A grande reforma

Para tantos problemas, a solução que esperávamos já está aqui. Estamos a viver uma transformação digital com tal impacto que desconhecemos o seu alcance. E parece que por vezes a queremos minimizar.

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Ao longo de sucessivos governos em Portugal no pós-25 de abril, ecoa entre a opinião pública, mas também na classe política, a ideia de que o país precisa repetidamente de uma reforma. Ou melhor: de várias reformas. Da economia, à saúde, à justiça, ou à coesão, falta sempre “fazer aquilo que ainda não se fez”.

E a resposta invariavelmente está numa previsão legal que é preciso mudar. Um quadro legislativo que tem de ser revisto e que será a solução para os problemas dessa área. As nossas empresas não são competitivas porque existe muita burocracia que é preciso alterar. Os serviços públicos não funcionam porque são muito complexos ou a justiça não responde em tantas áreas porque precisa de uma “grande reforma”.

E lá vamos fazendo sucessivos programas legislativos (de preferência rápidos na aplicação) que são melhores do que os anteriores, que respondem ao que é preciso mudar, como soluções mágicas para os problemas que observamos.

Não deixa de ser verdade que, em muitos contextos históricos, a resposta esteve especialmente centrada em dimensões legislativas face aos desafios da sociedade existentes na altura.

No entanto, à medida que as nossas sociedades vão evoluindo, a complexidade aumenta. Os sistemas interligam-se, as fronteiras reduzem-se e as medidas não acompanham o ritmo de exigência dos cidadãos.

Se não, vejamos a realidade do nosso país: na saúde, alguns hospitais têm bom desempenho, enquanto outros acumulam problemas. Na justiça, alguns tribunais respondem eficientemente, enquanto outros (e de diferentes jurisdições), enfrentam grandes pendências. Na administração local, fora de Lisboa e do Porto, há municípios a rejuvenescer e a reinventar o seu tecido económico e outros com sérias dificuldades em manter a sua população. Mesmo no litoral.

Esta inconsistência sugere que a solução não incide apenas numa única resposta, mas também sobre a execução e gestão eficazes e sobretudo no resultado dessas ações legislativas.

Quantas vezes lemos por exemplo, que medidas de enorme mérito na coesão territorial, ou na habitação, foram afinal utilizadas por muito poucos porque para acederem aos incentivos, os requisitos eram muito restritivos? Ou seja: não serviram o público-alvo.

Quantas histórias conhecemos de empresas que acabaram por desistir de um ou outro programa porque ou eram extremamente complexos na adesão ou estavam associados a regras muito difíceis de cumprir? Seja em casos de grandes empresas ou nas start-ups.

Lá está. É a lei. Temos muitas, mas são tantas vezes inconsistentes e complexas que não respondem a uma solução estruturada para o problema.

E, no entanto, para tantos dos problemas atuais da sociedade, a revolução que esperávamos já está aqui. Estamos a viver no meio de uma transformação digital com tal impacto que desconhecemos o seu alcance. E parece que por vezes a queremos minimizar.

No início do século, esta transformação era, em termos gerais, encarada com amplo entusiasmo, como uma promessa de um futuro melhor. Mas hoje, ao mesmo tempo que é uma revolução com tal impacto nas competências, comportamentos e práticas, na automatização, na eficiência, é ao mesmo tempo encarada com ceticismo por alguns ou com medo do desconhecido.

Os avanços digitais são a oportunidade para, efetivamente, conseguirmos chegar mais longe. Mas aproveitar esta revolução digital implica tomar medidas concretas, começando por saber reforçar as competências gerais da sociedade. E não se trata apenas de melhorar a literacia digital entre a população em geral — embora isso seja importante, especialmente num país como Portugal.

Temos de saber educar os diversos atores sociais, incluindo líderes, decisores, classe política, profissionais e funcionários do Estado, cujos perfis ainda se centram em respostas mais clássicas e não numa visão mais holística das soluções. Precisamos de nos colocar do ponto de vista dos cidadãos e empresas para compreender os seus problemas reais e o propósito das transformações.

E este problema, na verdade, ultrapassa as nossas fronteiras. Numa notícia dos últimos dias do The Telegraph, o organismo auditor britânico dava conta de ser impossível reduzir as pendências nos tribunais, num país considerado a nível internacional como um exemplo. Em Portugal, alguns processos mais complexos chegam a ter mais de dois milhões de documentos. Ora, como é então possível gerir este volume de informação sem reforçar gestão, tecnologia e práticas?

A tecnologia é um instrumento, um catalisador para as mudanças de que precisamos. Não devemos temê-la e utilizar inteligência artificial para acelerar a pesquisa de informação, para reforçar o atendimento, para automatizar tarefas e afetar recursos onde eles mais acrescentam valor. Precisamos de inovação contínua que aborde os problemas reais, reorganizando estruturas, simplificando e melhorando a gestão.

E a solução não passa por criar departamentos de inovação nas organizações. Muito menos na administração pública, como tantas vezes aparece inscrito em programas de governo. A mudança tem de ser transversal, patrocinada ao mais alto nível e incluir todos. Afinal, somos todos inovadores.

Esta é a reforma de que precisamos: que olha para os problemas de forma global e abrangente, garantindo que possamos implementar medidas que tiram partido da verdadeira revolução digital, e que têm tempo para ser executadas e finalmente, em saber medir o seu impacto e resultados.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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