Ímpar
A condenação das mulheres à dor
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Seis meses depois do diagnóstico de cancro, de polémicas, de suposições, Kate volta a aparecer em público, como se nada fosse. Anteontem, sexta-feira, foram conhecidas umas declarações e uma fotografia (desconhece-se se foi tirada antes ou depois do diagnóstico e do tratamento). Kate diz que tem "dias bons e dias maus", como toda a gente que faz quimioterapia. Ontem, sábado, lá estava, na varanda do Palácio de Buckingham com o marido e os filhos, como se nada fosse. Nem um sinal de debilidade, a não ser a magreza, que já era seu apanágio anteriormente.
Uma mulher bonita, uma mãe atenta. Tudo o que se espera de uma mulher. Tal como Jill Biden, que andou nos últimos dias num corrupio, ora ao lado do marido nas cerimónias do Dia D, ora ao lado do filho, no julgamento em Delaware. Mais uma mulher de quem tudo se espera, como primeira-dama e como mãe. Título que, conta a autora Monica Hesse, muitos americanos põem em causa.
Ao contrário de Marcelo Rebelo de Sousa, que se afastou do filho, Jill e Joe Biden deram a cara por um filho que foi toxicodependente e acompanharam-no durante um julgamento em que foi considerado culpado. Jill esteve sempre presente, como esteve durante o seu crescimento. "Regressou, dia após dia, a uma sala de audiências em Wilmington para se sentar atrás do homem que tinha criado, que tinha dito que a amava, que lhe tinha chamado nomes, que tinha sido uma fonte de agonia e uma fonte de alegria. Quando saiu da sala de audiências no último dia, Hunter deu-lhe a mão. Se calhar Jill Biden não é a mãe de Hunter. Mas se não for, então não sei o significado da palavra", conclui Hesse.
A autora e intelectual italiana Michela Murgia (1972-2023) escreveu Ave Mary: E a Igreja inventou a mulher, editado em Portugal pela Elsinore, onde traça o retrato da mulher à luz das Escrituras e da doutrina da Igreja. Eva, a primeira mulher, é culpada do desterro do paraíso e obriga-nos a todas a parir com dor. Murgia lembra que depois da descoberta da epidural, as vozes mais conservadoras da Igreja defendiam a "naturalidade intocável do sofrimento da mulher [uma vez que, segundo a Bíblia, Deus terá dito a Eva: "Parirás com dor"], contra os progressistas que tentavam impor uma visão mais metafórica da condenação divina".
Em 1956, Pio XII deu a volta ao texto, mas manteve a condenação das mães ao sofrimento: "Ao punir Eva, Deus não quis proibir e não proibiu a mãe de usar os meios que tornem o parto mais fácil e menos doloroso. Mas não é preciso contornar as palavras das Escrituras: elas mantêm-se verdadeiras no sentido entendido e expresso pelo Criador: a maternidade fará que a mãe tenha de suportar muito. Mas de que maneira concreta Deus concebeu este castigo e como o imporá? As Escrituras não dizem", escreveu o Papa.
A maternidade como ideia de castigo! Ideia essa que se reflecte no modo como Maria, a mãe de Jesus, nos é apresentada, preocupada porque o Menino se perdeu, aos 12 anos, e estava no templo — o rapaz ainda lhe responde torto... —; em sofrimento extremo, aos pés da cruz, assistindo à morte do seu filho. Além de Mãe Dolorosa, Maria é também a mulher consagrada ao outro, como devem ser todas as mulheres, serviçais. Em tempos de feminismo e de emancipação da mulher, João Paulo II traçou na sua carta apostólica Mulieris Dignitatem, em 1988, o destino da mulher — que, diz Murgia, não está escrito na Bíblia — a mulher esposa. Deus confia à mulher o homem, escreveu Karol Wojtyła: "Todavia, este acto de confiar refere-se de modo especial à mulher — precisamente pelo facto da sua feminilidade — e isso decide particularmente da sua vocação."
Ou seja, não só é obrigatório como define o sentido da existência da mulher. A ideia do casamento sempre foi querida da Igreja, veja-se Santo António, um doutor da Igreja, com pensamento, mas que ficou conhecido por ser um santo casamenteiro... A jornalista Inês Duarte de Freitas aproveitou o feriado da capital para escrever sobre como planear um casamento. É preciso tempo e dinheiro.
Voltando à ideia da mulher ao serviço do outro, essa perpetua-se no modo como as mulheres continuam a ser as que mais horas dedicam às tarefas domésticas. Carmen Garcia que, como eu ouviu, há tempos um dos episódios do Extremamente Desagradável, de Joana Marques — humorista que, com Maria Rueff e Ricardo Araújo Pereira, esteve esta semana com o Papa Francisco — escreve sobre os jovens que defendem a ideia da mulher boa esposa, que chega ao casamento virgem e o seu regresso às lides domésticas. "Pensava que podíamos, aos poucos, começar a baixar a guarda, mas depois ouço estes male influencers e os miúdos que contaminam e, afinal, já não me parece errado correr para as trincheiras e organizar a defesa. É que isto não só não terminou como me parece estar mais vivo do que nunca", escreve a Mãe Imperfeita.
No mesmo dia em que o gabinete de comunicação dos príncipes de Gales revelou a fotografia de Kate, com ar de quem não está a ser tratada a um cancro, na Cimeira do G7, Giorgia Meloni conseguiu que a referência ao direito ao aborto, presente na declaração da cimeira anterior no Japão, fosse excluída do texto aprovado, mesmo com a oposição dos EUA, de França e da União Europeia. Uma mulher que sabe o que é melhor para todas as mulheres, desconhecendo que o direito ao aborto não é sinónimo que vamos todas a correr fazê-lo; preferindo ignorar que um aborto ilegal pode matar, sobretudo as mulheres mais pobres; mantendo sob a cabeça das outras mulheres a condenação de Eva ao castigo, ao sofrimento sem fim, com culpa e sem liberdade. Dizia Simone de Beauvoir: "Querer ser livre é também querer livres os outros." Falta-nos darmos a nós e aos outros essa confiança, a da liberdade.
Boa semana!