Um ciclone passou por Bedout e matou até 90% de três espécies de aves

Impacto registado em aves marinhas de três espécies que nidificam numa pequena ilha da Austrália mostra como os ciclones estão a tornar-se mais perigosos para a biodiversidade.

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Dois cadáveres de atobás-grandes fotografados em Julho na ilha de Bedout Andrew Fidler
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O caso ocorreu em Abril de 2023, quando a pequena ilha de Bedout, ao redor da Austrália, sofreu durante dois dias o embate de Ilsa, um ciclone de categoria 5 com ventos de 218 quilómetros por hora, que atingiu rajadas de 288 quilómetros por hora. Os danos para a biodiversidade da ilha foram devastadores. O ciclone matou entre 80 e 90% da população de três espécies de aves marinhas que fazem ninhos naquele pedaço de terra, mostra um artigo publicado nesta quinta-feira na revista Communications Earth & Environment.

“Dediquei-me durante 20 anos da minha vida à conservação da vida selvagem (e da vida selvagem em ilhas), foi por isso muito difícil testemunhar tanta destruição”, contou ao PÚBLICO Jennifer Lavers, investigadora dedicada à conservação da vida selvagem e primeira autora do artigo da Communications Earth & Environment, que pertence ao grupo da Nature.

A investigadora fez a última de três sondagens à ilha após a passagem do ciclone, já em Julho de 2023. Bedout é uma ilha coralina, baixa, com 16,7 hectares, situada a 42 quilómetros da costa do estado da Austrália Ocidental, e tem o estatuto de reserva natural. Há várias espécies de aves marinhas que habitam a ilha, mas só algumas é que nidificam.

Centenas de cadáveres de pássaros que foram mortos pela passagem do ciclone Ilsa Fortescue Helicopters
Restos de um abotá morto no meio da areia, na ilha Andrew Fidler e Tanya Mead
Atobás-grandes nos seus ninhos em Novembro de 2016 em Bedout Jennifer Lavers <i>et al</i>
As únicas aves encontradas vivas na ilha quatro dias após o ciclone Fortescue Helicopters
Imagens obtidas de Bedout pelo satélite Sentinela-2 uma semana antes da passagem do cilcone Ilsa (à esquerda) e três dias após a passagem da tempestade (à direita) Agência Espacial Europeia
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Centenas de cadáveres de pássaros que foram mortos pela passagem do ciclone Ilsa Fortescue Helicopters

“Estimámos que 80% a 90% da população de três espécies de aves marinhas – o atobá-grande (Sula dactylatra bedouti), o atobá-pardo (Sula leucogaster) e o rabiforcado-pequeno (Fregata ariel) – foram mortos pela tempestade, com apenas 40 atobás-grandes reprodutores (uma potencial subespécie endémica, já que não se encontra em mais lado nenhum do mundo) registados na ilha 15 semanas após [o ciclone]”, explicou Jennifer Lavers, que pertence ao Laboratório Adrift, em Esperance, uma cidade no Sul da Austrália Ocidental.

As fotografias da ilha, tiradas de helicóptero poucos dias após a passagem do ciclone, durante a primeira sondagem que foi feita, revelam centenas de aves mortas, com as penas das asas a sobressaírem-se da areia. Na sondagem de Julho, foram contabilizados 10.272 cadáveres de atobás-pardos e 3887 de atobás-grandes.

“Estrangulamento genético”

Apesar de se conhecer pouco sobre o impacto de ciclones na biodiversidade das ilhas australianas, os cientistas temem um crescendo na frequência e força das tempestades. De 2007 para cá, a ilha sofreu o impacto de ciclones em 2007, depois em 2013 – com três ciclones ao longo do ano –, de seguida em 2016 e no ano passado. De todos, o Ilsa foi o pior, batendo recordes de intensidade.

“A frequência e intensidade deste tipo de tempestades está provavelmente a aproximar-se de um limiar ao qual as aves de Bedout não poderão recuperar rapidamente, com os ciclones a atingirem a ilha, em média, a cada sete anos nas últimas décadas”, adiantou Jennifer Lavers. Para espécies como o atobá-grande, que está praticamente isolado de outras populações que vivem a milhares de quilómetros de distância, há o risco de “estrangulamento genético”, referiu a investigadora.

Uma das perguntas a que os cientistas não conseguem responder inteiramente é porque é que as aves, conseguindo antecipar a vinda de um furacão, não fugiram de Bedout. Sabe-se que os casais reprodutores criam uma ligação com as crias e isso pode “explicar a relutância de algumas aves em abandonar os ninhos à medida que a tempestade se aproxima”, avançou Jennifers Lavers. No entanto, isso “não explica o comportamento do rabiforcado-pequeno, que em Abril estaria nos primeiros estádios da colocação de ovos”. O enigma necessitará de mais pesquisa.

De qualquer modo, a tempestade Ilsa não terá afectado apenas as espécies de aves nidificantes. “O dano é ainda mais severo do que o que documentámos, mas devido ao tempo e ao financiamento limitados, fomos incapazes de recolher informação sobre outros aspectos não relacionados com as aves marinhas. Por exemplo, não há informação de como os recifes de coral que rodeiam a ilha Bedout foram danificados, ou os peixes e as populações de tartarugas-marinhas, que nidificam ali”, enumerou.

Mas o cenário revela mais uma face do impacto das alterações climáticas na biodiversidade, neste caso na das aves marinhas, que cumprem várias funções nos seus ecossistemas. “As aves conectam o sistema marinho com o terrestre, ao transportarem vastas quantidades de nutrientes vindos do mar para os seus locais terrestres de reprodução, de descanso e de nidificação, através da deposição de guano e de outros contributos”, adiantou a investigadora. Nas ilhas como Bedout, “a perda ou a grande redução de colónias através de ciclones pode alterar o funcionamento desses ecossistemas”.

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