Além de continuar “velho e macho”, o Conselho de Estado guinou à direita

Bem sabemos que o Conselho de Estado pouco ou nada decide e que, para cúmulo, este Presidente da República pouco recorre a consultas além do seu apurado instinto político.

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A utilidade do Conselho de Estado pode ser discutida e a sua importância para o contexto político questionada. Mas a sua composição não pode ser ignorada. Enquanto existir este órgão com membros escolhidos por representantes políticos legitimados pelo voto, não podemos baixar os padrões de exigência. Depois da eleição dos membros eleitos pela nova Assembleia da República, confirma-se o que se antecipava: o Conselho de Estado não espelha a realidade do país.

Desde logo, salta a vista a gritante desproporção entre homens e mulheres, como tão bem notou Susana Peralta no seu artigo de opinião neste jornal. Em 19 membros, apenas quatro são mulheres: Leonor Beleza, Lídia Jorge, Joana Carneiro e a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. As três primeiras escolhidas pelo Presidente da República e a última por inerência. Nenhuma escolhida pelos partidos.

Em segundo lugar, a média de idades dos membros deste órgão é igual à idade de reforma em Portugal: 66 anos. Entende-se que para um órgão consultivo do Presidente da República deva existir alguma senioridade e uma experiência acumulada relevante. Sabemos que o facto de os ex-presidentes da República terem assento por inerência não ajuda a fazer descer esta média. Assim como os cargos que dão direito a estar sentado à volta da mesa do Conselho de Estado são muitas vezes desempenhados por pessoas que precisam de muitos anos carreira para lá chegar, como os casos do presidente do Tribunal Constitucional ou do presidente da Assembleia da República. Ainda assim, este continua a ser um órgão demasiado envelhecido na sua composição.

Infelizmente, estes dois factos têm sido mais ou menos transversais às diversas composições que o Conselho de Estado foi tendo ao longo dos anos. No entanto, existe uma terceira observação sobre a qual vale a pena refletir e que incide especificamente sobre a atual composição. Destes 19 membros, apenas dois não são de direita. Descontemos, por honestidade intelectual, os casos das duas independentes nomeadas pelo Presidente da República (Joana Carneiro e Lídia Jorge) e dos dois independentes por função (presidente do Tribunal Constitucional, José João Abrantes, e provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral). São, portanto, dois em 15.

A questão é relevante não por uma questão ideológica, mas pela desproporção em si. E pelo que ela nos diz sobre a falta de representatividade deste órgão.

Nas maiorias absolutas de Cavaco Silva, por exemplo, houve sempre, pelo menos, cinco representantes de centro-esquerda ou de esquerda no Conselho de Estado (Álvaro Cunhal chegou a ter assento). É certo que o Presidente da República era então o socialista Mário Soares, o que ajudava a alcançar este equilíbrio. Tal como nos oito anos de Governo de António Costa o equilíbrio entre esquerda e direita neste órgão foi sempre preservado pelo facto de haver um primeiro-ministro do PS e um Presidente da República do PSD.

Quando nos dois palácios houve coexistência de cores políticas, o desequilíbrio acentuou-se: com Jorge Sampaio e António Guterres havia apenas três sociais-democratas e com Cavaco Silva e Passos Coelho havia pelo menos cinco socialistas (dois eram ex-presidentes da República). Mas a estabilidade dessas legislaturas, a composição do Parlamento e a representatividade verificada nas eleições nacionais justificavam, em certa medida, essa desproporção. Podia considerar-se que havia alguma representatividade. Mas hoje em dia a questão é paradoxal.

Senão veja-se: temos atualmente o quadro parlamentar mais fragmentado desde o 25 de Abril; PSD e PS detêm o mesmo número de deputados; o PS é o maior partido autárquico; o Governo Regional da Madeira continua preso por arames; e o PS acaba de sair vitorioso, ainda que por uma curta margem, das eleições europeias. O que é que isto nos diz? Que temos um país dividido, embora com uma inclinação para a direita. No entanto, é precisamente na altura em que temos o quadro político mais instável, mais fragmentado e mais imprevisível, quer a nível nacional quer a nível regional, que temos também o Conselho de Estado mais desequilibrado de sempre.

Bem sabemos que o Conselho de Estado pouco ou nada decide e que, para cúmulo, este Presidente da República pouco recorre a consultas além do seu apurado instinto político, alimentado por Fortimel, por idas noturnas à Santini ou por passeios à beira-rio, tornando o adjetivo “consultivo” deste órgão num mero adorno decorativo.

Se a isto somarmos alguma perda de solenidade do Conselho de Estado nos últimos anos, com reuniões interrompidas para serem retomadas semanas depois ou com fugas de informação sucessivas e seletivas, não estará na altura de olharmos para este tema com seriedade? Para que serve e a quem serve afinal o Conselho de Estado? Os moldes em que existe atualmente fazem sentido ou precisam de uma verdadeira reforma?

Em vez de esperarmos 30 anos para podermos ter acesso à atas das reuniões, procuremos as respostas hoje. Olhemo-nos ao espelho para evitarmos lamentos quando só pudermos olhar pelo retrovisor.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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