Food for Thought: “Vivemos desconectados da nossa comida”

A Arábia produz alfaces no deserto; Países Baixos têm quase tantos porcos como habitantes; Quénia exporta comida, mas sofre de subnutrição. Kadir Louhuizen fez o retrato da produção alimentar mundial.

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Sindo, Lago Victoria, Quénia ©Kadir van Louhuizen
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Quando, na década de 2010, o fotógrafo holandês Kadir van Louhuizen desenvolvia o projecto Where Will We Go, sobre a subida do nível das águas em países de vários continentes, deu-se conta de que muitos agricultores que viviam nas zonas costeiras de várias regiões estavam a ser forçados a deslocar-se. “Devido à infiltração de água salgada nos solos, ao aumento do número de tempestades e inundações, muitos tiveram de abandonar as suas terras e cultivos” conta Kadir ao P3, a partir da sua casa flutuante, em Amesterdão. “Foi então que percebi que a segurança alimentar já não é um dado adquirido.” O surgimento da pandemia de covid-19, seguida do estalar da guerra na Ucrânia e do bloqueio do Canal Suez, que provocaram grandes mudanças na produção, transporte e distribuição de alimentos, foram tornando esse facto cada vez mais do evidente, refere o holandês.

O projecto fotográfico e audiovisual Food For Thought, que foi desenvolvido ao longo dos últimos três anos e que se materializou em formato de livro e de documentário, emitido recentemente na televisão pública holandesa, faz o retrato da produção alimentar à escala industrial em vários países do mundo: Estados Unidos da América (EUA), Países Baixos, Quénia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos (EAU) e China. “Percebi, antes de dar início ao projecto, que eu pouco sabia sobre os processos de produção alimentar”, explica van Louhuizen. “Tudo acontece de forma escondida. Vemos as estufas ao longe, vemos os animais a viverem nos armazéns, mas sabemos exactamente o que acontece lá dentro? Vivemos desconectados da nossa comida.”

Dos EUA à China, do Quénia à Arábia Saudita

Food for Thought é muito mais do que um livro de fotografia. Nas suas páginas está reunido um conjunto de informações essenciais à compreensão do grande esquema da produção alimentar mundial. As suas páginas contêm texto e infografia que, acompanhados das fotografias que o holandês realizou nos vários países, traçam um retrato dos grandes produtores mundiais. É a partir da leitura dos textos e da análise dos dados que expõe que o leitor percebe e pode inferir o posicionamento de cada país. “Não gosto de dizer às pessoas o que devem pensar sobre os dados. Apenas os reuni para que cada um possa concluir o que quiser.”

A escolha dos vectores que apresenta, no entanto, pelas assimetrias que revelam, torna a leitura mais profunda e interessante. O Quénia é, nas palavras de van Louhuizen, a “horta da Europa”. “O Quénia produz para muitos países europeus. No entanto, e de acordo com os dados apresentados no livro, é o país, entre os seis analisados pelo fotógrafo, que apresenta maiores valores de subnutrição entre a população e que, per capita, dedica, por ano, apenas 821 euros em alimentação. Em comparação, um cidadão norte-americano gasta, por ano, em alimentos mais do triplo desse valor (2847 euros).

“A produção no Quénia e a importação dos produtos para a Europa é possível porque quem trabalha no sector recebe três dólares por dia. O que pagamos cá por uma pequena caixa de mangas corresponde ao pagamento de uma jorna no Quénia. A produção é terceirizada para países onde os salários são muito baixos, o que fez com que por vezes sentisse que estava numa espécie de nova colónia.”

Os EUA, o maior produtor de carne do mundo, são líderes, entre os seis países anteriormente referidos, no que toca ao índice de obesidade na idade adulta (36,2%) e no número de restaurantes McDonald’s por cada cem mil habitantes, e, apenas atrás da China, os que mais CO2 emitem em resultado da sua produção alimentar.

Na Arábia Saudita e EAU, os alimentos que estão disponíveis para consumo são, sobretudo importados. “Decidiram, há poucos anos, que querem tornar-se totalmente independentes de importações”, nota o holandês. “A Arábia Saudita quer, inclusivamente, tornar-se no maior exportador de alimentos da região. Há muito dinheiro a ser investido, actualmente, na construção de grandes explorações pecuárias e em estufas para a produção vegetal. Acontece que a região é desértica e a água é um dos seus principais desafios.” A grande aposta dos países é na dessalinização da água do mar, com os conhecidos custos energéticos e ambientais que acarreta. “Dinheiro não é um problema”, nota o autor. A enorme riqueza talvez explique o facto de, por exemplo, a Arábia Saudita ser o país que regista maior desperdício alimentar do grupo analisado.

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Al Ain Farms, Abu Dhabi (EAU). A Al Ain Farms tem cerca de dois mil camelos para produção de leite. Um camelo produz dez litros de leite por dia. Uma vaca produz três ou quatro vezes mais. O camelo, no entanto é um animal local e bem adaptado ao calor, ao contrário das vacas, e não necessita de esta em local climatizado. ©Kadir van Louhuizen

A China, com os seus 1,4 mil milhões de habitantes, é o país onde há registo das maiores emissões de CO2, como anteriormente referido. “A China anunciou no ano passado que a segurança alimentar é a sua prioridade”, observa van Louhuizen. Estão a aumentar a produção para não dependerem de importações e estão a esforçar-se por transformar o seu sistema de produção para o aproximar das cidades. Assim, grandes estufas estão presentemente em construção em torno delas para que a comida possa viajar o mínimo possível e manter-se fresca sem esforço até chegar ao destino.”

Os Países Baixos, o único europeu da amostra, é aquele a que Louhuizen dedicou mais tempo e mais atenção. “É o país com a maior produção alimentar por hectare no mundo”, sublinha o fotógrafo. Produz queijo, ovos, sementes, tomates, cebolas, pepinos, pimentos, porcos (11 milhões 8% do valor total produzido na União Europeia), galinhas (100 milhões) e bovinos (4 milhões de cabeças), “experiência e conhecimento”, que exporta para todo o mundo. Ainda assim, 75% de todos os alimentos consumidos por quem vive no país provém do exterior. Há registo, nos Países Baixos, do impressionante número de 3,4 animais (que integram o sistema de produção alimentar) por cada hectare de terra.

Os maiores desafios que enfrentam os Países Baixos são o climático e o estrutural. “É necessária uma mudança radical”, observa van Louhuizen. “Há um grande debate, actualmente, porque o país tem pouco mais pessoas do que porcos – a diferença é curta. Devido aos regulamentos da União Europeia, que exigem um decréscimo das emissões de CO2 e metano para a atmosfera que advêm da exploração pecuária.” De acordo com o fotógrafo, os Países Baixos deveriam cortar em dois terços a sua produção de carne para tornar a actividade sustentável, do ponto de vista ecológico. “O governo e os bancos têm estimulado, ao longo de muitos anos, esta actividade. Sabemos que muitos dos subsídios europeus se destinam à agricultura, que também está associada ao aquecimento do planeta.”

Produção alimentar e (falta de) transparência

Kadir van Louhuizen (n. 1963), co-fundador da agência Noor Images e vencedor de inúmeros prémios World Press Photo, nunca hesitou mergulhar em projectos de grande envergadura (fosse pela sua dimensão geográfica ou temporal) e nunca se acanhou diante de grandes desafios de acesso a fontes e locais. “Já cobri inúmeros conflitos [em Angola, Serra Leoa, Moçambique, Libéria, República Democrática do Congo, África do Sul, entre outros], já mergulhei no universo da indústria dos diamantes”, refere o holandês. “Pensei que este seria um projecto mais fácil do que os anteriores, mas acabou por acontecer precisamente o contrário. Esta é, de longe, a história mais difícil que cobri. E não estava à espera disso.”

O fotógrafo deparou-se com “desconfiança” por parte de empresas e de agricultores, “que pensam que os jornalistas apenas procuram escândalos ou apontar o dedo ao que está errado”, explica. “Essa não era a minha intenção. Eu estava genuinamente curioso e achava que tinha todo o direito de saber de onde vem a comida que consumo. Fui muito ingénuo.” O principal problema, explica, tem que ver com o marketing dos produtos alimentares. “Nas etiquetas e nas embalagens há imagens de animais felizes: as galinhas estão em campos verdes e os porcos têm caudas enroladas. E a realidade, a maior parte das vezes, é o oposto disso. O maior medo destas empresas, grandes empresas, era que eu revelasse uma realidade que não estivesse a par com o marketing.”

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Empresa Plenty, Los Angeles, Califórnia, EUA. A quinta vertical é altamente automatizada. As plantas são colocadas na terra por robots. ©Kadir van Louhuizen

"É tempo de retroceder"

Quando Kadir van Louhuizen era uma criança, recorda, “apenas comia produtos sazonais”. “Não havia forma de consumirmos um abacate ou morangos no Natal, por exemplo. Comia carne com menos regularidade, porque era demasiado cara. Habituámo-nos a ter estes produtos disponíveis e esperamos que os supermercados estejam sempre cheios.”

O plantio em zonas desérticas, o transporte de alimentos entre continentes associado à exploração de baixos salários em países em desenvolvimento, as monoculturas, a produção animal para consumo de carne com frequência diária, são temas que van Louhuizen aborda directa e indirectamente nas páginas do livro que lançou em Abril de 2024. “É difícil para os serem humanos saírem da sua zona de conforto, mas talvez seja tempo de retrocedermos se quisermos salvar este planeta.”

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