Sandrine Dixson-Declève: “As conferências do clima tornaram-se feiras de negócios”

A co-presidente do Clube de Roma está preocupada com o crescimento da extrema-direita na Europa e com o impacto que esta pode ter na luta contra as alterações climáticas.

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Protesto de activistas pelo clima na COP28, no Dubai, que aconteceu em Dezembro MARTIN DIVISEK / EPA
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Sandrine Dixson-Declève está muito preocupada com as consequências das alterações climáticas no planeta. “Já estamos quase a ultrapassar os 1,5 graus [Celsius]”, afirmou, num tom inquieto, num debate na conferência We Choose Earth Tour, organizada pela EDP, em Munique, na Alemanha. A cientista especialista em ambiente, sustentabilidade e finanças referia-se à meta definida no Acordo de Paris, em 2015, em que a comunidade internacional se comprometeu a limitar a subida da temperatura bem “abaixo dos dois graus Celsius” e a prosseguir esforços para “limitar o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius” em relação aos níveis pré-industriais. Tudo para evitar as consequências mais graves das alterações climáticas.

“Estamos a observar fenómenos extremos em todo o mundo”, assinalou a co-presidente do Clube de Roma, uma plataforma criada para reflectir e promover soluções para as causas mais urgentes no planeta, como o aquecimento global. Sandrine Dixson-Declève mencionava as ondas de calor e as cheias, que estão associadas a alterações climáticas, e que têm causado a morte de milhares de cidadãos em todo o mundo. “O impacto já chegou às pessoas.”

Até há bem pouco tempo, Sandrine Dixson-Declève fez parte do Grupo de Especialistas em Impacto Económico e Social da Comissão Europeia e do conselho geral da EDP. Tem sido também presença assídua em conferências sobre ambiente e sustentabilidade. Ao longo da conversa em que participou em Munique, esta quinta-feira, disse que “não temos feito o suficiente pelo ambiente”, mas deixou uma nota de esperança: ainda vamos a tempo. Para o conseguir, pediu que todos fossemos activistas pelo clima, desde políticos, aos cidadãos, até empresas. À margem da conferência, que decorreu pela segunda vez este ano, o PÚBLICO fez-lhe algumas questões sobre alterações climáticas e transição energética.

Ainda vamos a tempo de abrandar as consequências mais graves das alterações climáticas no mundo?
Neste momento, não estamos, de todo, a caminho de cumprir as metas que tínhamos estabelecido. [Nos últimos anos] a temperatura média do planeta já subiu 1,3 graus Celsius a mais [relativamente aos níveis pré-industriais]. Vai ser muito difícil cumprir as metas do Acordo de Paris, em que se queria limitar a subida da temperatura acima de 1,5 graus Celsius [em relação aos níveis pré-industriais]. O que ainda é mais preocupante é que temos novos dados do Instituto Potsdam, da Alemanha, que mostram que, se ultrapassarmos esses 1,5 graus, iremos ter perdas de 10%, por ano, no PIB dos países. Estamos a ver os custos de não termos feito nada durante muito tempo. Embora em algumas partes do Norte da Europa tenha chovido durante seis meses, em Portugal, Espanha e na Grécia foram atingidas as temperaturas mais altas de que há registo. Já estamos a viver as alterações climáticas.

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Sandrine Dixon-Declève Max Wuerttemberger

O que é mais preocupante relativamente às consequências das alterações climáticas?
As pessoas mais vulneráveis são as mais afectadas pelas alterações climáticas em todo o mundo. Por exemplo, na Índia e no Brasil têm-se verificado muitas mortes devido a elevadas temperaturas. Quando digo temperaturas elevadas, refiro-me a valores entre os 45 e os 50 graus Celsius. Como essas pessoas não têm acesso a ar condicionado, não conseguem sobreviver ao calor extremo. Por isso, têm aumentado as taxas de mortalidade relacionadas com as altas temperaturas. Também estamos a verificar que há cada vez mais migração ligada ao aumento de temperatura, tanto da América Latina para os Estados Unidos como de África para a Europa, o que criará uma maior instabilidade nos sistemas políticos. Tudo isto é muito preocupante porque está a criar insegurança em todo o mundo.

Na sua opinião, o que deve ser mais urgente para minimizar os efeitos mais graves das alterações climáticas?
Temos mesmo de acabar com a energia proveniente dos combustíveis fósseis. Precisamos de substituir os combustíveis fósseis o mais rapidamente possível e já temos soluções com as energias renováveis. Mesmo assim, há investidores que continuam a dizer: “Podemos começar a investir, aos poucos, nas energias renováveis, mas continuamos ainda a queimar combustíveis fósseis.” Mas quanto mais queimarem combustíveis fósseis, mais emissões de gases com efeito de estufa estão a ser emitidas para o planeta.

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Trabalhadora rural na região de Androy, em Madagáscar, que tem sido afectado por fenómenos extremos ligados às alterações climáticas ALKIS KONSTANTINIDIS

Tem participado nas Conferências das Partes (COP), das Nações Unidas, onde se discute como se podem reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e foi alcançado o compromisso do Acordo de Paris em 2015. Está satisfeita com as últimas metas estabelecidas nessas conferências?
Claro que não e até já apoiei uma das primeiras propostas de reforma para as COP, juntamente com outros cientistas e economistas. As COP tornaram-se feiras de negócios, porque permitiram que as empresas de petróleo participassem em grande escala e promovessem lá os combustíveis fósseis. Contudo, penso que têm de continuar a ser feitas. Embora não deva ir à próxima COP, porque estou a ficar um pouco cansada.

Temos de nos esforçar mais do que estamos a esforçar agora e estou sobretudo a falar dos decisores políticos. Neste momento, estou a ajudar alguns países para que possam fazer a transição energética: tanto estou a apoiar assembleias de cidadãos para que percebam que essa transição é realmente importante, como estou a trabalhar com economistas em novos modelos e com empresas para que se melhorem as novas tecnologias a favor do ambiente. Temos de ter uma abordagem multidisciplinar.

Tem feito parte de conselhos gerais de empresas como a EDP e a BMW. Estas empresas estão a fazer o suficiente para minimizar os efeitos das alterações climáticas?
A EDP comprometeu-se a substituir a energia proveniente dos combustíveis fósseis por energias renováveis. A BMW e outros fabricantes têm ainda de aumentar a electrificação dos seus automóveis. Há um problema em todas essas empresas: os Governos têm de compreender as necessidades de investimento e facilitar o processo de licenciamento para que se avance com a transição energética de forma mais rápida. Se a União Europeia quer competir com os Estados Unidos e a China nesta área, tem de se melhorar o trabalho em conjunto dos Estados-membros, bem como aumentar o investimento em infra-estruturas ligadas à transição energética.

A transição energética pode também ter as suas consequências: como casos em que se têm de cortar árvores para usar terrenos para infra-estruturas de energia renovável. Quais podem ser essas consequências e como podem ser minimizadas?
A decisão tem de ser sempre acompanhada por uma avaliação de impacte ambiental. Só assim se perceberão os impactes no ambiente e na sociedade. Até que ponto é que essas árvores [que vão ser cortadas] são compensadoras de carbono? E de que forma precisamos da infra-estrutura de energia renovável que vai ser construída?

Mas como podem ser minimizadas as consequências?
As empresas têm de ter mensagens mais fortes dos decisores políticos. Têm de saber, por exemplo, se a União Europeia sempre prosseguirá com o Pacto Ecológico Europeu ou se investidores continuarão a apoiar as mudanças para a energia limpa. É preciso perceber que o apoio dos Governos continua a ser dado. Além disso, os cidadãos precisam de compreender isso: as empresas de combustíveis fósseis fizeram uma grande campanha para mostrar que o aumento do custo da energia aconteceu devido às energias renováveis. Isso não é verdade. O custo da energia aumentou devido à invasão ucraniana e à situação em Gaza. O custo da energia aumenta porque o nosso mercado está ainda ligado ao preço do gás. Portanto, há muitas falácias sobre os novos produtores de energia, porque aqueles que estão no poder – as empresas de combustíveis fósseis – estão a tentar criar essas narrativas.

A Europa quer tornar-se o primeiro continente com impacte neutro no clima até 2050 e com cortes de mais de 50% nas emissões de gases com efeito de estufa até 2030. É alcançável com a informação que temos neste momento?
Estamos a caminho de atingir essas metas. Mas, se recuarmos de alguma forma, não vamos conseguir. A esse nível, estou muito preocupada com o crescimento dos partidos de extrema-direita na Europa. A extrema-direita criou uma narrativa de medo sobre a migração e as alterações climáticas, que é falsa. O meu apelo é que o Pacto Ecológico Europeu continue a ser o nosso horizonte e que nos oriente numa transição energética justa. Também temos de aumentar a tributação dos lucros das empresas petrolíferas e de gás. E, claro, têm de ser aprovadas novas infra-estruturas ligadas às energias renováveis, como postos de carregamento. Há muito trabalho pela frente.

O PÚBLICO viajou a Munique a convite da EDP

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