A ilha da Páscoa sempre teve poucos habitantes: a história do colapso não se confirma
Em vez dos 17 mil habitantes que chegaram a ser estimados para a Ilha da Páscoa, ali nunca devem ter vivido mais do que 3900 pessoas — a população que os europeus encontraram quando lá chegaram.
A ilha da Páscoa é um exemplo de colapso ecológico? Essa ideia tem raízes fundas no nosso imaginário, que vêm desde o século XVIII, quando chegaram os primeiros europeus a este pontinho de terra perdido no meio do oceano Pacífico, longe de tudo, onde encontraram estátuas gigantes, mas apenas uns 3000 habitantes, muito menos dos que lhes pareciam necessários para esculpir e transportar aquelas enormes pedras com caras de homem. Mas, afinal, a história dos Rapa Nui pode ser um exemplo de sustentabilidade, defende uma equipa de cientistas que tem estudado a ilha nos últimos anos.
A equipa de Carl Lipo, da Universidade de Binghamton (Nova Iorque, Estados Unidos), publicou um estudo nesta sexta-feira na revista científica Science Advances em que relata os resultados de um mapeamento das “hortas de pedras”, feito com recurso a imagens de satélite e análise de inteligência artificial. O que concluíram é que eram demasiado elevadas as estimativas feitas anteriormente da quantidade de áreas de cultivo na ilha da Páscoa onde se usavam as técnicas da rochagem (moer pedras para fertilizar os solos pobres em nutrientes com minerais como azoto, fósforo e potássio, para ajudar o cultivo de batata doce).
“O que estamos a descobrir, com a investigação arqueológica, é que 3000 é provavelmente a dimensão sustentável da população da ilha, considerando as estratégias de subsistência que tinham”, disse Carl Lipo, numa conferência de imprensa online para falar do trabalho da sua equipa.
Satélites e inteligência artificial
Foram feitas estimativas de que a ilha da Páscoa, que tem apenas 164 km2 e fica a 3500 km a Oeste da América do Sul e 2000 km a Leste da ilha Pitcairn, a sua vizinha habitada mais próxima, e que foi colonizada por polinésios que ali chegaram em canoas, poderia ter tido 17 mil habitantes. “O máximo de população que a infra-estrutura das hortas de rochagem poderia sustentar é de cerca de 3900 pessoas”, escrevem os cientistas no artigo.
É superior a 80% a precisão do método de detecção destas hortas, usando imagens no espectro do infravermelho de ondas curtas, e analisadas por métodos de “machine learning” (uma forma de inteligência artificial), dizem os investigadores. “Isto sugere-nos que precisamos de continuar a fazer mais medidas e mais avaliações, mas é precisão suficientemente alta para podermos dizer que as estimativas que tinham sido feitas eram muito exageradas, e que os nossos resultados mostram de forma consistente que a área dedicada a estas hortas na ilha era muito menor”, avançou Carl Lipo.
“O infravermelho de ondas curtas permitiu-nos analisar áreas em que as rochas criavam solos húmidos, que teriam sido fundamentais para a produtividade orgânica”, disse o cientista. “As imagens de satélite permitiram-nos produzir uma estimativa das hortas de rochagem para toda a ilha, quando um estudo feito no terreno teria levado anos, ou décadas, a andar por todo o lado para as cartografar”, para exemplificar como a tecnologia foi fundamental para apoiar esta investigação arqueológica.
As árvores perdidas
A ideia de que os habitantes da ilha da Páscoa cortaram as árvores todas e assim destruíram a sua ilha também não tem grande sustentação, diz Lipo. "Há vários indícios fósseis, como pólen, de que havia muitas árvores na ilha, antes de os humanos lá terem chegado, e que vão desaparecendo. Quando os europeus lá chegam, há vegetação, temos relato de algumas palmeiras. De uma perspectiva europeia, perder as árvores foi uma catástrofe ecológica", diz o investigador.
"Mas o que descobrimos é que as árvores não parecem ter tido um grande valor para a sobrevivência da comunidade. Não se podem fazer canoas de palmeiras", explicou. E embora dêem frutos, os polinésios trouxeram com eles ratos, que comiam esses frutos. "Na verdade, as árvores eram barreiras para a forma como as pessoas conseguiam produzir alimentos em terra, que passava por abater as árvores para cultivar batata-doce", contou Lipo. "Portanto, a perda da floresta terá sido, provavelmente, a transformação da ilha de algo que não podia sustentar muitas pessoas para algo que tornava viável uma população de cerca de 3000 pessoas". A história é ao contrário do que diz a narrativa comum, sustenta.
Quando os europeus chegaram à ilha da Páscoa (no domingo de Páscoa de 1722), acharam-na muito despovoada. Como é que este punhado de gente, os Rapa Nui, poderia ter sido suficiente para esculpir e transportar para o local onde se encontram o milhar de estátuas gigantes, os moai, que podem ter 86 toneladas e dez metros de altura, esculpidas em rocha vulcânica?
"Imprudência dos antepassados"
“De facto, para erguer estas estátuas, os europeus teriam usado milhares e milhares de pessoas, para as esculpir e transportar, usando uma enorme quantidade de recursos. Por isso, a história do colapso ecológico começa com os primeiros europeus que lá chegaram. O capitão [James] Cook [explorador britânico], quando lá chegou, em 1770, escreveu que a paisagem desnudada da ilha, e o reduzido número de habitantes que lá viviam nessa altura, se devia ao que chamou ‘a imprudência dos antepassados’”, relata Carl Lipo. Ou seja, os habitantes da ilha da Páscoa teriam esgotado os recursos naturais, o que levou ao colapso ambiental, da população e da sociedade.
“É uma perspectiva muito europeia, essa ideia de que deve ter havido uma população muito maior e que algo terrível terá acontecido antes da chegada dos europeus”, diz o cientista norte-americano. E a teoria vingou, chegou às páginas dos livros de Jared Diamond, o cientista e grande divulgador de ciência, no livro Colapso — Ascensão e Queda das Sociedades Humanas.
“Mas esta narrativa não é verdadeira”, afirma Carl Lipo, frisando que o que os cientistas descobriram, nas últimas duas décadas, é que “a população da ilha da Páscoa vivia de forma bastante sustentável”.
Entendamo-nos, frisa Lipo: “A ilha nunca foi um sítio fácil para viver, mas os habitantes conseguiram inventar formas de sobreviver, mantendo-se dentro dos limites da capacidade da ilha até à chegada dos europeus”. O que os primeiros ocidentais encontraram, e que lhes pareceu uma sociedade em colapso, era, na verdade, uma população muito sustentável, defende.
Claro que depois da chegada dos europeus, aí sim, a população Rapa Nui entrou em colapso, devido à introdução de doenças contra as quais os habitantes da ilha não tinham imunidade e por muitos deles terem sido escravizados, os baleeiros que se instalavam na ilha e competiam pelos recursos. “Vemos um declínio, mas em função das coisas que os europeus trazem com eles”, sintetizou.
A equipa de Carl Lipo quer mudar esta ideia enraizada de descrever os Rapa Nui como um estudo de caso de colapso ecológico. “Esta história ainda persiste, e os ecólogos usam-na para fazer modelos e desenvolver políticas, vezes sem fim, o que achamos completamente errado”, alertou.
“A ilha da Páscoa é um grande exemplo de como as populações conseguem adaptar-se quando há recursos limitados num espaço muito reduzido, e de como o fizeram de forma sustentável. Não nos parece um bom exemplo de colapso que dê para aplicar a outros locais ou até mesmo ao nosso futuro”, afirmou Carl Lipo.
“A ilha da Páscoa é cheia de surpresas. Espero que passemos à frente desta falsa narrativa, até porque há histórias muito mais interessantes para contar, por exemplo sobre a forma como as pessoas conseguiram sobreviver naquela ilha e tirar daí lições para aplicar na nossa própria vida”, aconselhou.