Em defesa das pradarias marinhas do Sado, João Sá investiga e cozinha

Chef do restaurante Sála quer apoiar a ONG Ocean Alive e as suas Guardiãs do Mar, que protegem um ecossistema de valor inestimável. Fomos com a bióloga Raquel Gaspar conhecer este mundo em risco.

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NFS Nuno Ferreira Santos - 9 Fevereiro 2022 - PORTUGAL, Setubal, Peninsula de Troia - Retirada de um cabo de nylon que serve de base de ancoradouro para embarcacoes de recreio, na praia de troia rio, no estuario do rio sado. Este cabo estava a destruir as pradarias marinhas - um habitat constituido por plantas aquaticas que formam um complexo sistema de rizomas em zonas costeiras, lagoas, rias e estuarios. Na foto a biologa Raquel Gaspar, dinamizadora da accao Nuno Ferreira Santos
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João Sá conquistou uma estrela Michelin para o Sála, em Lisboa Manuel Manso
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Andámos apenas meia dúzia de metros dentro de água e Raquel Gaspar já apanhou uma cenoura do mar, que segura na mão para que possamos vê-la melhor. É um animal?, perguntamos. Na verdade, explica a bióloga e fundadora da ONG Ocean Alive, é mais uma colónia de animais que vivem em conjunto e que têm o seu habitat na pradaria marinha sobre a qual nos encontramos.

São 9h da manhã e já guiámos de Lisboa até Setúbal, apanhámos o catamarã para Tróia, vestimos fatos de mergulho e entrámos na água. Mas há quem possa apresentar um feito ainda mais heróico: a chef espanhola Vicky Sevilha, que, tal como nós, respondeu a um convite do seu colega português João Sá, do restaurante Sála, em Lisboa, veio de Espanha directamente para aqui. Quase adormeceu no catamarã, mas a água fria está a dar-lhe uma nova energia. E a história que Raquel Gaspar conta merece toda a nossa atenção.

As pradarias marinhas são um ecossistema fascinante e que está em risco. João Sá quer chamar a atenção não só de Vicky mas de todos os clientes do seu restaurante para o que aqui se passa, e para isso irá criar um prato inspirado neste mundo tão rico de plantas e animais que vivem debaixo de água, mas apenas em zonas abrigadas, sem correntes – e sem poluição.

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É preciso "recuperar as florestas marinhas", defende a bióloga dr

Não foi com estas florestas debaixo do mar que Raquel começou a sua carreira. No início, o que a atraía irremediavelmente – “como a qualquer bióloga” – eram os golfinhos. “Durante vinte anos a minha vida foi dar-lhes nomes, distingui-los, saber qual é qual, quantos anos tem, quem é a mãe.” Mas via que a população do Sado, que já era pequena, uns 30 animais, estava a diminuir. “Os jovens não chegavam a adultos e eu perguntava porquê.”

Até que entendeu que o problema estava na alimentação. O estuário do Sado já não lhes dava o alimento de que precisavam. “O que percebi foi que era preciso recuperar as florestas marinhas, que se estavam a perder, não só aqui mas por todo o mundo, à velocidade de dois campos de futebol por hora. Já perdemos um terço de todas as pradarias.”

Em Setúbal tem havido progressos, conta, recordando que, “em 1992, o cheiro aqui era de esgoto urbano”. Vai explicando a Vicky e à equipa desta que no tempo em que os romanos viviam em Tróia aqui fazia-se o afamado garum, o molho de peixe que era exportado para o resto do império.

Foi em 2014 que Raquel decidiu dedicar-se de corpo e alma à protecção das pradarias e, depois de “muito tempo a olhar o mar”, encontrou outra mulher, uma pescadora. “Tive uma intuição de que tinha de ser com elas, porque são pescadoras e todo o seu modo de vida depende das pradarias. Nasceram assim as Guardiãs do Mar. “Estas mulheres, pescadoras, mariscadoras, ajudam-nos a mudar os hábitos que estão a destruir as pradarias. O primeiro mapa das pradarias foi feito por elas.”

Identificaram prioridades: acabar com o plástico foi uma delas. “As pessoas vinham apanhar o lingueirão, usavam sal [para o fazer sair da areia] e deixavam as embalagens ali. Nos primeiros anos em que andámos a limpar o estuário, não imaginam os milhares de embalagens de sal que encontrámos.” Agora estão centradas em combater os ancoradouros e as âncoras em cima das pradarias e também a mariscagem destrutiva, ligada sobretudo à captura da amêijoa e da minhoca para isco.

A bióloga Raquel Gaspar dr
A bióloga Raquel Gaspar dr
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A bióloga Raquel Gaspar dr

“Este é o segundo maior estuário de Portugal, mas o maior em biodiversidade”, vai contando, enquanto avança pela pradaria. Lança a mão à água e desta vez traz um búzio. “É uma abelha”, diz. Ficamos desconcertados. Mas a explicação vem logo de seguida: “Os búzios fazem aqui o que as abelhas fazem nos campos, polinizam ao passarem na superfície das plantas.”

Mostra-nos depois numa folha uma pequena rugosidade. “Isto é um animal, um hidrozoário.” E continua: “Uma pradaria dá-nos serviços gratuitos. As plantas capturam carbono e azoto e armazenam-no. Esta floresta é 30 vezes mais eficaz a capturar carbono do que as terrestres. Estamos a falar de limpar a água e permitir que esta seja um local onde nidificam e se alimentam muitos seres vivos, uma maternidade para a vida marinha.”

Comer um prato inspirado nas pradarias

João Sá ainda não decidiu que prato vai fazer a partir desta paisagem marinha, mas Raquel vai dando sugestões. Apanha uma amêijoa. “O que vemos negro aqui à volta dela é o carbono que estava na água e que se agarrou às raízes das plantas da pradaria. Estava a pensar que tens de falar disto de alguma forma.”

João vai tomando nota mental de tudo o que vê, enquanto usa um óculo que permite espreitar para observar o que se passa abaixo da superfície da água. É um mundo tão complexo que só com a ajuda de alguém que já o conhece bem, como Raquel, começamos a ter uma pequena noção do que representam realmente estas manchas escuras que vemos a partir da praia.

Também as enguias – que para Raquel “são dos seres vivos mais incríveis do planeta” – aqui procuram refúgio. Vindas do mar dos Sargaços, ainda muito pequenas, “entram nos estuários quando começa a chover e ficam aqui vários anos, 10, 15, 20, a crescer. São um símbolo muito importante das pradarias e estão em vias de extinção.”

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O Sála de João conquistou recentemente uma estrela Michelin dr

É todo este mundo que é preciso proteger, alerta Raquel. E, para isso, a primeira coisa a fazer é conhecê-lo melhor. João Sá vai dar a ajuda possível, levando-o à mesa no seu Sála. Para além do prato – “quero trazer o cheiro, as plantas” – planeia também vir a ter um QR Code que leve a um vídeo sobre as pradarias. E, muito importante, atribuir um valor por prato que seja uma doação para ajudar ao trabalho da Ocean Alive.

Para Raquel, a ajuda é, neste momento, nove anos depois do início desta aventura, essencial para as Guardiãs do Mar. “Somos uma ONG muito pequena e este ano, que é o décimo, chegámos ao limite, temos de nos associar a algo maior que nos dê estrutura ou temos de conseguir financiamento de outro tipo.” Comer um prato inspirado nas pradarias marinhas pode ser uma forma de começar a ajudar.

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