Uma em cada seis crianças açorianas da Ribeira Grande abandona ou falta à escola

Os Açores são a segunda região da Europa com a maior taxa de abandono escolar precoce (21,7%). O valor é quase três vezes superior à média nacional (8%), segundo o INE.

Foto
Abandono escolar nos Açores é quase três vezes maior do que no continente Daniel Rocha
Ouça este artigo
00:00
09:21

Uma em cada seis crianças das escolas primárias da Ribeira Grande abandona ou falta frequentemente às aulas, revelou o presidente da autarquia açoriana, responsável pelo primeiro plano municipal de combate ao absentismo e abandono escolar da ilha.

Os Açores são a segunda região da Europa com a maior taxa de abandono escolar precoce (21,7%), um fenómeno que se mede contando os jovens entre os 18 e os 24 anos que deixaram de estudar antes de terminar o ensino secundário. Mas este é o resultado de um conjunto de situações que começam muitos anos antes, salientou à Lusa o sociólogo Fernando Diogo, apontando o insucesso escolar e o absentismo como primeiros sinais de perigo.

Na Ribeira Grande, há inúmeros casos de abandono logo nos primeiros anos de escola, observou o presidente da autarquia, Alexandre Gaudêncio, em entrevista à Lusa. À frente do concelho que “lidera as estatísticas pela negativa”, o autarca pediu um estudo que detectou um “fenómeno completamente novo” e preocupante: “Temos uma taxa de abandono e absentismo no 1.º ciclo de 16%, o que não é de todo comum”.

O fenómeno é mais visível nas vilas piscatórias de Rabo de Peixe e Porto Formoso, entre os alunos de famílias mais pobres, muitas a viver em bairros sociais construídos pela autarquia.

Na Escola Básica Integrada de Rabo de Peixe avançam-se explicações para um abandono tão elevado. O presidente do conselho executivo, André Melo, lembrou que o levantamento foi feito “num ano atípico”, no pós-pandemia, depois de os alunos terem estado fechados em casa. Quando as escolas reabriram, os pais continuavam receosos “e o regresso às aulas foi muito gradual”, disse, assegurando que a situação melhorou e que os casos actuais se devem, essencialmente, à emigração.

A literatura aponta várias razões para não querer estar na escola, sublinhou Fernando Diogo, também professor da Universidade dos Açores e investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS). Quando os jovens são diariamente confrontados com as suas dificuldades, tendem a querer desistir, explicou o professor. Nestes casos, a família pode fazer a diferença.

Pais com pouca escolaridade e dificuldades em ver a escola como um meio para uma vida melhor estão também muitas vezes associados ao abandono, acrescentou o investigador.

O “primeiro plano municipal de combate ao absentismo e abandono escolar”, apresentado no início deste ano lectivo, prevê que sempre que “um aluno não aparece há algum tempo na escola deverá ser comunicado imediatamente ao município”, que envia para casa da criança um técnico de serviço social para tentar perceber o que se passa, explicou o autarca.

A taxa de abandono escolar precoce nos Açores (21,7%) é quase três vezes superior à média nacional (8%), segundo dados do Instituto Nacional de Estatística. Uma diferença que o sociólogo Fernando Diogo disse que “ninguém consegue explicar” e por isso avançou com um projecto, que tem como hipóteses as características do tecido social dos Açores, onde há mais pobreza e menos escolaridade base da população.

Se no continente, a maioria da população tem no mínimo o 9.º ano, nos Açores é exactamente ao contrário: a maioria deixou de estudar antes de chegar ao 7.º ano, relatou à Lusa a Secretária Regional de Educação, Sofia Ribeiro. O Governo Regional dos Açores apresentou no mês passado a “Estratégia da Educação” que tem como objectivo reduzir a taxa de abandono escolar precoce de 21,7% para 15% até 2030 e aumentar a percentagem da população com pelo menos o 9.º ano.

Ainda há quem fuja da escola para brincar ou ganhar dinheiro

Iuri chegou a ter “a polícia à perna”, porque passava as tardes a fumar charros com um grupo pouco recomendável. Alexandra faltava diariamente às aulas e, quando ia, “respondia mal aos professores”. Erico começou a trabalhar na lavoura e depois numa pizzaria para ajudar nas contas em casa até que, um dia, desistiu de estudar.

Nenhum gostava da escola. Todos a abandonaram, mas foram encontrados por técnicos que lhes ofereceram um projecto alternativo. As vidas destes três jovens, de diferentes zonas da ilha de São Miguel, cruzaram-se na Perkursos, um projecto educativo que recebe anualmente cerca de 90 alunos entre os 14 e os 25 anos.

“A maioria já está em abandono escolar. Não conseguem estar na escola. Geralmente, faltaram a algumas aulas no 1.º período e no 2.º período já não apareceram. Ficaram pelos corredores, não foram um dia, não foram dois… até que deixam de ir”, conta à Lusa Mónica Bulcão, directora técnica da escola.

Chegam sinalizados por várias entidades, desde escolas a comissões de menores, mas também tribunais e segurança social. As histórias de absentismo de Iuri, Alexandra e Erico também já estavam registadas nos processos na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ).

Em 2022, as CPCJ dos Açores receberam 433 comunicações de potenciais situações de perigo reportadas pelas escolas. Nesse ano, houve 353 denúncias por estar em causa o direito à educação e 278 casos de absentismo escolar.

Uma das medidas é identificar os alunos que desaparecem do sistema sem terminar o 12.º ano, disse a Secretária Regional de Educação. Este ano, pela primeira vez, os serviços identificaram os que tinham deixado de estudar antes do tempo para lhes propor que “enveredassem por outros percursos de formação”, afirmou Sofia Ribeiro.

A Perkursos é um desses projectos. Há um estúdio de som, onde os alunos podem gravar músicas ou podcast, uma gigantesca sala para aulas de expressão dramática. Há um espaço ao ar livre, onde até podem fumar. Mas os alunos apontam como principal diferença a relação com os professores.

“Nem podemos dizer que são professores, porque os tratamos mais como amigos. Estão sempre com a gente, sempre disponíveis”, contou Iuri, que chegou à escola, fez “tudo direitinho e, numa semana, o processo foi arquivado”. No ano passado, terminou o 9.º ano e agora está empenhado em concluir o secundário.

No entanto, nem todos os casos são de sucesso, reconheceu Mónica Bulcão. Aqui, também há muito absentismo. “Eles já levaram muita pancada na vida por vários motivos e o primeiro trabalho é recuperá-los como pessoas”, sublinhou o psicólogo da escola.

Segundo João Pedro Nunes, na Perkursos trabalha-se para que acreditem que “vão conseguir fazer as contas e saber o inglês que precisarem para a sua vida”. Para a professora Paula Medeiros, a quem coube, este ano, a tarefa de ensinar Matemática, muitas vezes o sucesso está apenas em ver os alunos entrar na sala: “Aqui é um refúgio, porque a própria família nem sempre é a ideal, nem sempre é aquele porto de abrigo que deveria ser”, sublinha.

Alexandra Garcia é um desses casos. Disse que a sua família “não é um exemplo a seguir”: “Nunca fomos muito unidos”, lamentou a rapariga de 19 anos que está agora a tentar terminar o 9.º ano.

As escolas açorianas têm um rácio de psicólogos por aluno muito superior à média nacional, adiantou a secretária regional de Educação, indicando que há um psicólogo para cada 542 alunos açorianos (mais 28% do que no continente). As turmas também são muito mais pequenas: “No 1.º e 2.º ciclos, uma turma padrão tem 18 alunos”, exemplificou.

As estatísticas mostram uma melhoria [na taxa de abandono escolar] desde o início do século. No ano passado, a taxa rondou os 27% e este ano desceu para 21,7%. Sofia Ribeiro disse que é “bastante animador”, mas reconheceu que ainda “é preciso continuar a trilhar esse percurso”.

Cursos para atrair jovens numa das escolas com mais abandono nunca abriram

A Escola Básica Integrada de Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, é apontada como um dos “pontos negros” do insucesso e abandono escolar: “A taxa de abandono nos Açores é o dobro do continente e na escola de Rabo de Peixe é o dobro da média açoriana”, lamentou o presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande, Alexandre Gaudêncio, em entrevista à Lusa.

Quase metade dos alunos que estavam em risco de chumbar no final deste primeiro semestre era por abandono escolar, revelou o presidente do conselho executivo da Escola Básica Integrada de Rabo de Peixe, André Melo. O levantamento feito este ano mostrou que 47% destes estudantes do 2.º e do 3.º ciclos tinham muitas faltas de assiduidade.

Para combater o insucesso, o Governo gastou cerca de 20 milhões de euros na requalificação da escola: o moderno edifício tem hoje um polidesportivo, piscinas, uma pista de atletismo com vista para o mar e oficinas de Carpintaria, Cerâmica, Mecanotecnia, Electrotecnia e Culinária.

As oficinas estão prontas a usar, mas faltam equipamentos e materiais para trabalhar, denunciou o director.

A gigantesca sala de culinária, por exemplo, parece um cenário de um programa de televisão ou de uma telenovela. Tem uma enorme ilha com um fogão e exaustor, um lava-loiças e gigantescos armários com electrodomésticos embutidos, mas não há nada dentro dos armários: Nem loiça, nem alimentos ou condimentos para cozinhar.

“Temos cinco oficinas, mas ainda não estão a funcionar por falta de financiamento. Não conseguimos comprar o material necessário para fazer aulas diferentes para os alunos, sendo que é isto que eles precisam”, desabafou André Melo.

Com estes projectos, os alunos poderiam interessar-se novamente pela escola, em vez de “estarem sentados o dia inteiro, com um caderno à frente e um professor a dar aulas”, disse.

No entanto, a única oficina que está a ser usada é a de carpintaria. Os materiais que os alunos usam são lixo apanhado na praia pelos professores, contou à Lusa Vladimir Ferreira, docente de Educação Tecnológica.

Quando a Lusa visitou a escola, estavam apenas dois alunos na aula de Vladimir Ferreira. O professor disse que normalmente tem mais de uma dezena na sala, mas na altura das festas do concelho as faltas aumentam.

Sugerir correcção
Comentar