Os riscos da poluição invisível do ar junto aos hospitais

Monitorização feita pela Zero, em parceria com a Boehringer Ingelheim, revelou que as unidades de saúde, frequentadas por pessoas em situação vulnerável, são também áreas críticas quanto a poluentes.

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O cenário é comum a inúmeras unidades de saúde no país. Para chegar à porta do hospital ou do centro de saúde, o utente tem de passar por ruas adjacentes onde o tráfego rodoviário é muito intenso. E, mesmo no interior do recinto, tem de atravessar um parque automóvel extenso. Isto significa que até entrarem nestes edifícios pessoas em situação mais vulnerável, como crianças, grávidas, idosos, doentes pulmonares e cardíacos, estão expostas a poluição atmosférica.

Esta é considerada pela Agência Europeia do Ambiente o maior risco ambiental para a saúde humana. E, no interior, será que a envolvência tem consequências o ar que circula, podendo constituir um novo local potencial de risco? “O ar exterior vai influenciar a qualidade do ar interior”, refere o presidente da Associação Zero, Francisco Ferreira.

Tendo esta perspectiva em mente, esta associação ambientalista, em parceria com a Boehringer Ingelheim Portugal, desenvolveu uma campanha de monitorização da qualidade do ar ambiente ao redor de unidades de saúde em três cidades portuguesas, entre Outubro de 2023 e Abril de 2024. Um dispositivo móvel foi colocado, em diferentes períodos temporais, junto ao Instituto Português de Oncologia, no Porto, à Unidade de Saúde Familiar Norton de Matos, em Coimbra. Em Lisboa, esteve nas imediações do Hospital CUF Descobertas, Hospital Pulido Valente e da Unidade de Saúde Familiar Almirante.

As conclusões permitem, nas palavras do presidente da Associação Zero, “um novo olhar sobre o que são áreas mais críticas do ponto de vista de variáveis ambientais”, no caso, a qualidade do ar. Os níveis de partículas inaláveis (PM10) e finas (PM25) e de dióxido de azoto (NO2) detectados estiveram sempre em conformidade com a legislação nacional, que resulta de uma directiva europeia já de 2008. Mas, em Coimbra e em Lisboa, houve concentrações superiores aos níveis recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – e que, segundo Francisco Ferreira, são “muito mais exigentes”.

É expectável que as legislações europeia e nacional evoluam gradualmente para esta recomendação da OMS a partir de 2030. “Das ultrapassagens dos valores limite diários recomendados pela OMS ressaltam desafios significativos que ainda precisam de ser superados para garantir uma qualidade do ar óptima e a protecção da saúde pública”, reconhece o relatório.

“Os dados recolhidos confirmam que é necessário dar mais atenção a este tema”, referiu Vanessa Jacinto durante a apresentação do estudo, que decorreu recentemente no auditório do PÚBLICO, em Lisboa. A Head of Market Access and Public Affairs da Boehringer Ingelheim Portugal sublinhou que “as instituições de saúde são ambientes complexos e sensíveis. Ainda que sejam espaços por definição que visam melhorar o bem-estar da população, acabam por se tornar locais de risco para pessoas mais frágeis.” Crianças, idosos, grávidas e pessoas com problemas pulmonares e cardíacos “não só têm de visitar regularmente estes espaços, como passam neles muito tempo.”

Vanessa Jacinto alertou, assim, para os riscos escondidos. “Até há bem pouco tempo, a poluição atmosférica era considerada um perigo exterior, tendo em comum a crença de que o espaço interior oferecia protecção. Mas a verdade é que a qualidade do ar interior é influenciada por vários factores, desde as actividades humanas que ali são realizadas, aos produtos usados e aos poluentes externos, que podem entrar através das janelas, portas ou da ventilação.”

De acordo com dados oficiais, citados por Francisco Ferreira, a má qualidade do ar é o principal factor responsável por 7 milhões de mortes prematuras anualmente: 4,2 milhões estão associadas ao ambiente exterior; 2,8 milhões, dizem respeito ao ar interior. Em Portugal, segundo divulgou em 2023 a Agência Europeia do Medicamento, morrem 550 pessoas por ano devido à poluição por dióxido de azoto. E “as partículas [inaláveis e finas] têm uma dimensão de afectação muitíssimo maior” – são 2.100 as mortes que lhes são atribuíveis, com peso em doenças cardiovasculares e até “noutras que não atribuiríamos à própria qualidade do ar”, como a diabetes, identificou o presidente da Zero.

Comunicar, planear e reduzir

É evidente, referiu Francisco Ferreira, que “todas as unidades [avaliadas] estão em cidades que têm concentrações por vezes bastante elevadas de poluentes”. Além do tráfego rodoviário, fonte comum do dióxido de azoto e das partículas finas e inaláveis e que está identificado como “o principal problema”, existem também outras fontes possíveis para estes poluentes, como a queima de biomassa, os processos de combustão nos solos agrícolas e até fenómenos naturais, como os vulcões, poeiras ou incêndios naturais.

Sobre estes últimos poluentes, nomeadamente o PM10 e o PM25, Anabela Santiago, técnica superior da Divisão de Saúde Ambiental e Ocupacional da Direcção-Geral da Saúde, sublinhou a importância de haver informação disponível para que os riscos possam ser comunicados às autoridades de saúde. “Era importante conjugarmos esforços no sentido de termos informação relativamente a outros poluentes, com um sistema de previsão para que possamos atempadamente fazer os alertas”, referiu. Francisco Ferreira concordou que “a antecipação de informação preventiva é muito importante.”

Mas há muito mais a ser feito. A Associação Zero apresentou algumas recomendações. “Tudo o que sejam medidas de acalmia de tráfego são essenciais”, referiu Francisco Ferreira, exemplificando com a redução da velocidade, o incentivo ao transporte colectivo, desde a promoção de um sistema contínuo de shuttle para as unidades até à redução da dimensão do parque de estacionamento e da implementação de pagamento.

Numa perspectiva futura, Anabela Santiago defendeu que questões como a qualidade do ar e o ruído têm de ser tidas em conta nas escolhas de novas localizações para unidades de saúde. “É fundamental o planeamento urbano e em saúde” e uma ligação aos transportes.

João Queiroz e Melo, que também participou no debate, acrescentou que, “só neste século, se começou a ligar a saúde e o ambiente.” Para o vice-presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente, é essencial tanto as pessoas individualmente no seu dia-a-dia como os decisores “mudarem de atitude”.

O cardiologista deu inúmeros exemplos de mudanças de comportamento, como abrir as cortinas em vez de acender luzes em dias de sol ou optar por pulseiras de identificação dos doentes que pesam 3 gramas e não as de 5 ou 8 gramas. “Em Portugal são usadas pelo menos 8 milhões [de pulseiras]. Se todos os hospitais tivessem as mais leves, poupavam-se 10 toneladas de plástico.” É que, referiu, baseando-se em cálculos que realizou, “não só os gases de estufa, mas todos os outros impactos ambientais, são responsáveis por 10 mil YDL (a medida de morte precoce e incapacidade) por ano. Estamos a falar da terceira causa de mortalidade do país.”

Tem de existir “uma visão holística” que envolve todos e que pode levar a mudanças, resumiu Francisco Ferreira para finalizar a sessão de apresentação: “Conseguir garantir que, do ponto de vista da envolvência paisagística, dos comportamentos, do uso do automóvel, da separação de resíduos, as unidades de saúde [são] um exemplo para transmitir a quem as frequenta e, acima de tudo, [servem como] uma salvaguarda da diminuição do risco de quem as frequenta.”

(Re)veja aqui a Conferência: