Lisboa: do brilho das marchas populares à perda de património

Um dos casos mais evidentes de esquecimento da cidade está à vista de todos, no Cais do Sodré. Trata-se de um conjunto de edifícios com as janelas deixadas abertas, expondo o interior à degradação.

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Megafone P3: Lisboa: do brilho das marchas populares à perda de património sebastiao almeida/ Arquivo
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Nos dias que antecedem as marchas populares, há como que um despertar dos bairros lisboetas. Da Madragoa a Santa Engrácia, há uma cidade que se mostra na Avenida, brilhando ao som de Lisboa não sejas francesa, de Amália Rodrigues. É uma cidade que assim se mantém viva na memória e que ninguém quer perder.

De fora, chegam perspectivas diferentes. Há poucas semanas, escrevia o El País que Lisboa morre de êxito, referindo o esvaziamento de população e da vida de bairro. O artigo reconhece, porém, que cidade está mais arranjada, acumula prémios enquanto destino turístico e deslumbra os visitantes que a escolhem para viver.

De facto, nas últimas duas décadas, a vaga de reabilitação urbana salvou prédios inteiros da ruína, mas a degradação do património continua, em alguns casos com perda irreversível. A lista é extensa: inclui palácios espalhados por toda a cidade e edifícios conventuais que esperam obras urgentes, para que edifícios singulares não se percam para sempre, ou para que a oferta de habitação aumente e Lisboa possa acolher novos habitantes.

Um dos casos mais evidentes de esquecimento da cidade está à vista de todos, no Cais do Sodré. Trata-se de um conjunto de edifícios com as janelas deixadas abertas, expondo o interior à degradação da chuva e do vento húmido do rio. É o quarteirão que limita a Praça de São Paulo a sul, tão importante para contar a história da cidade, que quero destacar.

Porquê destacar um conjunto de prédios pombalinos, com tantos palácios em ruínas? Porque o quarteirão da Praça de São Paulo é dos poucos que mantiveram as características da arquitectura pombalina. Foi com quarteirões assim desenhados que Lisboa se reergueu do terramoto de 1755, com as visionárias, quase futuristas estruturas anti-sísmicas dos prédios.

Visto de repente, parece um quarteirão como tantos outros naquela zona, com telhados e as mansardas milimetricamente alinhados entre si, a fazer ruas simétricas, racionais e iluministas, entre o Tejo e as colinas lisboetas.

Um olhar mais atento, porém, revela o que rareia no resto da cidade pombalina, ou que já não existe de todo: são as janelas em guilhotina, que se abrem de baixo para cima; são os azulejos pombalinos, as ferragens e a marcenaria, a mostrar como seria a cidade reconstruída.

Igualmente importante é o "toque com o chão", isto é, o desenho do nível térreo e dos vãos das lojas de rua. Ao contrário do que se vê numa baixa pombalina que conheceu vários ciclos comerciais, de lojas que se foram renovando, ali, as fachadas das lojas ficaram impecavelmente preservadas, a seguir ainda os desenhos originais dos edifícios.

Há não muito tempo, aquele nível térreo fervilhava de vida e com todo o tipo de lojas, restaurantes e bares, de que é exemplo o nostálgico Café Tati, entretanto deslocado para outra zona da cidade. Seguiu-se um demorado abandono de todos aqueles prédios. A vida urbana ali desapareceu, enquanto se espera o avanço de um projecto de reabilitação, que mais parece ser de resgate de todo um conjunto monumental.

Passar à volta daquele quarteirão é, assim, uma experiência triste e dolorosa. É um conjunto de prédios tão incontornável na localização central, entre a base do elevador da Bica e o mercado da Ribeira: turistas passam à sua volta como se de uma porta giratória se tratasse, mas sem poder ficar, por mais que desejassem.

Fazer no quarteirão da Praça de São Paulo uma extensão do Museu da Cidade, a contar a história da Lisboa pombalina, não seria exagero. Em vez disso, as janelas abertas ao vento aceleram a contagem decrescente para a ruína ou para a descaracterização. Tudo isto acontece à vista de todos, numa cidade que mantém vivas as marchas, e muito do seu património construído. Do que se está à espera?

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