O Ferrari da abetarda e o iate do priolo

Precisamos de água, solo, ar e biodiversidade, mas qualquer euro para os manter ou recuperar é criticado. Este desligar da Natureza e a sua ausência nos debates repete-se de eleição para eleição.

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Novamente em eleições, é preocupante como candidatos, e partidos, pouco abordam as questões da Natureza. O “Ambiente” aparece aqui e ali, com o verde a colorir as frases, mas esse “Ambiente” é a Energia, com as renováveis, transição energética e neutralidade carbónica à cabeça. Por vezes alguma “sustentabilidade” para as empresas e digitalização. Parece que a Natureza está ligada a baterias ou a mandar vir comida nas apps.

Este desligar da Natureza e a sua ausência nas discussões e debates repete-se de eleição para eleição com reflexo claro nos programas de governo e na relevância dada às diferentes políticas. Mesmo que as crises de biodiversidade e climática sejam uma evidência diária...

Com a situação mundial ainda se cava mais este irrealista fosso que muitos promovem entre “nós” e a “natureza”. Sendo essa “natureza” os bichos e os matos que existem fora das cidades, nos campos que vemos no verão a caminho das praias.

O betão e o alcatrão, e os TikToks e YouTubes, são reflexo de uma sociedade urbana, indiferente e claramente desconhecedora do que é a Natureza. Imaginam uma “natureza” difusa de TV e quase irrelevante no dia-a-dia. E isso não podia ser mais errado…

Discursos técnicos à parte, nós somos Natureza, a Natureza somos nós e tudo o mais, existe em todo o lado e a sua (nossa) evolução depende do comportamento de todos os elementos que dela fazem parte. Seja o ser humano, uma formiga ou um vírus. A Natureza está no ar que respiramos e poluímos, mas que podemos purificar. Está na água que bebemos e usamos para produzir alimentos, e que gerimos tão mal, mas que podemos gerir melhor. Está sempre presente: porque onde estiver um humano está Natureza!

Como seres racionais que somos, conseguimos ter uma capacidade enorme de construir, ou destruir, o nosso meio envolvente e mesmo o nosso próprio planeta. A indiferença do que é a Natureza e a sua importância fundamental para a nossa existência transforma-se quase em rivalidade e confronto quando se fala em políticas de conservação e restauro da natureza. Precisamos de ambientes saudáveis para sobrevivermos, mas ao falar em investimento nesse sector são muitos que dizem ser “secundário” ou quase um capricho dos “ambientalistas”, como se as matérias-primas que alimentam a economia e asseguram parte do nosso bem-estar caíssem do céu…

Precisamos de água, solo, ar e biodiversidade mas qualquer euro para manter ou recuperar esses valores é criticado. Ou então contabilizamos medidas avulsas como bem-estar de animais domésticos, ou podas de jardins como investimento na “natureza” e já se faz o possível…

Investir na Natureza é seguir espécies e habitats, remover plantas exóticas e plantar nativas, remover barreiras fluviais obsoletas, cooperar com agricultores/pescadores/produtores florestais para adotarem melhores práticas e manterem o rendimento. E também comunicar o que se faz, formar jovens e adultos, ter reuniões com autoridades, produzir conhecimento técnico e científico, e muito mais.

Investir na Natureza, do ponto de vista económico e social é tão válido como qualquer outro sector. Cria emprego, dinamiza economia em zonas mais rurais e desfavorecidas, ajuda a fixar população e capta pessoas qualificadas, atrai visibilidade e visitantes, capta geralmente financiamento europeu e privado! As despesas de uma entidade de conservação da natureza são parecidas com uma empresa agrícola ou de construção: salários, viaturas e gasolinas, ferramentas diversas, refeições, alguns equipamentos específicos como computadores ou sensores. E gera impostos! Uma boa parte do investimento vai directamente para o Estado (e para todos) através de IVA e IRS.

Uma análise de 12 projetos do programa europeu LIFE desenvolvidos por várias associações ambientais portuguesas entre 2010 e 2020 (com auditorias técnicas e financeiras a nível nacional e europeu) resultou em números esclarecedores. Os projetos permitiram um investimento de 24,4M euros na gestão da Rede Natura 2000; 7,7M euros (31,6%) tiveram origem nacional, 5,1M euros garantidos por organismos do Estado e Fundo Ambiental, e os restantes 2,6M euros suportados pelas associações e outras entidades privadas.

O Estado recuperou em impostos e contribuições sociais 6,5M euros (26,9% do investimento total) ou seja, obteve um valor positivo líquido de 1,4M euros, porque não suportou a totalidade do cofinanciamento nacional. Por cada milhão de euros que o Estado invista na conservação da natureza, o programa LIFE coloca pelo menos mais 2,1 milhões, e o Estado recupera 800 mil euros em impostos e contribuições sociais. Com um investimento líquido de apenas 200 mil euros nos projetos LIFE geridos por ONGAs, o Estado pode gerar mais de 3 milhões de euros para a conservação da natureza e dinamização da economia local.

Isto são os impactos económicos directos, para além dos ambientais, a que se devem juntar muitos outros indirectos e mais difíceis de contabilizar. Dinamizar o turismo de Natureza com as abetardas de Castro Verde, o priolo em São Miguel, ou o festival ObservArrivas em Trás-os-Montes. Formação em áreas como a ecologia, gestão hídrica, boas práticas agrícolas e florestais. A valorização e divulgação nacional e internacional de territórios onde o lobo, o lince e a águia imperial (ainda) continuam a existir. A promoção de produtos locais com valor ecológico seja de madeira certificada ou de pastorícia extensiva. É muito diverso o retorno destes investimentos.

No entanto é “fácil” gastar um milhão a fazer um prédio que nem chega a ser utilizado só para “aproveitar os fundos”, sem qualquer retorno posterior, enquanto para obter apoio para “construir” a Natureza que somos nós, trava-se uma luta constante e desgastante, rapidamente suplantada por um protesto ou vozes mais altas.

Em 20 anos de conservação nunca vi uma ave levar uma nota no bico ou alguém enterrar moedas na serra. Nunca vi um priolo de iate ou uma abetarda num Ferrari, e apesar de se falar de macacos milionários, todo o dinheiro investido em conservação da natureza é gasto com as pessoas e na verdade, para as pessoas. O nosso voto pode ser um tijolo “verde” para construir um futuro mais sustentável ou um machado para derrubar a Natureza que nos mantém. Pensem nisso nesta eleições.