Activismo não é bem visto pela sociedade portuguesa, queixam-se activistas de várias gerações

Activistas dizem-se vítimas de campanhas de desinformação que pretendem descredibilizar causas dos protestos, sentido maior repressão por parte do poder político.

Foto
Grupo Climáximo organiza manifestações e actos de protesto. Mas não é o único Nuno Ferreira Santos
Ouça este artigo
00:00
09:14

O activismo não é bem visto pela sociedade portuguesa em geral, sentem activistas de várias gerações entrevistados pela agência Lusa. A repressão dos que agem pela mudança tem vindo a aumentar, denunciam ainda.

João Joanaz de Melo, 61 anos, do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), diz que "o activismo, genericamente, é mal visto pela sociedade" portuguesa, porque o sentido de comunidade ainda é "muito incipiente" e esta forma de intervenção "não é treinada, não é acarinhada".

Membro da Academia Cidadã, João Labrincha, 41 anos, que fez parte do GEOTA e há uma década foi um dos organizadores da manifestação "Que se lixe a Troika", considera igualmente que o activismo que "não é particularmente bem visto", porque continua "a haver uma forte influência de um pensamento que vem do tempo do fascismo e que se reflecte numa falta de participação crónica das pessoas", em frases de antigamente como "o trabalho é que devia ser a tua política". "Não há uma cultura de compreensão da importância deste tipo de participação", afirma.

"É assim desde há 150 anos para cá", adianta João Joanaz de Melo, acrescentando faltar a postura de, em vez de só criticar, "tentar fazer qualquer coisa para melhorar a situação que pode ser confrontar os políticos ou fazer alguma coisa no terreno". Ressalva que "não deixou de haver alguma solidariedade ou alguma generosidade até", mas "falta capacidade para o compromisso", para o trabalho continuado, por exemplo, numa organização, que exige tempo, gasto por muitos a trabalhar ou com a família.

Partidos desinteressados

A investigadora Guya Accornero, especialista em movimentos sociais, relembra que a realização de acções de maior impacto - "disruptivas", como lhes chamam os activistas -, como as ocupações ou o bloqueio de vias públicas, não é uma novidade do ponto de vista histórico. A professora de Ciência Política no ISCTE lembrou acções "um pouco surrealistas" dos situacionistas dos anos 1960 e outras simbólicas do movimento estudantil no Maio de 68 "também para tentar atrair a atenção". "Não consigo considerar essas acções particularmente radicais", declara, sobre acções como as protagonizadas por movimentos ambientalistas como o Climáximo, entre outros.

A vocação para as acções de luta não impede os activistas de "terem um discurso muito aprofundado sobre os problemas". A investigadora salienta ainda que estes activistas também "constroem conhecimento alternativo" e "devem ser ouvidos", mas admitiu ter dúvidas sobre se a realização de acções de luta "é a melhor estratégia para serem ouvidos".

E os activistas notam o desinteresse por parte dos políticos em relação às suas reivindicações.

João Labrincha ficou decepcionado quando soube que, passados três anos de terem sido recolhidas no âmbito da manifestação "Geração à Rasca" (da qual foi um dos principais rostos) e arquivadas na Biblioteca do Parlamento "milhares de propostas de pessoas de todo o país", apenas três deputados, "dois do Bloco de Esquerda e um independente", as tinham consultado.

Já o investigador João Joanaz de Melo lamentou que os principais partidos com representação parlamentar não tenham recebido os representantes do GEOTA a propósito das últimas legislativas. "Lembro-me que quando foram as eleições legislativas em 1995, nós tivemos uma reunião de oito horas com o António Guterres e outra reunião de oito horas com o Fernando Nogueira", líderes do PS e do PSD, respectivamente.

Repressão a aumentar?

Além disto, a repressão dos activistas tem vindo a aumentar nos últimos anos, alerta Patrícia Filipe, 44 anos, presidente da direcção da Amnistia Internacional Portugal, que respondeu à Lusa por e-mail. "Muitos governos têm aprovado leis que limitam a liberdade de manifestação e agravam as penas para manifestações consideradas ilegais. Também campanhas de desinformação e propaganda procuram deslegitimar os movimentos activistas".

Inês Teles, 34 anos, do movimento ambientalista Climáximo, reforça: "Aqui em Portugal e noutros países da Europa, como na Alemanha e no Reino Unido, essa repressão tem-se intensificado, sem dúvida".

O aumento da extrema-direita na Europa nos últimos anos pode "tornar as coisas ainda mais complicadas", mas considera que "a repressão está bem espalhada desde a direita até ao centro esquerda". "Independentemente da cor que lá esteja, estão a defender os interesses do "status quo" e, portanto, não toleram que haja quem os desafie".

Segundo João Labrincha, "há infelizmente uma tendência para piorar", embora considere que "nunca foi fácil a vida do activista em Portugal". Indica que as forças políticas em crescimento "não gostam de participação política, pelo contrário", e a sua "capacidade de influência faz com que o caminho dos activistas vá sendo mais difícil", alertando para "determinados discursos de legitimação da repressão".

Detenções "sem justificação legal"

"Ultimamente têm estado a acontecer coisas que não são muito comuns e que, em termos do nosso Estado de direito, são um bocado preocupantes", adiantou João Labrincha, referindo que "activistas do Climáximo" foram "presos antes de fazerem qualquer tipo de manifestação".

O incidente ocorreu a 8 de Outubro de 2023, quando o Climáximo denunciou que 12 activistas do movimento foram detidos "sem justificação legal" quando se encontravam perto da partida da maratona da EDP, em Cascais.

A PSP confirmou ter "interceptado vários activistas" do Climáximo "com tarjas e com tinta", que se "preparavam para executar uma acção ilícita", pelo que "foram todos identificados e constituídos arguidos".

"Há um filme, Minority Report, onde se prendiam as pessoas antes de elas cometerem os crimes. É muito preocupante, não é?", questiona. O filme de Steven Spielberg mostra um futuro onde existe uma unidade da polícia que impede os crimes antes de estes acontecerem com base em precognições, mas verifica-se que o sistema tem falhas. "Não é nada democrático", insistiu.

Participação cívica oscila entre muita e nenhuma

Guya Accornero, especialista em movimentos sociais, considera que o "principal problema" do activismo em Portugal é ser um país "muito dividido" em relação à participação, com uma parte da população a intervir em várias áreas e outra que não participa nada.

"Sabemos que há uma parte da população que participa muito em todas as áreas e uma parte da sociedade que não participa de nada e acho que esse é o principal problema", declarou, em entrevista à agência Lusa, acrescentando que "há uma certa reprodução das desigualdades sociais em quem participa no activismo", disse à Lusa a investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-Iscte).

A especialista em movimentos sociais explicou que "a participação eleitoral e não eleitoral" estão frequentemente ligadas e que "geralmente as pessoas que participam mais, participam em todas arenas, ou seja, eleições, sindicados, manifestações, associações". "Não são processos que se excluem, são complementares", acrescentou.

Activismo não é só protesto de rua

Por outro lado, Guya Accornero não concorda com a ideia de que os portugueses são menos dados que outros povos a comprometerem-se, a dar o seu tempo e, portanto, a prejudicar a sua vida profissional ou pessoal em prol de uma causa.

"Depende muito do que é que nós consideramos protesto e activismo", disse, indicando que, se durante o período de austeridade, entre 2011 e 2015, o número de protestos no país foi muito menor do que os realizados em dois outros países resgatados, Grécia e Espanha, "Portugal tem, por exemplo, mais associações, mais pessoas envolvidas em associações do que a Espanha, em termos comparativos".

"O activismo não é só ir ao protesto na rua, temos o colectivo do bairro, o movimento cooperativo, há muitas outras formas de envolvimento. Se nós olharmos com umas lentes mais afinadas, vemos que Portugal tem uma variedade e até mais engajamento do que outros países".

A doutorada em Sociologia explicou que as grandes mobilizações na rua são "um pico, um momento de visibilidade", mas que podem ser apenas a "ponta do iceberg" já que a mobilização é contínua e o que "garante a continuidade entre as diferentes fases de mobilização" é o "trabalho dos activistas de manter as redes activas, de manter o discurso, de manter os militantes envolvidos, de construir solidariedades".

Ampliar o repertório

Segundo Guya Accornero, muitas vezes os ciclos de protesto "repolitizam a sociedade civil" e cada um "pode trazer inovações" ao nível do tipo de acções utilizadas pelos activistas. "Nós usamos o conceito de repertório", que "funciona exactamente como um repertório de uma companhia de teatro ou de uma banda musical".

A manifestação, a greve, a petição, fazem parte do repertório dos movimentos sociais, "mas depois cada ciclo de protesto pode trazer inovações do repertório, como quando a banda chega com um novo single".

A especialista considerou que a inovação está "muito ligada à questão do digital", que trouxe mais visibilidade às acções, adiantando que, muitas vezes, antes de a informação ser divulgada pela imprensa é colocada nas redes sociais dos grupos. "Portanto, fica logo pública. Há um impacto nisto."

Guya Accornero disse ainda existir nos últimos anos "um ressurgimento de movimentos sociais, de activismo" dos jovens, ligados às questões do ambiente, direitos das pessoas LGBTI, anti-racismo, etc. "Esta é uma geração que vem dos Fridays for Future, portanto, começaram muito novos", explica, referindo-se ao movimento internacional de estudantes, conhecido em Portugal como Greve Climática Estudantil, lançado na sequência do protesto iniciado pela aluna sueca Greta Thunberg em Agosto de 2018.

"Nós andámos anos a dizer os jovens estão-se nas tintas, são individualistas, mas agora estão mobilizados, estão a reivindicar coisas justas. Isso é muito bom", remata.

Notícia actualizada a 20/06/2024: A palavra 'guerrilha' foi substituída por 'luta'.