É urgente criar resiliência no setor agro-florestal e recursos hídricos em Portugal
Não é fácil falar dos desafios que as alterações climáticas colocam à agricultura, à floresta e às disponibilidades de água, porque as notícias não são as melhores. Comecemos pela origem do problema: a utilização intensiva de energia por meio de combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural –, iniciada na Revolução Industrial do século XVIII, melhorou muito o bem-estar e a prosperidade económica média mundial, especialmente nos últimos dois séculos, embora haja desigualdades crescentes.
A acessibilidade e o preço relativamente baixo dos combustíveis fósseis, associados aos avanços científicos, tecnológicos e socioeconómicos, contribuíram para uma melhoria da saúde pública, um aumento da esperança de vida, da fertilidade, e da qualidade de vida praticamente em todas as regiões do mundo, embora de forma diferenciada. Esta situação criou o paradigma do uso intensivo de energia e tornou-o indissociável da atual civilização globalizante. Porém, a partir da primeira metade do século XIX, Joseph Fourier (1827), John Tyndall (1863), Svante Arrhenius (1896) e Gilbert Plass (1956) descobriram que a utilização intensiva de combustíveis fósseis tem um efeito colateral no clima global que consiste na intensificação do efeito de estufa resultante da emissão de gases com efeito de estufa (GEE), especialmente o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4).
A intensificação provoca um aumento da temperatura média global da atmosfera à superfície (TMGAS), geralmente designado por aquecimento global, e da frequência e intensidade dos eventos meteorológicos e climáticos extremos, resultante do excesso de energia térmica acumulada no sistema climático. Esta previsão científica foi provavelmente a mais escrutinada de sempre devido à sua óbvia “inconveniência”, como salientou o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore.
O ruído gerado em redor do tema é grande, apesar da evidência das alterações climáticas ser cada vez mais visível. Em 2012, Donald Trump, que poderá ser o próximo Presidente dos EUA, publicou no Twitter, agora X, a mensagem "O conceito de aquecimento global foi criado por e para os chineses, a fim de tornar a produção económica dos EUA não-competitiva", partilhada mais de 104.000 vezes e "apreciada" mais de 65.000!
Como se sabe, temos essencialmente duas respostas para o problema da mudança climática: a mitigação, ou seja, a transição energética para fontes de energia não-fósseis, e a adaptação para minimizar os impactos gravosos nos vários setores socioeconómicos, em particular na agricultura e nos recursos hídricos.
A UE tem sido líder no processo de mitigação, mas o problema global mantém-se. A dependência mundial nos combustíveis fósseis foi de aproximadamente 80% nos últimos 50 anos, de 82% em 2021 e 81,8% em 2022. Para não ultrapassar um aumento de 2°C da TMGAS relativamente ao período pré-industrial, conforme recomenda o Acordo de Paris das Nações Unidas sobre clima, é necessário atingir emissões globais líquidas nulas de CO2 em 2050. Infelizmente, não há sinais de que tal seja possível.
No Norte Global e na China, a mitigação está mais desenvolvida, mas os progressos têm sido lentos face à atual urgência de resolver o problema, urgência que resulta da concentração atmosférica de GEE continuar a aumentar ano após ano, em lugar de começar a diminuir. O resto do mundo está a iniciar o processo de mitigação. As guerras atuais e o crescente conflito geopolítico entre os EUA e a China pela supremacia económica mundial são muito mais importantes do que a ação climática solidária, coordenada e otimizada à escala global.
Não são boas notícias para a agricultura e para a segurança alimentar de grandes regiões do mundo, porque o setor é um dos mais vulneráveis aos impactos das alterações climáticas. Os agricultores da UE já estão a lutar contra o aumento da temperatura média, da intensidade e frequência das ondas de calor, das secas e das cheias. Os impactos são reconhecidamente mais graves no Sul da Europa devido à descida da precipitação média anual no Sul, contrariamente ao que se observa no Centro e Norte.
É importante termos consciência da situação atual e sermos realistas, mas mais importante ainda é termos uma visão de futuro que permita adaptar os recursos hídricos, a agricultura e a floresta ao clima em mudança. É essa visão de futuro, essa energia para procurar resolver as dificuldades e criar maior resiliência naqueles três setores com a ajuda da ciência e da tecnologia, que tem faltado em Portugal.
Não existe um plano para assegurar as disponibilidades hídricas essenciais a uma economia robusta que leve a sério o deslizamento para um clima mais quente e mais seco. Este plano é sobretudo urgente no Sul do país, mas deverá integrar o facto de o Norte, e especialmente o Noroeste, continuar a ter no futuro precipitações relativamente abundantes.
Felizmente foi anunciado recentemente, em 22 de maio, pelo Governo, a elaboração do Plano Nacional da Água (PNA 2025) que será financiado pelo PT2030, PRR e Fundo Ambiental. A primeira prioridade deverá ser usar a água com maior eficiência nos setores urbano, agrícola e industrial. Tenho dificuldade em entender como a existência de perdas médias de água de 30% no setor urbano de um país que luta com escassez de água em parte do seu território não gera maior atenção e ação prioritária e rápida.
Para garantir a eficiência do uso, é imprescindível medir toda a água que se usa nos três setores, incluindo a que se extrai dos aquíferos. Para além da eficiência deveríamos cultivar a suficiência do uso, ou seja, utilizar apenas a água indispensável. Porém, além da eficiência e da suficiência, é necessário criar novas disponibilidades de água nas regiões mais afetadas pela escassez. As soluções que existem atualmente são: aumentar a capacidade de retenção de águas pluviais, transvases, reutilização das águas residuais urbanas devidamente tratadas ou APR (águas para reutilização) e dessalinização de águas do mar ou salobras. Em várias regiões do país assiste-se à sobreexploração da água dos aquíferos, o que tem consequências socioeconómicas e ambientais obviamente muito negativas, especialmente a médio e longo prazo.
É muito importante partilhar as boas práticas de outros países da Região Mediterrânea que lutam há mais tempo com a escassez de água, como Espanha e Chipre. A situação atual na Catalunha é preocupante e não é mais grave em Barcelona porque em 2009 entrou em funcionamento a Central de Dessalinização de El Prat de Llobregat com a capacidade de produzir 200.000 m3 de água potável por dia. Entretanto, foi já tomada a decisão de construir duas novas centrais em Barcelona para fazer face ao decréscimo da precipitação média anual e à procura de água.
No que respeita à agricultura, o regadio é essencial à segurança alimentar do mundo. A agricultura de regadio representa um quinto da área cultivada global e contribui para a produção de 40% dos alimentos a nível mundial, além de permitir uma maior intensificação e diversificação da produção. O que é necessário é adaptar o regadio às novas condições climáticas por meio da criação de novas disponibilidades de água e de maior eficiência no uso da água. As novas disponibilidades devem ser as mais adequadas à região em termos das condições edafoclimáticas, hidrológicas, geográficas, demográficas e socioeconómicas. Por exemplo, nas regiões de Valência e Múrcia, em Espanha, onde o índice de aridez está a transitar de árido para desértico, a produção agrícola de regadio depende em grande parte das APR (águas para reutilização). Em conjunto, estas duas regiões produzem mais de metade das APR utilizadas no regadio em Espanha.
No Algarve há várias soluções para a escassez de água. Algumas já estão a ser implementadas, mas há muito mais a fazer. A planeada constituição do grupo Águas do Sul, envolvendo as Associações do Sudoeste Alentejano, Algarve e Campilhas Sado, é uma excelente notícia. Note-se que o transvase do caudal ecológico do Guadiana no Pomarão para as Ribeiras do Algarve, semelhante à captação espanhola “clandestina” desse caudal em Boca Chança para o região de Huelva, depende da anuência de Espanha e com as atuais tensões entre os dois países relativamente à utilização da água do Alqueva poderá demorar muito tempo a concretizar-se. Por várias razões, incluindo a urgência da situação, é preferível apostar em soluções que dependem apenas de decisões nacionais.
O que creio deve ser evitado é diminuir o desempenho e o valor socioeconómico do Sul do país e de algumas regiões do interior pelo facto de o clima estar em mudança. Se o país não apoiar, valorizar e investir no setor agro-florestal e nos recursos hídricos, a consequência inevitável será a o agravamento da tendência de desertificação e de despovoamento de vastas regiões do interior e do Sul de Portugal continental. É necessário acreditarmos em nós próprios, na nossa capacidade de nos adaptar às novas circunstâncias, e de criarmos a resiliência necessária para enfrentar o futuro com conhecimento, determinação e confiança.
Lisboa, 25 de maio de 2024
Este texto foi escrito no âmbito da iniciativa B-Rural, promovida pela Consulai e cofinanciada pela Comissão Europeia. Cofinanciado pela União Europeia. No entanto, os pontos de vista e as opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade do(s) autor(es) e não refletem necessariamente a posição da União Europeia. Nem a União Europeia nem a entidade que concede o financiamento podem ser responsabilizadas pelos pontos de vista e pelas opiniões expressas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico