Upa e N’Golo, dois “mudos” para acalmarem o ruído francês
Frente à Áustria, a França deverá ter a pompa e o ruído de Dembélé, Griezmann, Mbappé e Giroud. E quem corre atrás da bola? Para isso, têm o trabalho silencioso dos dois “mudos”.
Quando se olha para o provável “onze” da França frente à Áustria (segunda-feira, 20h, RTP1) vemos Dembélé, Griezmann, Mbappé e Giroud. Os gauleses vão atacar o grupo D com toda a pompa, fogo-de-artifício e ruído que têm – e, em teoria, fazem bem. Ficam a parecer uma equipa partida em dois, com quatro a atacar e sete a defender? Talvez. E quem corre atrás da bola? Quem “cola” as tais “duas equipas”?
Por enquanto, fiquemos com dois nomes: Upamecano – Upa, para os amigos – e N’Golo Kanté – ou “Golo”, que em português até fica sugestivo. Mas já falamos de ambos.
A questão de quem corre atrás da bola, que parece óbvia, está longe de ser empírica, já que a equipa francesa foi, na fase de qualificação, a segunda que menos golos sofreu – foram três em oito jogos e só Portugal sofreu menos.
A experiência tem dito que o momento sem bola não é necessariamente um problema, mas talvez isso possa não ser assim quando o nível aumentar – e vai aumentar agora no Europeu. É que a França tem, para o centro da defesa, exceptuando possíveis adaptações, duas opções para um lugar livre: Konaté e Saliba.
Konaté teve uma temporada assim-assim no Liverpool, enquanto Saliba, teoricamente com bom nível de desempenho no Arsenal, não é da confiança de Didier Deschamps, que não teve pudor em descartar publicamente um jogador que convocou. “Está a fazer uma boa época, mas também faz coisas de que não gosto muito. Em França, tem pouco tempo de jogo, mas quando joga, não tem necessariamente corrido bem. A hierarquia não o favorece, mas ele está cá”, disse o seleccionador.
Estranho? Talvez. Presumamos, portanto, que Saliba está fora das contas. Nessa medida, a dupla deverá composta por Upamecano e Konaté, até por já terem jogado juntos no Leipzig e terem, por isso, muitas rotinas desenvolvidas, em clube e selecção.
E Deschamps, com toda a pomba e ruído de Dembélé, Griezmann, Mbappé e Giroud, bem vai precisar de dois homens silenciosos num trabalho também ele silencioso.
Upamecano, na defesa, e Kanté, no meio-campo, deverão ser titulares nesta equipa, dando o trabalho invisível de que todo aquele fogo-de-artifício ofensivo carece. E também algum silêncio e recato.
Quer um quer outro são jogadores muito poucos dados à palavra e ao estrelato. Upamecano cresceu com problemas de gaguez e dislexia que o faziam ter medo de falar. “Tinha muito medo. Quando tu és uma criança que gagueja, tu tens medo de falar porque as pessoas vão gozar contigo. É difícil distanciares-te disso. Tu passas a vida a dizer a ti mesmo “se eu falar, as pessoas vão gozar comigo'. Tu não queres ir ao quadro da escola, ou comunicar, porque sabes que as pessoas vão gozar”, contou ao Guardian. Apesar de a terapia o ter ajudado, Upamecano mantém a timidez de criança e é sempre um jogador sóbrio e calmo.
Mas não está sozinho. N’Golo Kanté, mesmo sem problemas conhecidos a nível de fala, também não é dado ao discurso. São muitas as histórias de timidez e vergonha de Kanté contadas por colegas e treinadores, pelo que o que mais surpreendente nesta equipa francesa não é o silêncio deste médio, que já foi muito falado, mas sim a confiança que Deschamps vai ter nele.
Kanté foi para a Arábia Saudita no último Verão, depois de os dias de jogador-chave no Mundial 2018 já terem ficado para trás.
Apesar de jogar num campeonato de menor expressão, Kanté mereceu a confiança de Deschamps para regressar dois anos depois e foi titular nos dois jogos particulares pré-Europeu. Parecia que o comboio de Kanté já tinha passado – até pelo crescimento de jogadores como Fofana, Tchouaméni e, sobretudo, Camavinga e Zaire-Emery –, mas ele voltou.
Com quatro jogadores vincadamente ofensivos – e nenhum deles especialmente dado a labor defensivo –, a França bem vai precisar da omnipresença de Kanté, no meio-campo, e da calma de Upamecano, seja ao lado de Konaté, um central que vem de uma temporada mediana, ou de Saliba, um no qual Deschamps nem confia.
A França fica a parecer uma equipa partida em dois, com quatro a atacar e sete a defender? Talvez. Mas Kanté, o jogador com mais bolas recuperadas no Mundial 2018, pode ser a “cola” silenciosa que une tudo. E isso pode fazer a diferença.