Centenas de peregrinos de entre as mais de 1300 pessoas que morreram sob o forte calor da peregrinação do hajj a Meca este ano não estavam oficialmente registados junto das autoridades sauditas, pelo que muitos não tiveram acesso a serviços vitais como autocarros com ar condicionado e tendas de refrigeração.
Estas mortes tornam evidentes os desafios cada vez maiores com que os organizadores sauditas terão de lidar, à medida que os efeitos das alterações climáticas se tornarem cada vez mais evidentes no Médio Oriente. A exigência de que os peregrinos peçam autorizações oficiais para aceder a serviços como tendas de refrigeração é um problema. Os peregrinos não registados que fazem esta peregrinação à cidade santa de Meca, na Arábia Saudita, que todos os muçulmanos devem fazer pelo menos uma vez na vida, podem ficar cada vez mais expostos aos riscos do calor intenso.
Ao mesmo tempo, os preços elevados dos pacotes oficiais de viagem do hajj estão a levar alguns muçulmanos a optarem por rotas não oficiais mais baratas, e a explorarem a flexibilização das restrições a outros tipos de vistos sauditas. Isto apesar de não terem as autorizações necessárias para a viagem.
O facto de muitos peregrinos terem chegado a Meca sem estarem registados com a organização dificultou a prestação de serviços e cuidados, disse o porta-voz de segurança do Ministério do Interior saudita, coronel Talal bin Shalhoub, numa entrevista ao canal de televisão saudita al-Arabiya.
No entanto, críticos do Governo afirmam que todos os peregrinos, independentemente do seu estatuto, devem ser protegidos do calor. Alegam que este ano as autoridades reprimiram os participantes não autorizados.
"Este enfoque nas visitas registadas e não registadas é um falso problema. Se alguém precisar de ajuda, deve ter acesso a ela", afirmou Khalid al-Jabri, médico que trabalhou para a agência de segurança saudita que supervisiona o hajj e que faz actualmente parte da oposição saudita no exílio.
A Human Rights Watch emitiu um comunicado sobre as mortes na peregrinação deste ano, em que frisa que "as autoridades sauditas têm a obrigação de proteger a saúde das pessoas de riscos identificados, como o calor extremo, que a crise climática está a tornar mais frequente e intenso".
O gabinete de imprensa internacional da Arábia Saudita não respondeu em tempo útil a um pedido de comentário.
O ministro da Saúde da Arábia Saudita, Fahad Al-Jalajel, afirmou num comunicado que as autoridades sanitárias prestaram serviços a peregrinos não registados em 141 mil ocasiões durante o hajj.
Morte ao sol
No entanto, Jalalel reconheceu que os peregrinos não registados "percorreram longas distâncias sob a luz directa do sol, sem abrigo ou conforto adequados". Acrescentou que 83% das 1301 vítimas mortais eram peregrinos não registados.
Alguns peregrinos comentaram que quem não estava registado teve de caminhar, por vezes, com temperaturas superiores a 50 graus Celsius. Em comparação, a maioria dos peregrinos registados pôde fazer grande parte da viagem em autocarros com ar condicionado.
Uma testemunha da Reuters disse ter visto milhares de pessoas a caminhar na auto-estrada perto de Mina, uma vasta cidade de tendas a caminho de Meca, em vez de utilizarem autocarros, como a maioria dos peregrinos registados.
Os peregrinos disseram à Reuters que os funcionários sauditas verificavam regularmente os autocarros antes da partida, para garantir que apenas quem estava registado tinha entrado a bordo.
Este ano, quase dois milhões de peregrinos dirigiram-se a Meca para cumprir os ritos do hajj.
Um risco crescente
Não se sabe qual a dimensão do afluxo de peregrinos não autorizados. Mas o director da Segurança Pública saudita, Mohammed bin Abdullah al-Bassami, afirmou este mês que o reino tinha deportado 171.587 pessoas que não residiam em Meca, numa aparente referência às pessoas que foram apanhadas a tentar realizar o hajj sem autorização.
As mortes relacionadas com o calor durante o hajj não são novidade, mas as alterações climáticas tornaram esta peregrinação cada vez mais perigosa.
Um estudo realizado em 2021 concluiu que, se o mundo aquecer 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, o risco de insolação para os peregrinos no hajj será cinco vezes maior. O mundo está a caminho de atingir 1,3 C de aquecimento na década de 2030.
"É uma situação que só vai piorar com o tempo", disse Elfatih Eltahir, co-director do Observatório Jameel e professor do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT), que publicou em 2019 um artigo sobre os perigos do stress térmico.
À procura de turistas
Apesar destas preocupantes projecções climáticas, a Arábia Saudita tem manifestado a vontade de aumentar o número de turistas religiosos. O objectivo é que até 2030 consiga acolher anualmente 30 milhões de peregrinos para o hajj e a umra, uma peregrinação a Meca que pode ser feita durante todo o ano. Esta meta faz parte da estratégia mais ampla para diversificar a economia para além do petróleo.
Em 2019, a Arábia Saudita ganhou cerca de 12 mil milhões de dólares (11.200 milhões de euros) por ano com o hajj e a umra, segundo dados oficiais.
As viagens do hajj podem custar entre 5000 e 10.000 dólares por pessoa, e o preço é uma das razões pelas quais muitos optam por pacotes não oficiais.
Uma peregrinação desigual
"As finanças são... um factor importante", disse Khaled El Sherbini, proprietário de uma agência de turismo com sede no Egipto. Segundo explicou, um egípcio pode fazer o hajj "sem registo" por uma soma equivalente a 580 a 775 euros. Isto é uma pechincha, se compararmos com um pacote oficial, com todas as autorizações e um pacote oficial que pode custar mais de 5800 euros. Os preços têm aumentado muito: em 2018, um pacote para o hajj teria custado cerca de 2800 euros.
O reino saudita está determinado a proteger os pacotes oficiais do hajj. Antes da peregrinação, o Ministério do Interior disse que quem for apanhado a transportar um peregrino não registado poderá ser condenado a seis meses de prisão e a uma multa até 50.000 riyals (mais de 12 mil euros).
A unidade de crise egípcia encarregada de investigar as mortes dos peregrinos egípcios declarou, no sábado, ter suspendido as licenças de 16 empresas de turismo e que as remeteu para acção judicial.
Os peregrinos que compraram pacotes mais baratos disseram à Reuters que foram colocados em tendas apinhadas com 80 a 200 pessoas e com refrigeração limitada. Alia Asma, uma peregrina indiana, disse que teve de percorrer distâncias mais longas do que os peregrinos que compraram pacotes mais caros.
"Os ricos podem comprar apartamentos luxuosos e os pobres vêm para as tendas", disse Irfan Al Alawi, diretor executivo da Fundação de Investigação do Património Islâmico.