Demasiado queer

Quando celebramos em junho, de bandeira em riste e de corações ao alto, estamos a celebrar aqueles que morreram vítimas destes arautos — ora antes, ora durante, ora após Stonewall.

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Megafone P3: Demasiado queer Teresa Pacheco Miranda
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O que vos escrevo não é uma opinião, é um desabafo, em virtude do orgulho que junho, de bandeira em riste, vem celebrar.

Felizmente, durante uma significativa parte da minha curta vida cresci num meio são, onde não existiam homens e mulheres, homossexuais ou lésbicas, trans ou cis, brancos ou negros, normais ou anormais (tirando o vizinho do 3.º esquerdo que nos acordava a meio da madrugada aos berros, depois de ter sido derrotado numa qualquer partida de Call of Duty). Existiam apenas pessoas, com virtudes e defeitos, mas que sempre procuraram o melhor para si e para a comunidade onde se inseriam, fosse ela o seu bairro, o seu prédio, ou o pequeno café onde os velhos se juntavam, sem pressas, a contar graçolas tão ou mais velhas que eles, sobreviventes do tempo e da memória.

Fruto desta feliz bolha, despertei tarde para os dramas comuns que uma pessoa queer sofre. E é sobre isso que vos escrevo nesta longa introdução, em honra do mês do orgulho LGBTQI+​.

Um dos problemas de despertar demasiado tarde para a nossa realidade é que o choque é muito maior. Sentimos muito mais as coisas e a mágoa que muitas vezes nos preenche é também ela maior, às vezes maior do que julgamos suportar.

Quando sentimos a discriminação e a vemos de perto, quando ouvimos um estranho dizer que não somos normais, ou que Deus nos odeia, quando sentimos o que é ser atacado apenas por ser plenamente, a revolta dentro de nós rebenta como uma bomba, no impacto de um ataque que nos arrasou de alguma forma. Quando o normal era viver numa rua onde as diferenças se resumiam a isso mesmo, isto é, a coisas normais da vivência mundana que nos une a todos — ou deveria —, e passa a ser o medo de viver a nossa realidade, porque sabemos que há alguém à nossa volta que está contra a nossa existência, apenas porque a realidade que nos define vai contra os seus preconceitos — alguém que nunca sequer nos viu — então aí há uma razão para se celebrar o mês do orgulho LGBTQI+​.

A normalidade morreu a partir do momento em que o primeiro indivíduo foi atacado por pessoas, tão humanas quanto nós, só por ter cometido esse pecado mortal que é ser como é, única e integralmente.

Para os arautos da moralidade ser livre é um crime digno da supressão da liberdade pessoal. Estes guardiões dos bons costumes, que atacam as mulheres por serem livres com o seu corpo, que diminuem pessoas negras por serem negras, são os mesmos que condenam as pessoas queer à insegurança de serem elas mesmas, plenamente, num mundo que, idealmente, não perseguiria ninguém na sua liberdade.

E note-se o seguinte: quando se confronta um destes sacrossantos protectores da moral com os seus pecados, a resposta imediata é: “Eu sou contra os que são demasiado queer! As bichas, os que se beijam na rua, que andam de mão dada, que se mostram demasiado”. E é aqui que vemos que para estes homens e mulheres somos todos demasiado queer, porque todos nós já fizemos isto, tal como eles e elas fizeram com os seus maridos e esposas. E por isso mesmo, somos o alvo. E gostar que fosse diferente era bom, mas isso era desejar que o mundo fosse normal, quando nunca o foi.

Há certamente quem entenda que o caminho perante tantos ataques seja o de ripostar, como que se vivêssemos num filme de cowboys do faroeste. Não. Ao radicalismo do ódio respondemos com o radicalismo do amor. Respondemos com a nobreza que é viver fiéis a nós próprios e à luta pela igualdade dos que vivem cá hoje, dos que viverão cá amanhã.

E é dentro desta resposta que o mês do orgulho LGBTQI+ se integra.

Junho é a merecida homenagem a Stonewall, àqueles que antes se mostraram, que evidenciaram como existimos, como para aqueles que depois lutaram, pela liberdade de viver em paz, de viver por tudo o que vale a pena. É a merecida homenagem a Oscar Wilde, Marsha P. Jonhson, Gisberta Júnior, Marielle Franco.

É a merecida homenagem a todos os que vivem a ousadia de celebrar o sonho absoluto: de um dia viver em normalidade, sem medos de ser discriminado porque amamos alguém cujo género é igual ao nosso e, por isso mesmo, aos olhos de alguns, ser demasiado queer.

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