O futuro solar da Andaluzia vai além do fotovoltaico
Para muitos, o solar resume-se a painéis fotovoltaicos, mas a energia térmica também faz parte do pacote. Nos arredores de Sevilha, o futuro das renováveis é aquecido pelo calor do solar térmico.
Nem só do fotovoltaico se faz a energia solar, e a grande fábrica da Heineken na Andaluzia é um bom exemplo disso. Aqui produz-se 41% da cerveja de Espanha, país que é o segundo maior produtor da Europa (atrás apenas da Alemanha). Mas visitamos a estrutura para ouvir falar, não sobre cerveja, mas sobre energias renováveis: na fábrica da Heineken, onde a cozedura das bebidas e o funcionamento dos sistemas só são possíveis com altas temperaturas, o gás natural começa a ser substituído pela energia que vem do parque solar térmico ao lado da fábrica e inaugurado em Setembro do ano passado.
É um dos maiores parques da Europa de concentração térmica solar de aplicação industrial, com reflectores distribuídos por oito hectares, uma potência instalada de 30MW e capacidade de armazenamento de 68MWh (suficiente para oito horas a trabalhar sem sol). Aqui, cilindros parabólicos servem como concentradores ópticos para gerar calor e produzir o vapor que gera electricidade. Em combinação com tecnologias de armazenamento de calor, estas tecnologias de concentração de energia solar (CSP) permitem produzir electricidade de dia e à noite, um bónus por comparação com a produção fotovoltaica – que é ainda um investimento mais rentável, mas levanta questões em matéria de estabilidade da rede.
Nos dias que correm, é cada vez mais forte o imperativo de “descarbonizar” a produção e o consumo de energia – mas a electricidade não é a única forma de energia, nem a electrificação dos consumos será a única resposta para a reconfiguração necessária em toda a linha. Dentro do leque de energias renováveis, a tecnologia solar térmica é mais conhecida com fins de aquecimento da água nos edifícios urbanos, mas também pode ter aplicações industriais.
A União Europeia conta com 2,3GW de potência instalada de CSP, e Espanha lidera nesse campeonato.
Sustentabilidade do campo ao bar
Na fábrica da Heineken perto de Sevilha, que o Azul visitou com um grupo de jornalistas a convite da Comissão Europeia, o consumo de energia é dividido praticamente a meio entre electricidade e energia térmica, que antes era gerada maioritariamente por gás natural e uma fracção de biogás (feito a partir de resíduos). Agora, a energia solar já substituiu 60% do consumo de gás, o que permitiu uma redução nas emissões da fábrica em cerca de sete mil toneladas de CO2 equivalente por ano.
Agora, o foco da equipa é na eficiência energética: “o primeiro passo é reduzir o consumo de energia térmica” para que 100% provenha de fonte renovável, explica Consuelo Carmona Miura, responsável pela área de sustentabilidade da Heineken España.
Engenheira industrial a trabalhar na Heineken há 16 anos, Miura vai detalhando os passos dados para garantir um melhor isolamento dos grandes tanques onde as bebidas fermentam a altas temperaturas, os melhoramentos feitos no sistema de limpeza e ainda o sistema desenhado para recuperar internamente não apenas a energia térmica, mas também a água, numa região de escassez hídrica.
Em 2021, a Heineken España começou a trabalhar com toda a cadeia de produção para pôr no terreno a estratégia de sustentabilidade “do campo ao bar”, conta Consuelo Carmona Miura. Ainda há um caminho intenso até chegar à neutralidade carbónica que pretendem na cadeia de valor até 2040, mas na fábrica em Sevilha já se consegue vislumbrar um pouco desse futuro.
O que cabe no mix?
Para atingir a neutralidade climática prometida até 2050, ou mesmo o corte de emissões em 55% até 2030 conforme previsto na Lei Europeia do Clima, a União Europeia ainda tem um longo percurso pela frente. O objectivo é atingir, pelo menos, 42,5% de energias renováveis até 2030, sem perder a ambição de atingir, quiçá, uma fatia de 45%.
Há dois anos, quando a guerra na Ucrânia acordou a União Europeia para a dependência da energia russa, o bloco tratou de montar um plano para a transição energética da UE, o RePowerEU, com olho também na recuperação do sector industrial europeu.
O programa incluía uma estratégia específica para a energia solar, cujos resultados são hoje visíveis: a potência instalada passou de 164,19GW em 2021 para 259,99GW em 2023. As instalações em 2022 e 2023, garante a Comissão Europeia, “pouparam o equivalente a 15 mil milhões de metros cúbicos de importações de gás russo no total, mitigando o risco de interrupção do fornecimento de gás à União”.
De acordo com o European Electricity Review 2024, publicado pela Ember Climate, a produção de electricidade solar atingiu 9% da produção total de electricidade da UE em 2023. A energia solar, em particular a energia fotovoltaica (PV), é actualmente a fonte de energia renovável em mais rápido crescimento na UE. No final de Abril, a Direcção-Geral de Energia da Comissão Europeia levou um grupo de jornalistas de vários países europeus a Sevilha e arredores para conhecer os resultados da aposta no solar – e a energia térmica, quase sempre eclipsada pela fotovoltaica, chama a atenção na equação da Andaluzia.
Apoio público
Neste momento, as energias renováveis contribuem em 22% para o mix energético da Andaluzia – o plano é chegar a 42% até 2030. Em termos de electricidade produzida, a fatia garantida pelas renováveis é hoje de 60%, mas o objectivo é chegar aos 74% até ao final da década.
A transformação da fábrica de cerveja da Heineken mostra que esta transição será bastante difícil de fazer sem apoios públicos, mas também não se fará sem a adesão activa do sector privado.
Consuelo Carmona Miura reconhece que não teria sido possível investir no sistema solar térmico sem o co-financiamento do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) de 13,4 milhões – 61% dos 21,7 milhões de euros do investimento total no parque. Agora, a Heineken manterá por 20 anos o contrato de compra de energia de longa duração com a Engie España, investidor e operador da central, que tratará do fornecimento de energia à cervejeira a um preço pré-acordado.
Joaquin Villar Rodriguez, da Agência de Energia da Andaluzia (AEA), explica que a região, bem-fadada com exposição solar, é também um local onde a aposta em inovação tem sido constante nas últimas décadas. “Sempre tivemos um forte compromisso com as energias renováveis através de muitos planos e subsídios públicos”, descreve o responsável pela área de internacionalização da AEA, recordando o lançamento do programa Prosol, em 2009.
Com uma capacidade instalada de 11GW de energia renovável (cerca de 53% fotovoltaica), o plano para os próximos anos é ambicioso: um investimento de 12 mil milhões de euros para acrescentar 12GW apenas em energia solar.
Mas uma “parte importante do consumo” não se resolve com o fotovoltaico, sublinha o engenheiro industrial, que tem acompanhado as políticas renováveis da Andaluzia há 15 anos. É preciso ir à procura de outras soluções.
E Portugal com isso?
O Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC) de Portugal prevê que a capacidade da fonte solar aumente 18.297MW entre 2022 e 2030, incluindo os objectivos de 5500MW para o fotovoltaico descentralizado e 600MW para o solar térmico concentrado, cuja capacidade em 2025 ainda deverá ser nula em Portugal.
No PNEC está prevista a promoção de “projectos-piloto com base nas tecnologias de solar térmico concentrado, enquanto tecnologia que permite o armazenamento de energia”. “No caso da indústria, [o solar térmico] deverá crescer substancialmente a capacidade de satisfação das necessidades de calor de baixa/média temperatura”, promete-se ainda no documento orientador.
Já quanto ao edificado, os sistemas de aquecimento solar, que podem ser instalados nos telhados, são vistos como “uma das formas mais eficientes para o aquecimento ambiente e de águas, contribuindo para o aumento do conforto”.
De olhos postos no longo prazo, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC) 2050 prevê que dentro de 25 anos mais de 90% das necessidades de aquecimento de água serão asseguradas por solar térmico, cerca de 11% do consumo total de energia, e 55% das necessidades de aquecimento e arrefecimento de espaços serão garantidas por bombas de calor, nota o estudo Viabilidade da Descarbonização dos Edifícios Residenciais – Desafios e propostas no contexto de Portugal, produzido pela associação ambientalista Zero com o contributo de investigadores da Universidade Nova de Lisboa.
Energia solar à noite não é ficção científica
Voltamos ao caso exemplar de Sevilha. Ao vislumbrar o topo da torre de 140 metros da central eléctrica Gemasolar, um núcleo iluminado e aquecido por 2600 espelhos (helióstatos) distribuídos de forma concêntrica por 210 hectares para reflectir com precisão a luz do sol, é difícil não pensar que nos aproximamos de um cenário de ficção científica.
A energia concentrada no topo da torre é encaminhada para aquecer as 80 mil toneladas de sal fundido (molten salt) que circulam em dois tanques junto ao solo – a 560 graus no tanque de sais quentes e 290 graus no tanque de sais “frios”.
O sal fundido – uma mistura de nitrato de sódio e nitrato de potássio – é um meio para transmissão de energia, mas também para armazenamento do calor: o sistema permite manter as tubagens a 290 graus também durante a noite, permitindo até 15 horas de armazenamento, para que a produção de energia não pare.
“Armazenamos energia térmica para depois transformar em electricidade”, explica Sebastián Fernández Pérez, chefe de operações desta estrutura da Torresol Energy Investments. Assim, a geração de energia permanece relativamente estável, sendo possível armazená-la para quando os preços estão mais altos.
Uma receita a replicar?
A Gemasolar conta também com um parque fotovoltaico que apoia a produção de energia solar, ocupando um total de 300 hectares e perfazendo uma capacidade instalada de 19,9MW e 75GWh de energia gerada por ano – suficiente para fornecer energia para 27 mil casas por ano. Em jeito de comparação, o parque solar fotovoltaico de Alcoutim, o maior em Portugal, tem uma capacidade instalada quase dez vezes superior, de 219MW.
Esta foi a primeira estrutura de torre central com receptores de sal a entrar em operação comercial, em 2011. O custo inicial foi de 230 milhões de euros, mas Sebastian Fernandez, da Torresol, nota que a instabilidade actual do mercado pode dificultar – e encarecer – os investimentos (ainda que a inovação tenha aprimorado os processos).
A pergunta dos jornalistas é sempre a mesma: quais são as condições para replicar um projecto destes? Concentrar energia suficiente para aguentar as temperaturas de operação durante a noite requer uma quantidade de radiação solar que não se consegue em qualquer lugar – tanto em termos de exposição solar como em termos de disponibilidade de território. Veja-se pelos outros locais do mundo onde existem centrais como esta: Estados Unidos (no deserto do Arizona), Chile, Marrocos e Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, descreve Sebastián Fernández Pérez.
As implicações ambientais, à semelhança do que se passa por todo o mundo, não são de se ignorar, mas o engenheiro industrial tem a resposta pronta: em caso de acidente, o pior cenário será de uma grande salinização do solo, mas sem contaminação com outros compostos.
Em matéria de biodiversidade, a Torresol cuidou da vigilância da fauna durante oito anos, trabalhando agora com a autarquia e com uma empresa para aumentar a população dos animais. Neste momento, diz com um sorriso, uma das actuais preocupações é uma comunidade de pombas, que procuram o calor da torre para construir os seus ninhos – pondo-se em risco de serem cozinhadas.
Solar térmico: do telhado para o banho
Regressamos então à principal vantagem da energia térmica, por comparação com a fotovoltaica: “o fotovoltaico é bom para produzir electricidade, mas não para aquecer”, diz-nos Angel Martinez, gestor financeiro da Termicol, na visita à pequena fábrica desta produtora de painéis solares térmicos que ainda tem como foco o mercado residencial.
Além das aplicações industriais e das vantagens do calor na facilidade de armazenamento, a tecnologia solar térmica é particularmente estratégica no aquecimento da água nas habitações – um dos pontos fracos das emissões dos edifícios residenciais actualmente.
Uma das vantagens dos sistemas de aquecimento solar é que podem ser instalados na maioria das regiões da Europa. De acordo com o Solar Thermal Market Outlook, da Solar Heat Europe, mais de dea milhões de telhados na Europa estão equipados com painéis solares térmicos e armazenamento termal.
Para integrar as tecnologias solares nos sistemas de aquecimento de mais edifícios, o sector irá contar com um empurrãozinho da directiva sobre desempenho energético dos edifícios, aprovada no início deste ano, que dita que as novas construções terão de ter sistemas de aquecimento livres de combustíveis fósseis a partir de 2030.
É aqui que entra outro desafio partilhado com o sector fotovoltaico: a Agência Internacional da Energia (AIE) estima que os painéis solares produzidos na China correspondem a mais de 90% da capacidade instalada na Europa; um relatório da Comissão mostra que os componentes exportados pelo gigante asiático compõem cerca de dois terços dos que são usados na UE, uma dependência que cria riscos para a indústria europeia.
Para a Comissão Europeia, a solução para quebrar essa concentração é investir na cadeia de valor solar europeia. O primeiro desafio é enfrentar os preços baixos dos painéis importados, difíceis de responder para a indústria europeia, com as suas regras mais apertadas. O acto legislativo para a neutralidade da indústria (Net-Zero Industry Act), sobre o qual foi alcançado um acordo político em Fevereiro, inclui medidas que procuram dar o impulso necessário. Resta saber se a economia irá responder como se espera.
“Infiltrar cadeias de valor com mudança radical”
Uma das peças do puzzle de inovação da Andaluzia é a presença, desde 1992, de um dos pólos do Centro Comum de Investigação – mais conhecido como Joint Research Center (JRC) –, a última paragem desta espécie de peddy paper preparado pela DG ENER. Em Sevilha localiza-se o pólo do JRC dedicado às dimensões socioeconómicas das políticas europeias, com especial foco na transição climática.
Avaliar os custos da inacção é “uma tarefa metodológica fenomenal”, mas necessária, explica António Soria Ramirez, coordenador da unidade que analisa a economia das alterações climáticas, energia e transportes. Os impactos são cada vez mais visíveis: ondas de calor, meses de seca, anos de erosão dos solos, décadas de subida do nível da água do mar.
A receita é “simples”: electrificar os consumos e descarbonizar a produção de energia. Porque é que é preciso, afinal, fazer este esforço que mexe de tal maneira com o sistema? António Soria Ramirez traz a resposta crua: “Queimar combustíveis fósseis está a pôr o sistema ecológico como um todo em perigo, ameaçando as condições de vida nos oceanos e continentes.”
Apesar dos esforços, o consumo global de combustíveis fósseis continua a aumentar, o que significa que a sua substituição só será possível se os países levarem a sério o investimento em várias alternativas. “A questão é como fazer isto sem dar tiros nos pés”, reconhece. “Queremos preservar a integridade dos nossos pés.”
Uma das grandes preocupações dos investigadores do centro científico da Comissão Europeia é que tornar a energia mais cara é uma medida regressiva – o impacto é imensamente desproporcional entre a fatia de pessoas com mais recursos e o quintil mais vulnerável.
“A boa notícia é que isto é concretizável”, diz aos jornalistas: a tecnologia necessária já existe e “as soluções já estão no mercado – e conseguem dar conta do trabalho”. “Não há nenhuma lei da física que impeça isto de ser feito”, comenta, em jeito de brincadeira.
O que falta, então, para fazer acontecer? “Infiltrar as cadeias de valor com a mudança radical de que precisamos.” É caso também para dizer que não se deve pôr todos os ovos no mesmo cesto, até porque cada território tem as suas características próprias, mas garantir que todos os ovos são bons o suficiente para cada necessidade.
“Vamos focar-nos nas boas notícias de hoje, não nas más notícias de amanhã”, pede António Soria Ramirez. “Esta é a minha perspectiva, na humilde opinião de um triturador de números.”
O Azul viajou a convite da Direcção-Geral da Energia da Comissão Europeia (DG ENER)