenos detalhes”; dá o exemplo de um advogado que, numa entrevista feita anos mais tarde no contexto de uma celebração do projeto, disse que para ele “foi essencial para a sua sensibilidade relativamente ao cinema”. Teresa sorri enquanto conta esta história. Ao longo destes 18 anos, foi tendo confirmações de que o trabalho que fazem tem uma consequência.
Ter vontade de ir à escola e orgulho de fazer parte
O primeiro filme feito por alunos, naquela tarde, chega de Tóquio, Japão. No final, o palco enche-se de alunos japoneses entre os 12 e os 18 anos, disponíveis para responder às dúvidas dos colegas sobre Pray, o seu documentário. Entre a tradução do português para o inglês e do inglês para o japonês, todos acabam por se entender. Há uma aluna que diz que gostava de saber mais sobre o templo que aparece em destaque no filme, que religião se pratica lá e onde se situa, porque nunca foi ao Japão. Os alunos funcionam como mediadores da sua cultura e de uma prática que também para muitos deles era desconhecida até ao momento do filme.
A seguir, uma turma inteira de alunos do 4.º ano de São Paulo vai apresentar Vida de Babá, uma curta documental que resulta de uma série de entrevistas feitas a amas num jardim da cidade. No fim, o público percebe que grande parte dos alunos tem uma babá, embora elas entrem no filme, e alguém decide perguntar se ficaram a olhar para elas de outra forma depois de fazerem o filme. Um dos participantes não hesita, pede o microfone e diz que assim que chegou a casa depois das filmagens fez as mesmas perguntas à sua própria ama e percebeu que também ela “tinha uma vida muito difícil”. Todos eles se mostraram transformados pelos encontros que tiveram a propósito do filme.
Casas Fechadas foi o terceiro e último filme da tarde. Foi realizado pelo grupo da Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa, todos alunos do curso de Multimédia. O nome do filme é auto-explicativo: conta a história de uma rua onde maior parte das casas estão fechadas, embora ironicamente uma das últimas moradoras, Guilhermina Toríbio, se tenha estabelecido por lá no pós-25 de Abril, numa altura em que a legislação permitia que as casas passassem para membros da família.
“Eu fiz uma ocupação de uma pessoa de família, com a aprovação de uma lei na Assembleia com a história do direito à habitação, e agora há muita gente a viver na rua e casas fechadas. É uma coisa que dói, porque aquelas casas são pequeninas, mas são nossas. E há pessoas que nem têm casa nem têm dinheiro para a pagar”, diz mais tarde ao PÚBLICO na Escola. As palavras de Dona Guilhermina, como carinhosamente lhe chamam os alunos, lembram a máxima “tanta gente sem casa, tanta casa sem gente”. Decidiu confiar a sua história aos alunos da ES Marquês de Pombal porque acreditou numa troca intergeracional, e até desceu com eles a Avenida da Liberdade na comemoração dos 50 anos do 25 de Abril.
Ângela Santos, aluna do 12.º ano, a única rapariga entre os rapazes que sobem ao palco para apresentar o filme, acredita que muita gente da sua geração não dá valor ao que a geração de Guilhermina viveu durante o Estado Novo. Acredita que também para si, e para o grupo, este filme foi uma oportunidade de contrariar essa tendência. Estes dois anos em que tem feito filmes com o professor Nuno Albano, e o cineasta convidado da escola, Luís Alves de Matos, têm sido muito sobre desafiar-se a si mesma: “Eu não costumava falar muito à frente do público. Hoje em dia, por causa desta experiência, já consigo ter mais interação com o público, já consigo ver filmes de outra forma, já consigo ver detalhes que, se for preciso, aqueles que estão no primeiro ano ainda não conseguem ver.”
Se antes achava que “o cinema era muito fácil, era só chegar aqui, pegar numas pessoas e já está”, hoje está certa de que dá trabalho e requer dedicação, tempo e esforço — as palavras são suas. O colega Miguel Guerreiro, do 11.º ano, acrescenta que vai haver dias em que vai correr mal, outros em que vai correr bem, mas que tudo isso faz parte. O segredo está em não desistir e confiar no processo.
O professor Nuno Albano confirma. Também ele não tem desistido de participar com as turmas que lhe vão chegando, e quem está por dentro garante que é um professor dedicado. Começa a trabalhar com as turmas de 11.º ano, enquanto as de 12.º funcionam numa lógica de mentoria dos mais novos; no ano seguinte, os que eram caloiros passam a mentores. “O objetivo do projeto não é fazer deles cineastas”, explica. É “mais sobre a relação deles com o cinema do que sobre a produção em si”.
E há outras competências que se ganham: “Há alunos que não falavam em público e passam a falar à vontade, como é o caso da Ângela, que foi apresentar o filme do ano passado à Alemanha. Além disso, eles ganham competências técnicas e outra coisa que me interessa muito, que é uma vertente motivacional. Eu quero que estes miúdos sintam a escola como deles e que sintam que valeu a pena ir à escola. E que, nomeadamente, valeu a pena ir à nossa escola e fazer parte do projeto. O projeto não pode ser meu ou do Luís, tem de ser deles.”