Jeffrey Sachs: “Em tempo de guerra a Europa não é nada”

Apologista do desenvolvimento sustentável, o economista rockstar Jeffrey Sachs elegeu a paz como o desafio central, tornando-se uma das vozes mais críticas do papel dos EUA na guerra na Ucrânia.

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dro Daniel Rocha - 14 junho 2024 - PORTUGAL, Lisboa Jeffrey David Sachs é um economista norte-americano liberal Daniel Rocha
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Ganhou notoriedade nos anos 1980 como o jovem economista que liderou “terapias de choque” em países como a Bolívia ou a Polónia. Na senda dos Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, entrou no século XXI acompanhado de celebridades como Angelina Jolie e Bono Vox em viagens a África e escreveu best-sellers como O Fim da Pobreza (2005). Em 2014, Bill Gates escreveu sobre ele um artigo de opinião intitulado: “Porque é que Jeffrey Sachs é importante.”

Nos últimos anos, o norte-americano Jeffrey D. Sachs, grande evangelista dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, elegeu a paz como o pilar central para a concretização deste desafio global, tornando-se uma das vozes mais críticas do papel dos EUA nos conflitos globais, em particular na guerra na Ucrânia.

No final de Maio, deu uma entrevista a Tucker Carlson — o polémico apresentador que foi despedido da Fox News —, um vídeo que já reúne mais de um milhão de visualizações. Durante a conversa com o P2, o telemóvel toca: Piers Morgan, o igualmente polémico apresentador britânico, também o quer no seu canal Uncensored, “a arena global para debates destemidos, opiniões ousadas e grandes entrevistas”.

No início da semana, Jeffrey Sachs estará em Lisboa (acompanhado de personalidades menos controversas) na conferência internacional Paving the Way to the Pact of the Future, um encontro que antecede a grande Cimeira do Futuro, convocada por António Guterres para 22 e 23 Setembro em Nova Iorque.

Aos 69 anos, é director do Centro para o Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Colúmbia e presidente da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, no acompanhamento de uma tarefa global descomunal. Como é que se conjugam estas funções?
Fui professor durante 44 anos em Harvard e na Universidade de Colúmbia e sempre considerei que a minha vida profissional teria uma parte no mundo académico, na investigação e na escrita, e uma parte na resolução de problemas práticos, no aconselhamento de governos e das Nações Unidas e na concepção de soluções para os problemas. Há mais de quatro décadas que considero que esta é a minha estratégia, os meus dias estão interligados entre pensar sobre as questões científicas e analíticas e pensar sobre as questões políticas. Não há uma separação entre elas. Não é que uma seja um passatempo e a outra uma profissão, a minha profissão é combinar os domínios científico e político.

Que questões têm estado no topo dessa agenda?
Desenvolvimento sustentável significa um mundo que é economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável e em paz. E nós não temos nada disso actualmente. Aliás, não conseguimos atingir nenhum destes objectivos. Coloquei a paz como objectivo número um, porque sem ela não conseguiremos atingir os outros. Por isso, os meus dias estão envolvidos na política, na Ucrânia, em Gaza, nas tensões entre os EUA e a China, bem como em questões relacionadas com as alterações climáticas, a redução da pobreza, o financiamento da educação ou outras questões. Na minha opinião, está tudo interligado.

O que há de tão errado nos nossos sistemas para não conseguirmos cumprir os ODS?
É uma questão fascinante. Quando comecei a estudar Economia em 1972, o grande pensador do desenvolvimento da época era um economista neerlandês chamado Jan Tinbergen, um dos primeiros laureados com o Prémio Nobel da Economia. Era um homem maravilhosamente prático, que trabalhava sobre objectivos e instrumentos. A ideia era compreender como funciona a economia, definir os objectivos que se pretendem e, em seguida, definir os instrumentos, ou seja, as políticas para atingir os objectivos. É um processo muito lógico de como utilizar os instrumentos específicos de que dispomos, como os impostos, a despesa pública ou o investimento público, para atingir os nossos objectivos. É muito divertido quando se é um estudante jovem, porque, de repente, dizem-nos que podemos orientar a economia para determinados objectivos, fazer com que determinados resultados aconteçam. Tive uma experiência inicial de ajudar a Bolívia a acabar com a hiperinflação em 1985, e funcionou exactamente como dizia Tinbergen. Eu sabia como parar o processo monetário que estava a conduzir à hiperinflação, era economia básica — o Governo tomou essa medida e a inflação parou. Foi quase um milagre. Esta é a minha ideia: temos os nossos objectivos, temos o nosso conjunto de políticas e a primeira coisa que devemos fazer, enquanto profissionais ou tecnocratas, é estudar a forma de alcançar o que dissemos que queríamos alcançar. Mas o mundo não tem funcionado assim.

O que descreve é uma espécie de receita, mas houve experiências posteriores a essa receita que não funcionaram. Na Rússia, em 1993, acabaram por ir contra um muro.
A principal lição desse caso para mim foi política. Em 1989, tinha aconselhado o Governo polaco. Sugeri um conjunto de instrumentos e como utilizá-los. Eles foram adoptados, e as políticas funcionaram. A inflação parou. O crescimento económico foi retomado. Recomendei que a dívida fosse cancelada para que a Polónia pudesse começar de novo após o período soviético. Ora, recomendei as mesmas acções no caso da União Soviética, quando aconselhei o Presidente Gorbatchov, e um conjunto semelhante de acções no caso da Rússia, quando aconselhei o Presidente Ieltsin. Os instrumentos que eu queria utilizar eram a anulação da dívida, a concessão de créditos e outras acções, mas os EUA disseram “não”. Portanto, o muro não estava na Rússia, mas em Washington. Na altura, em 1992, ainda não estava tão consciente da forma como o Governo dos EUA se comportava como estou hoje. Aquela era uma boa receita, tinha funcionado na Polónia, deviam fazer a mesma coisa com a Rússia. E um alto funcionário dos EUA disse-me que — ainda que concordasse comigo — isso não iria acontecer por causa da política dos EUA. Não se tratou de um fracasso económico, foi uma decisão política dos EUA de não ajudar a Rússia.

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O economista norte-americano Jeffrey D. Sachs é um dos evangelistas dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU

Há um livro sobre si chamado O Estranho Caso do Dr. Choque e do Sr. Ajuda. Nos anos 1980 tornou-se conhecido por fazer essa “terapia de choque” económica que descreveu e hoje é conhecido pela abordagem ao desenvolvimento sustentável. O que é que mudou?
Não mudou. Estas ideias sobre as minhas opiniões fazem parte da vida pública, claro, as pessoas podem interpretar mal ou não compreender. Tenho sido um social-democrata durante toda a minha vida profissional.

Mas algumas das suas receitas tinham ingredientes que poderiam ser classificados como neoliberais. Como é que se combina isso com o que chama uma “ética do cuidado” na economia?
Curiosamente, em 1989, quando estava a aconselhar o Governo polaco, perguntaram-me: “Você é pelo mercado livre?” Respondi que não, sou um social-democrata. As coisas que têm de fazer aqui são X, Y e Z, porque o vosso objectivo é acabar com a hiperinflação, criar mercados, integrar [a Polónia] na Europa e ultrapassar a crise da dívida. Estas são as medidas específicas para isso, os meios para atingir esses fins. O que se recomenda depende das circunstâncias, não da ideologia. Em última análise, creio que queremos uma vida boa para as pessoas em todo o lado. Gosto bastante dos ODS como fins, porque penso que são uma representação boa e precisa do que devemos fazer para ter uma vida melhor neste planeta e para não nos destruirmos uns aos outros e a nós próprios. Por isso, devemos ter um objectivo no que estamos a fazer e ser claros, explicá-lo, debatê-lo. Os economistas são ensinados a apenas descrever como A afectará B, ou seja, a prever B, mas não dizemos como deveria ser B. Por outras palavras, qual deve ser o nosso objectivo. É como ter uma escola de Medicina onde se estudam as doenças, mas não se estudam as curas. O doente chega e o médico diz: “Bem, está muito doente, por isso vai morrer.” Não queremos isso. Queremos que o médico nos diga como podemos recuperar a saúde. Para mim, é isto que devíamos estar a fazer com a economia.

O objectivo, por norma, é o crescimento, o que no caso das empresas significa lucro. Mas a sustentabilidade tem que ver com prosperidade dentro dos limites do planeta, e algumas teorias sobre pós-crescimento têm vindo a ganhar tracção. Acredita que podemos ter prosperidade sem crescimento?
Antes de mais, a ideia de que os lucros são a coisa certa a fazer é uma ideia que remonta a uma ideia britânica e tem duas raízes básicas. Uma é Adam Smith, claro, e a mão invisível, e o seu antecessor de um século antes, John Locke, que dizia que a produção é o fruto do nosso trabalho, baseado no facto de trabalharmos a terra — e ele defendia: trabalhem arduamente, explorem a terra, porque a natureza não tem limites. E estes dois erros tornaram-se bastante influentes. Não eram as únicas teorias económicas, já que a Igreja Católica tinha a sua própria teoria da economia, mais comunitária. Mas a que se impôs foi a teoria britânica, porque o Reino Unido se tornou o país mais poderoso do mundo no século XIX. Os norte-americanos adoraram a teoria britânica e tornaram-na ainda mais radical — chamamos-lhe “libertarismo”. Só o lucro é que conta. Saiam e façam dinheiro. A maioria das pessoas muito ricas da América acha que são ricas, porque são muito boas e por isso não querem ter quaisquer limites.

Há uma forma de integrar valores nesse processo?
Sabemos que existem limites planetários. Não podemos colocar dióxido de carbono na atmosfera em proporções crescentes sem consequências terríveis. Não podemos pescar à nossa vontade e esperar que os peixes sobrevivam — os stocks estão a entrar em colapso em todo o mundo. Aprendemos que existem limites planetários — podemos agradecer aos cientistas por nos terem explicado isso de forma mais clara — e precisamos de viver dentro deles. O que é que isso significa em relação ao crescimento? O crescimento é simplesmente uma taxa de mudança de algo. Decrescimento significa que já não há mudanças? Não. Significa que não há mudança nas coisas prejudiciais. Precisamos de decrescimento nos combustíveis fósseis, sem dúvida. Precisamos de decrescimento na desmatação para criar pastagens, com certeza. Precisamos de decrescimento na utilização da informação digital? Não, porque há pessoas no mundo que não têm acesso a ela actualmente — mais informação será melhor. Decrescimento dos serviços de saúde? Claro que não — precisamos de mais serviços de saúde, porque há milhares de milhões de pessoas sem cobertura adequada. Acho que a discussão sobre o decrescimento não é muito precisa. Quero saber o que é que precisamos de reduzir e o que é que precisamos de aumentar.

Enquanto isso, o mercado continua a crescer mesmo sem cumprir algumas promessas, como a economia circular, a eficiência, a redução de emissões, que seriam feitas com ajuda da tecnologia. É como se o contrato tivesse sido quebrado.
E a pergunta é sempre: em que parte foi quebrado? Porque é que não se seguiu o caminho que foi prometido? Um argumento é que, tecnicamente, esse era um caminho impossível. Outro é que optámos por não o fazer – por exemplo, na transformação energética tem-se demonstrado que o caminho técnico é exequível. A via política tem sido o principal obstáculo. O custo da energia eólica, solar, de transmissão e de armazenamento baixou imenso. Mas há um país que domina a produção destas tecnologias: a China. E agora a China pode produzir uma grande parte do que o mundo precisa para descarbonizar. Os EUA dizem que isso é injusto, que a China tem excesso de capacidade. Este é um dos conceitos mais lamentáveis do nosso tempo. A China não tem excesso de capacidade, nós é que temos subinvestimento. Se os EUA e a Europa quiserem recuperar o atraso, tudo bem, mas não digam que a China está a fazer algo de errado. Temos falta de capacidade, é essa a verdade. Enfim, penso que as notícias técnicas são bastante positivas. A mudança política é que ainda não ocorreu, e é aí que temos de concentrar a nossa atenção.

Os ODS são fáceis de compreender, mas no seu conjunto reflectem uma grande complexidade, e parece que não temos “largura de banda” para dar atenção a todos. O cidadão comum não tem essa capacidade, mas os sistemas políticos deveriam ter formas de integrar essa complexidade, não?
Volto ao que disse sobre Jan Tinbergen: se temos 17 objectivos, tecnicamente, precisamos de 17 instrumentos independentes. E isso significa que precisamos de uma política para a descarbonização, outra para a gestão do território, outra para garantir que as crianças estão na escola, para os cuidados de saúde e assim por diante. Aliás, a Europa é muito boa nisso.

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O economista com a actriz e antiga embaixadora da ACNUR Angelina Jolie, em Nova Iorque, em 2005 Zack Seckler/Getty Images
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Sachs e Bono no lançamento de O Fim da Pobreza, em Nova Iorque, em 2005 Joe Schildhorn/Patrick McMullan via Getty Images

Porque também partimos com bastante avanço.
Bem, sim, durante meio século. Costumo dizer que os ODS são simultaneamente objectivos de desenvolvimento sustentável e objectivos sociais-democratas. Vejo a Europa como um ethos social-democrata, no sentido de pensar que todos devem ter cuidados de saúde, protecção social, todas as crianças devem estar na escola. E espero que continue a ser. Mas para atingir estes objectivos é necessário dispor de instrumentos, e é preciso estudar como é que isso deve ser feito e propor planos e programas. E isto é um trabalho árduo, não é para o cidadão comum. O cidadão comum deve compreender os objectivos, perceber se o seu governo está a fazer um bom trabalho ou não, exigir eficiência no governo, sem esbanjamento, corrupção ou guerras inúteis. A função do governo é estudar, descobrir como usar Y e Z para conseguir X. E isso não é feito, devido a decisões políticas e muitas vezes à falta de capacidade.

Porque é que está a ser tão difícil cumprir os ODS?
Decidimos, e com razão, que é urgente descarbonizar o mundo até 2050, porque o nosso objectivo é manter o aumento da temperatura abaixo de 1,5 graus Celsius. Os climatólogos ajudaram-nos a compreender que, se a temperatura subir mais de 1,5 graus, pode haver caos no planeta. Subida do nível do mar, destruição das florestas tropicais, fomes em massa, secas, inundações e outras catástrofes, alterações climáticas descontroladas devido ao facto de serem atingidos pontos de ruptura. Portanto, estabelecemos os objectivos. Dispomos de instrumentos. Mas será que estamos a atingir esses objectivos? A resposta, claro, é não, por várias razões. Uma delas é que o trabalho árduo de perguntar como é que vamos efectivamente descarbonizar é deixado a um processo completamente esvaziado, sem forma e descentralizado. Cada governo deve analisar a questão, depois reúnem-se e discutem sobre o que devem fazer. De tempos a tempos, cada governo deve apresentar um relatório sobre a sua contribuição determinada nacionalmente. Não é um processo racional de perguntar como é que isto deve ser feito.

E há ainda a questão do financiamento.
Sim, para metade do mundo. Nos nossos países, nos EUA e na Europa, mesmo que não sejamos tão responsáveis nos nossos orçamentos, temos uma classificação de investimento, somos vistos como dignos de crédito. Mas a um país pobre é atribuída uma pontuação baixa de credibilidade. Assim, mesmo que apresentasse um bom plano, mesmo que fizesse todas as coisas certas, a taxa de juro que teria de pagar para o financiar poderia ser de mais 8, 10 ou 12 pontos percentuais. E isso significaria que os ODS são incomportáveis.

Nas conferências sobre o clima esta questão tem sido cada vez mais central.
Esta é uma questão específica que requer uma abordagem específica, e é aqui que passo grande parte do meu tempo: como ultrapassar a questão financeira? A resposta básica é que as classificações de crédito estão erradas. Estão erradas no seu conceito, porque pegam num país, digamos a Colômbia, as Honduras ou o Camboja, e dizem que esse país tem tal e tal pontuação, por isso não é digno de crédito. Acho que essa não é a forma correcta de ver as coisas. Qual é o programa desse país? Tem um perfil de crescimento? Tem um plano de investimento razoável? É provável que consiga executar esse plano de investimento? Tem apoio internacional para levar a cabo esse plano de investimento? E se as respostas forem sim, então eu diria, como economista, que pode parecer-vos um país pobre, mas esse país pode crescer muito mais depressa do que o vosso país, porque tem uma grande margem para recuperar o atraso. Se fizermos a análise correcta e adequada, um país como o Camboja, a Etiópia, o Gana ou o Uganda pode crescer a 7% ao ano. Portugal não, porque é demasiado rico para crescer a 7% ao ano. Mas um país pobre, sim, poderia. E o que parecia um empréstimo completamente arriscado não é assim tão arriscado.

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Mas estamos a falar de necessidades de longo prazo.
Sim, há essa ressalva: para atingir esse crescimento seriam necessários 25, 30 ou mesmo 40 anos, porque frequentemente esses países estão muito atrasados. Precisam de um empréstimo a longo prazo e não apenas de um empréstimo a curto prazo. Por isso, o meu argumento para o FMI, o Banco Mundial, o Tesouro dos EUA, o G7 e o G20 é que façamos o que Tinbergen diz: vamos estruturar um plano e mostrar como pode ser financiado. Vão ver que não é assim tão arriscado. Sabendo a taxa de retorno da educação, se quisermos pôr todas as crianças na escola no Uganda, no Níger ou na Zâmbia, é preciso um orçamento muito maior do que o orçamento nacional desse país. Digo-lhes que não façam um empréstimo a sete anos, porque assim o aluno do primeiro ano estará no oitavo ano, quando tiverem de pagar, e ele ainda não vai estar a ganhar esse rendimento. Digo-lhes que façam um empréstimo de 40 anos. Esses miúdos de hoje vão ser programadores informáticos, cientistas, médicos, professores daqui a 40 anos. Teremos uma economia completamente diferente. Claro que vão poder pagar esse empréstimo.

Que papel os países desenvolvidos podem ter nisso?
Bem, deixe-me dar um exemplo. Os europeus acordaram um empréstimo de 50 mil milhões de dólares à Ucrânia. Isto é ridículo, são 50 mil milhões para continuar uma guerra onde ucranianos vão morrer. Em vez desse empréstimo, as pessoas nas ruas deviam dizer aos governos para acabar com a guerra e dizer não ao alargamento da NATO. Pedir aos nossos líderes que se reúnam e acabem com a guerra hoje. Depois, o que podemos fazer com esse dinheiro? Há coisas que podemos fazer na nossa própria parte do mundo, mas se de facto temos 50 mil milhões de dólares que podemos emprestar, emprestem-nos à União Africana, para que todas as crianças em África possam ir à escola. Isso aliviaria a crise da migração, a crise da pobreza. É preciso pensar de forma muito mais sistemática sobre o que fazer.

Mas e o financiamento, os aspectos mais técnicos? Os países podem exercer alguma pressão sobre as instituições financeiras?
Sim, absolutamente, nas reuniões com o FMI, o Banco Mundial e os bancos de desenvolvimento regional, como o Banco Africano de Desenvolvimento, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco Europeu de Investimento, em que se discutem muitas coisas técnicas. O FMI é talvez a instituição mais notável, muito técnica, em que os ministros das Finanças de todo o mundo discutem as suas políticas. O que eu gostaria que o FMI fizesse, e já o digo há muitos anos, é que nos seus programas houvesse um plano de investimento de como cada país vai atingir os ODS. Todos os anos os governos têm uma consulta com o FMI, a chamada “consulta ao abrigo do Artigo IV”, da qual resulta um documento técnico sobre a forma como o governo está a agir. Os ODS quase não são mencionados nesse documento. É o que se chama incoerência de sistemas: temos objectivos, temos um sistema, mas não ligamos os objectivos e os instrumentos. O FMI é altamente tecnocrático — sabem como relacionar os objectivos e a política orçamental, mas não o fazem. O lado positivo é que o FMI não é uma instituição dos EUA, é uma instituição que agrega cerca de 190 países. E os governos deveriam dizer que, se os ODS foram adoptados, o FMI, que trabalha para o sistema internacional, tem de fazer parte da solução. Quando lemos o relatório do Uganda ou da Zâmbia, é preciso ler sobre a agenda dos ODS, onde estão os progressos, onde faltam progressos, onde está o défice de financiamento e como é que o défice de financiamento vai ser colmatado.

E depois há a vontade política.
Como é óbvio, há sempre a política. O sistema político dos Estados Unidos, por exemplo, entre outros países, é um sistema muito corrupto, porque se baseia em contribuições privadas para financiar as campanhas, ao contrário do que acontece noutros sítios. O nosso ciclo de campanha vai rondar os 15 mil milhões de dólares em 2024. Consegue imaginar quanta corrupção existe quando 15 mil milhões de dólares estão a mudar de mãos? Outro exemplo: o presidente da nossa Comissão do Senado para a Energia e os Recursos Naturais é o senador da Virgínia Ocidental, Joe Manchin. Não só a Virgínia Ocidental é um estado produtor de carvão, como Joe Manchin é proprietário de duas empresas de carvão. Esta é a riqueza da sua família. Ele é o responsável pela política energética dos EUA no Congresso dos EUA. Portanto, não temos nenhum plano coerente nos Estados Unidos.

Falou especificamente da descarbonização, mas, quando falamos de sustentabilidade, costuma-se falar de três vertentes: ambiental, social e económica.
Quatro. O ODS 16 é sobre sociedades pacíficas e inclusivas, e o ODS 17 é sobre parcerias, por isso a paz é um dos quatro pilares reais e tem de ser realçada.

Quando olhamos para os objectivos e as metas, os aspectos sociais, ambientais e da paz estão em retrocesso. Os que mais avançaram estão relacionados com os mercados e o dinheiro.
Exactamente, e está aí a chave. Organizámos a economia mundial em grande parte como um sistema de mercado de propriedade privada. Não totalmente, claro, na Europa o papel do Estado é importante. Mas as forças políticas dominantes continuam a ser impulsionadas pelos mercados. Os sinais do mercado, por outras palavras, o que dá lucro, não conduzem a bons resultados sociais ou ambientais, nem necessariamente à paz. É por isso que a política deve apontar na direcção certa, ou seja, ajustar os sinais do mercado, por exemplo, através da fixação do preço do carbono no sistema de comércio europeu, de investimentos públicos ou de impostos. Isto requer governos que estejam motivados para os objectivos e que estejam em paz. É por isso que estou em constante desacordo com o Governo do meu país – o que lhes interessa é o poder americano, estão interessados nas suas 750 bases militares em todo o mundo. O objectivo dos EUA neste momento não é o desenvolvimento sustentável. Na Europa, a situação é um pouco diferente, se bem que não totalmente. Houve um enorme foco nos ODS e no Pacto Ecológico Europeu até ao início da guerra com a Ucrânia, e de repente tudo mudou. A Europa foi terrivelmente desviada do desenvolvimento sustentável. E, claro, a própria guerra prejudicou gravemente a economia europeia, porque a Europa precisava de uma transição energética, mas não de cortar imediatamente todo o gás russo. A Europa pagou um preço muito elevado.

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Os relatórios preparados pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável mostram que as economias emergentes, como os BRICS, têm evoluído mais nos ODS, enquanto a União Europeia estagnou.
Bem, a Europa lidera a lista desde o início em termos de aproximação real dos objectivos. A Europa é a mais ecológica, com a tentativa de mudar o sistema energético e a clareza do Pacto Ecológico Europeu. É, evidentemente, a região mais próspera, se combinarmos todos os indicadores sociais, a esperança de vida, etc. Mas a Europa não pode fazer esta transformação como parte de um ambiente de guerra. É por isso que o progresso da Europa está estagnado em muitos domínios. Vejo isso não nos indicadores numéricos, mas nas declarações dos dirigentes europeus, trabalho com eles muito frequentemente. Entre 2015 e 2021, os ODS foram a agenda europeia. Agora, o que ouço, em particular de representantes europeus, é que já não conseguem focar-se nisso, o orçamento de ajuda foi cortado, é preciso compreender que estão em guerra. Já não acreditam nisto. O ambiente mudou em Bruxelas, e isso é muito triste.

Enquanto estamos focados nas crises internas, o resto do planeta fica a resolver outros grandes problemas, que vão acabar também por nos afectar.
Quando os ODS foram definidos em 2015, a Europa estava na vanguarda. As metas, em grande medida, eram um reflexo da agenda e dos objectivos europeus. Trabalhei durante muito tempo em estreita colaboração com Frans Timmermans, que era o vice-presidente da Comissão responsável pelo Pacto Ecológico Europeu. A certa altura fui conselheiro de Josep Borrell — completamente sem remuneração, obviamente —, porque a Europa iria ter uma diplomacia de desenvolvimento sustentável. Quando a guerra começou, ele já não me queria como conselheiro, porque eu era demasiado crítico em relação aos Estados Unidos e toda a política da Europa era um sim aos Estados Unidos. E a Europa perdeu toda a sua posição global, porque em tempo de guerra a Europa não é nada. A vocação da Europa não é a guerra, é o desenvolvimento sustentável. Toda a gente respeita a Europa como líder desta agenda, mas a Europa deixou de o fazer a partir de 2022.

A guerra é o oposto da sustentabilidade. É como se, neste momento, os ODS fossem apenas uma miragem, se não resolvermos o problema da guerra.
O desenvolvimento sustentável é construir algo que possa durar. A guerra é destruir tudo o que temos, é o oposto. É uma actividade tão irracional, estúpida e sem sentido. Sabemos que, por várias razões, temos uma certa mentalidade e tendência para a guerra, mas temos de ultrapassar essas tendências e é isso que tento sugerir todos os dias: a guerra na Ucrânia podia e devia acabar hoje. A NATO deve declarar que não irá para a Ucrânia. Esta tem sido a causa da guerra desde sempre, Putin já afirmou que se garantirem isso a guerra acaba. É a coisa mais inteligente a fazer.

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Tanque ucraniano na região de Kharkiv (Carcóvia) Vyacheslav Madiyevskyy/Reuters

O que lhe respondem a isso os líderes da União Europeia? O que se tem defendido é que cabe à Ucrânia decidir que acordo considera justo e que a vontade do povo ucraniano deve ser respeitada. Impor um acordo desses, que parece não ser considerado justo pela Ucrânia, não seria mais uma ideia imposta por alguém de fora?
Falo com os líderes europeus em privado e o que eles dizem é diferente do que dizem em público. Eles estão tomados pela política americana. Os EUA não são uma força para o bem neste mundo, porque estão demasiado orientados para o poder e isto é importante que as pessoas compreendam. Desde que os EUA disseram aos ucranianos para abandonarem as negociações, em Março de 2022, já morreram 500 mil pessoas. Todos os dias, centenas estão a ser mortas, porque Biden não quer ter um revés político antes da sua eleição em Novembro. Falei com muitos ucranianos nos primeiros dias da guerra e disse-lhes que iriam acabar derrotados e, como no Afeganistão, destruídos. O Governo americano disse-lhes que iam ganhar, que as sanções iriam esmagar a economia russa. Portanto, esta não foi uma escolha informada. Isto segue-se à pressão dos EUA, e essa é uma pressão em toda a Europa, já agora.

E quais poderiam ser as soluções para quebrar esse sistema? Ou pelo menos encontrar uma brecha que permita o fim da guerra?
Winston Churchill disse uma vez algo fabuloso: que os EUA fazem sempre o que está certo depois de terem tentado tudo o resto. Eventualmente, os Estados Unidos acabarão por voltar atrás. Já tenho idade suficiente para ter vivido a Guerra do Vietname, com um conjunto de mentiras dos EUA reveladas nos Documentos do Pentágono. Vivi o bombardeamento do Camboja pelos EUA, o bombardeamento da Líbia, do Laos. Vi os golpes de Estado liderados pela CIA na América Latina que conduziram à devastação. E, claro, todos nós vimos o desastre afegão… Os Estados Unidos lá se aperceberam de que foi uma má ideia. É apenas mais um jogo. Vamos tentar levar a NATO para a Ucrânia, a ver se resulta. Depois, quando virem que não vai resultar mesmo, param. E seguem para outra crise qualquer.

Está a dizer que é preciso esperar que os EUA desistam?
Não temos de esperar. O que precisamos é que os líderes europeus digam aos EUA que já chega. Isto já durou tempo suficiente. Os líderes europeus na NATO têm de dizer aos EUA: isto é a Europa, queremos paz aqui. A Ucrânia pode ser neutral. Toda a vossa ideia de expandir a NATO até à fronteira russa foi imprudente, parem de jogar com as vidas dos ucranianos. Se os líderes europeus o disserem, talvez os Estados Unidos possam abrir os olhos e admitir que o que fizeram foi uma coisa estúpida. Sabe, sou um grande amante da Europa e fico muito triste por ver como a Europa é manipulada e dividida pelos EUA. Estamos numa época de grandes potências. Há a China, a Índia, os Estados Unidos, a Rússia. Precisamos da Europa como uma verdadeira união, não como simples subordinada aos interesses hegemónicos dos EUA.

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Neste momento, estão também a jogar com as vidas palestinianas.
Claro que sim. Toda a gente no mundo sabe que precisamos de uma solução de dois Estados. Só há um país que se opõe a isso, que é Israel, e um país que a bloqueia, os Estados Unidos. Sem o veto dos EUA na ONU em Abril, teríamos um Estado da Palestina reconhecido de acordo com o direito internacional nas fronteiras de 1967. E depois viriam as forças de manutenção da paz e a imposição de relações pacíficas entre Israel e a Palestina. Até os Estados Unidos sabem que isso é necessário, mas bloqueiam-no, devido ao poder do lobby de Israel. E isso é terrível, em primeiro lugar e acima de tudo para os palestinianos. Todos os dias há mortes provocadas por munições norte-americanas — os EUA são directamente cúmplices desta situação. Estas guerras não são guerras racionais. Não são guerras que tenham um objectivo legítimo. A guerra em Gaza poderia terminar hoj,e se os Estados Unidos dissessem que apoiam um Estado soberano da Palestina e deixassem de fornecer munições a Israel para a sua guerra. A guerra da Ucrânia dura há dez anos, desde o golpe de Maidan, e poderia terminar hoje, se parassem o alargamento da NATO. No caso de Gaza, a guerra dura, poder-se-ia dizer, desde 1967, ou seja, há 57 anos. Poder-se-ia dizer desde 1947, ou seja, 77 anos. Poder-se-ia dizer desde 1917, a Declaração de Balfour, ou seja, há mais de um século. Em última análise, ainda estamos a tentar desfazer a confusão que o império britânico criou.

No fundo, o imperialismo americano é apenas uma herança dos britânicos?
Os americanos aprenderam tudo o que sabem sobre o império com os britânicos.