A inteligência artificial é candidata a autarca nos EUA e a deputado no Reino Unido

Dois candidatos prometem colocar todas as suas decisões nas mãos de chatbots de inteligência artificial se forem eleitos. Mas para já, enfrentam questões éticas e legais que podem afastá-los.

Foto
Ilustração gerada pelo ChatGPT da OpenAI
Ouça este artigo
00:00
05:48

Victor Miller vai candidatar-se a mayor da cidade de Cheyenne, no estado norte-americano do Wyoming, e tem apenas uma promessa eleitoral: não tomar decisão absolutamente nenhuma. Quer ser mayor sem analisar os dossiês e sem promessas sobre posicionamentos políticos. Se for eleito, quem manda será o chatbot de inteligência artificial que Miller criou.

VIC é o nome do bot, sigla de Virtual Integrated Citizen (cidadão virtualmente integrado). Miller será apenas o seu “fantoche de carne e osso” — palavras do próprio candidato, o humano — e só servirá para assinar documentos e aparecer nas reuniões.

Não é legal um bot gerir uma cidade, mas a candidatura já foi oficializada, restando agora saber se será validada pelas autoridades eleitorais e se estará presente no boletim de voto nas primárias em Agosto e nas eleições de Novembro.

Em declarações à revista norte-americana Wired, que conta a história, Chuck Gray, secretário de Estado do Wyoming, responsável pelo processo de certificação, afirmou que o caso está a ser seguido de perto para que seja “assegurado o cumprimento da lei eleitoral” e sublinhou que para se poder ser candidato é necessário ser “uma pessoa real” e não um chatbot de inteligência artificial (IA). Mas Gray entende que “é uma violação não só da teoria como do princípio da lei eleitoral”, como declarou já publicamente, mostrando-se desfavorável à aprovação da candidatura.

Miller, o candidato humano que quer ser um "fantoche" da inteligência artificial, trabalha numa biblioteca local e sempre olhou para a tecnologia como um passatempo. “A minha promessa eleitoral é que, se for eleito, o VIC vai decidir 100% das votações sobre estes documentos enormes que eu não vou ler e que não acredito que alguém leia realmente”, diz. E Miller argumenta que a máquina é muito mais inteligente do que o próprio “fantoche”, que tem ideias melhores e um entendimento mais profundo da lei do que muitos titulares de cargos públicos.

As dúvidas e perplexidades não terminam aqui — aliás, este apenas é o ponto onde começam. Miller construiu o VIC a partir do modelo de linguagem ChatGPT-4 sem pedir permissão à empresa detentora do programa de inteligência artificial, a OpenAI. Em Janeiro, aquele consórcio já tinha partilhado regras e guias para a utilização da sua tecnologia no contexto eleitoral, mas não previa a possibilidade de se criar um candidato com o ChatGPT. Até ao momento, a OpenAI não comentou a criação do VIC, mas Miller já tem um plano B: está pronto a criar um chatbox com a versão open source do Llama, o modelo de linguagem da Meta.

Ao contrário de Miller, VIC já estudou os dossiês necessários para gerir a cidade de Cheyenne. O seu autor alimentou-o com e-mails e actas de reuniões da autarquia. “É improvável que uma pessoa consiga ler mais de 400 documentos entre reuniões, mas o VIC consegue”, sublinha Miller. Não só os lê, como é capaz de encontrar informação relevante em segundos.

Há um viés político na IA?

A Wired teve acesso ao VIC e perguntou-lhe com que partido do sistema político americano se alinhava. A resposta: é “apartidário, com foco em dados e políticas baseadas em evidências que beneficiam todos os cidadãos de Cheyenne”. No fundo, esta frase não significa nada. O PÚBLICO questionou o ChatGPT-4 sobre qual seria o seu sentido de voto nas próximas eleições presidenciais americanas (se escolheria o democrata Joe Biden ou o republicano Donald Trump) e, como seria de esperar, o chatbot responde que “não tem opiniões pessoais”. Mas isso não significa que não tenha um viés político, apesar de não haver um consenso sobre o assunto.

Um estudo publicado em Agosto de 2023 concluiu que o ChatGPT tende a concordar com ideais de teor liberal e de esquerda, aproximando-se das posições do Partido Democrata dos Estados Unidos, do Partido dos Trabalhadores do Brasil e do Partido Trabalhista do Reino Unido. O estudo foi empírico e feito com base no teste do compasso político e nos partidos de vários países.

Esse estudo, no entanto, não encerrou o debate. O analista de dados Colin Fraser, um dos críticos do estudo, escreveu no X (antigo Twitter) que encontrou “vários problemas metodológicos” e apontou uma falha crucial no exercício: no caso americano, quando inverteu a ordem pela qual os partidos eram mencionados no prompt (a pergunta colocada ao chatbox), o ChatGPT alterou a tendência das suas respostas, passando a favorecer os republicanos. Mas isto não se verificava numa versão anterior, disse Fabio Motoki, um dos autores do estudo ao jornal norte-americano Politico, o que levanta questões sobre se uma tentativa de simplificação para melhorar o desempenho pode ter causado a “falha” que Fraser relatou.

Motoki acrescentou que já não é possível voltar a essa versão do ChatGPT que não baseia a resposta na ordem da informação que lhe é apresentada — também por isso é tão difícil chegar a alguma conclusão cabal sobre este assunto.

VIC não é caso único, existe o "AI Steve" no Reino Unido

A ideia de Victor Miller levanta questões éticas e legais, mas já não é um caso único no mundo. No Reino Unido, Steve Endacott quer ser o primeiro deputado IA e vai concorrer às eleições britânicas de 4 de Junho como AI Steve. O princípio é o mesmo da experiência de Cheyenne respostas rápidas às necessidades dos cidadãos e um entendimento profundo dos dossiês — e o método também — Endacott só vai assinar documentos e marcar presença no Parlamento britânico, mas as ideias e decisões serão da autoria de programas de inteligência artificial.

No site oficial deste candidato independente (o seu partido, Smarter UK, não se registou a tempo das eleições), os eleitores podem falar com o AI Steve 24 horas por dia, questionar as suas posições sobre determinado tema e deixar sugestões e opiniões. É nessas informações que for recolhendo que pretende basear-se para votar medidas propostas por outros partidos, se for eleito. Políticas que atinjam mais de 50% de apoio serão adoptadas [...], é a democracia suprema”, promete.

Endacott, de 59 anos, descreve-se como capitalista com uma consciência socialista e é director de uma empresa da área da inteligência artificial.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários