“O centro toma como suas políticas de extrema-direita”
José Gusmão, o número 2 da lista do Bloco de Esquerda às europeias, afirma que “ extrema-direita não tinha interlocutores no centro político e agora tem”. Acabaram as linhas vermelhas na Europa.
É a segunda vez que José Gusmão concorre às europeias como deputado, embora os corredores do Parlamento Europeu lhe sejam familiares há muito tempo: traballhou com Miguel Portas e Marisa Matias. Crítica da nova governação económica da União Europeia, Gusmão acha que o centro político europeu tornou "mainstream" parte da extrema-direita. Esta entrevista é um resumo do podcast "A minha família é melhor do que a tua", em que se entrevistam candidatos que não são cabeças-de-lista.
Quem é o José Gusmão?
Sou formado em Economia, tenho 47 anos. Comecei a trabalhar na área de investigação, primeiro no ISEG, a faculdade onde me formei, depois no ISCTE. Trabalhei com Miguel Portas, depois ainda com a Marisa Matias, fui deputado nacional pelo meio e fui eleito deputado ao Parlamento Europeu em 2019. Tenho um doutoramento no congelador à espera de melhores dias. Fui militante do PCP até aos 26 anos. Sou co-autor, nos últimos anos não particularmente ativo do blogue Ladrões de Bicicletas que criei com alguns amigos do tempo da Faculdade.
Como vê a situação na Ucrânia? Estamos a caminho de uma terceira guerra mundial? Zelensky diz que já começou.
A grande questão é a de saber se se torna uma guerra nuclear. E é de saber também qual é que é o cenário de saída.
Mesmo as guerras mais terríveis um dia acabam e importa saber como é que irá acabar esta guerra, como é que a Ucrânia vai sair desta guerra. E eu penso que aí a União Europeia tem responsabilidades a vários níveis. Mesmo com a guerra a decorrer ainda estava em vigor um programa de reformas do FMI na Ucrânia que era condição para o financiamento através de empréstimos. Esse programa foi suspenso e o financiamento tem sido feito a fundo perdido. Mas existe uma questão muito importante que é a de saber se o apoio à reconstrução da Ucrânia será feito, como eu penso que deve ser, a fundo perdido ou será feito através de dívida. Isso significaria que a Ucrânia sairia desta invasão debaixo de uma montanha de escombros, mas também debaixo de uma montanha de dívida. E eu acho que esse é risco que é preciso impedir.
Acha que a União Europeia podia ter feito mais pela tentativa de chegar a uma paz na Ucrânia?
A União Europeia esteve unida no apoio à Ucrânia, apoio financeiro, apoio militar, na condenação da Rússia, incluindo na questão das sanções. Gostaria de ter visto sanções um bocadinho mais eficazes no que diz respeito à oligarquia russa. Os resultados aí foram muito fracos e a razão pela qual foram fracos foi porque os instrumentos legais que tinham de ser mobilizados para apanhar os oligarcas russos acabariam por apanhar outros na rede. A União Europeia actuou de forma bastante coesa no apoio à Ucrânia e na condenação da invasão russa. Onde as coisas funcionaram de forma mais desarticulada foi na busca de soluções de paz. E aí houve iniciativas, mas elas foram de países isolados, nomeadamente da França e da Alemanha. O próprio Zelensky, a determinada altura, colocou a questão da neutralidade da Ucrânia e o seu estatuto não nuclear Coisas que a Ucrânia punha em cima de uma mesa de negociações para um eventual acordo de paz. Isto ocorreu logo no princípio do conflito, se não estou errei, março de 2022.
Chegou a haver conversações de paz que falharam porque a Rússia não abdicava de uma parte do território da Ucrânia, que a Ucrânia imediatamente rejeitou – o plano de partição da Ucrânia sempre foi inaceitável para os ucranianos. A União Europeia a esse nível tem dito que os termos da paz têm que ser definidos pelos ucranianos e por mais ninguém.
O chefe de gabinete do secretário-geral da NATO avançou com a possibilidade de a Ucrânia ceder uma parte do seu território à Rússia em troca da adesão da Ucrânia a NATO, o que de alguma forma revela a agenda da NATO em relação a este conflito. A NATO não tem nenhum problema em entregar uma parte da Ucrânia a Putin desde que possa ter a Ucrânia dentro da NATO e possa ter bases militares dentro da Ucrânia. A solução é inaceitável para a Ucrânia. Para a paz o primeiro passo teria que ser a retirada das tropas russas. Porque qualquer outro cenário é colocar a Ucrânia a negociar com uma arma apontada à cabeça.
As novas regras da governação económica da União Europeia são mesmo piores do que as antigas, como diz o Bloco?
As velhas regras continuam em vigor. O Pacto de Estabilidade e Crescimento não foi revogado. O que temos agora é um novo quadro de aplicação das mesmas regras, que é simultaneamente mais restritivo e mais impositivo. É mais restritivo porque o valor de referência para o défice défice estrutural, passa a ser de 1,5 % e não os 3 % que constam do Pacto de Estabilidade e Crescimento. O défice estrutural não é a mesma coisa que défice. Aliás, um dos compromissos da Comissão era abandonar a utilização destas variáveis estruturais, porque elas são variáveis não observáveis, que o Conselho Orçamental Europeu dizia que não deviam ser utilizadas e não deviam, porque a determinação do saldo estrutural é uma ciência mais ou menos oculta que devia estar fora das regras de governação económica. Mas é sobretudo quadro mais restritivo porque determina não apenas os ritmos de ajustamento dos países, mas a forma desse ajustamento. Ou seja, estas novas regras dizem que o ajustamento vai-se fazer pela despesa e pelo investimento. Ou seja, a Comissão Europeia vai definir quanto é que país vai gastar cada ano, para conjunto de 4 anos que pode ser alargado para 7.
E qualquer desvio, mesmo que mínimos, a esta tracjetória, abre a porta a sanções. É totalmente falsa a ideia de que estas regras são mais flexíveis. Elas são menos flexíveis, quer do ponto de vista dos desvios relação à trajectória, quer do ponto de vista das estratégias que os governos podem adoptar.
Agora há uma aproximação entre Ursula Von der Leyen e a extrema-direita italiana...
Meloni vai trocar o seu apoio a Ursula von der Leyen por mais folga na trajectória da despesa que vai ser permitida a Itália. E depois vai haver países que vão ser os parentes pobres desta discricionalidade da Comissão Europeia.
A relação do Bloco com o euro como é que está? É complicada?
O Bloco não é contra o euro. Temos uma posição muito crítica sobre o desenho da União Económica e Monetária. A União Monetária, o euro, não tem mecanismos que permitam lidar com os desequilíbrios que cria. Por exemplo, as nossas relações comerciais com o exterior estavam equilibradas quando entrámos para o euro e desequilibraram-se brutalmente a seguir. E fomos, por causa disso, acumulando uma dívida externa muito considerável. A União Monetária gerou enormes divergências dentro da União Europeia que a UE não tem instrumentos para compensar. Ou seja, o instrumento privilegiado seria o orçamento comunitário, só que o orçamento comunitário que temos é irrisório. Não tem paralelo com nenhum tipo de União Monetária por esse mundo fora, que tem instrumentos que permitem ir corrigindo assimetrias dentro das suas regiões. E uma União Europeia que possa funcionar é uma União Europeia que terá de fazer isso. Terá que ser uma União de Transferências.
Como pode a Europa convencer os seus cidadãos de que os imigrantes fazem falta e não os deve tratar mal?
A grande mudança na política europeia é que o discurso da extrema-direita se tornou o discurso do centro. Em relação ao próximo mandato, o que é mais preocupante não é a dimensão que vai ter a bancada da extrema-direita é a normalização que já está a acontecer de pelo menos uma parte da extrema-direita.
Acontece com Ursula von der Leyen a reunir com Giorgia Meloni, mas acontece até com uma ministra do governo de Pedro Sánchez a dizer que admite acordos com o grupo a que pertence Giorgia Meloni. Há uma uma clara tendência para começar a acolher uma parte das forças políticas da extrema-direita no consenso central das instituições europeias. E portanto aquela barreira higiénica que durante algum tempo existiu relação à extrema-direita na Europa está a ser levantada e isso sim é o mais grave. O Pacto das Migrações é outro problema que é basicamente o centro político a tomar como suas políticas da extrema-direita. Só torna aquele discurso mais aceitável, mais mainstream. Legitima aquelas forças políticas, o que lhes dá mais espaço para crescer. A extrema-direita, antes, não tinha interlocutores no resto do Parlamento Europeu e agora tem.
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