Imagens mudas e sons cegos: eis toda a força do cinema no Indie

Com Zinzindurrunkarratz, deslumbrante ensaio sobre a memória da transumância no País Basco, o IndieLisboa dá-nos a concurso um dos grandes filmes do ano.

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Em Zinzindurrunkarratz, o basco Oskar Alegria filma em super-8 a transumância em desaparecimento na região ao redor da aldeia dos pais dr
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O IndieLisboa dá neste fim-de-semana os “últimos cartuchos” da edição 2024, anunciando o palmarés ao fim da tarde de sábado e encerrando oficialmente na noite de domingo com a antestreia de O Homem dos Teus Sonhos, de Kristoffer Borgli, com Nicolas Cage. Mas arranjando ainda espaço para exibir ou reexibir alguns dos filmes fortes do circuito recente de festivais (A Traveler’s Needs, de Hong Sang-soo; O Império, de Bruno Dumont; e, anunciado como surpresa, o novo Yorgos Lanthimos, Histórias de Bondade, recém-chegado de Cannes), e para fazer as últimas projecções, ou mesmo estrear os últimos títulos competitivos.

Uma coisa é desde já bastante visível na selecção competitiva da edição 2024: uma vontade de “abrangência”, de “alargamento”, uma recusa de ficar encaixado numa ideia talvez cediça de “cinema de autor” e uma vontade de procurar filmes que falem realmente às pessoas. Que se sentiu tanto na competição portuguesa quanto num concurso internacional onde houve espaço para meditações mais ou menos surreais sobre a relação entre o homem e a natureza (Monisme, do indonésio Riar Rizaldi, e O Auge do Humano 3, do argentino Eduardo Williams), ou a recorrência dos traumas históricos a leste (78 Days, da sérvia Emilija Gasic, ou Dolomite and Ash, da russa Toma Selivanova). E onde o documentário e a ficção, a imagem real e a animação tiveram lugar para conquistar os espectadores que acorreram ao festival e esgotaram várias sessões, mesmo pelo meio de um calor veraneante, de uma Feira do Livro a começar, e de Taylor Swift a cantar na Luz.

Um exemplo possível dessa quadratura do círculo foi precisamente o último título a ser exibido na Competição Internacional, Zinzindurrunkarratz, do basco Oskar Alegria (segunda passagem neste sábado, às 21h45, na Culturgest). Estamos na vocação regional(ista) do moderno cinema espanhol, ao mesmo nível da Galiza profunda de um Oliver Laxe: Alegria quer filmar a transumância em desaparecimento na região ao redor da aldeia dos pais (o título é um “compósito” de palavras bascas que traduzem sons naturais — vento, ecos, trovões). Mas, ao mesmo tempo, há um desafio formalista a reforçar essa sensação de desaparecimento: o cineasta filmou esse percurso de uma semana com a câmara super-8 do pai que há 41 anos não era usada, uma câmara que já não regista som e que apenas filma três minutos e meio de imagem de cada vez, acompanhado por um “catálogo” de sons registados separadamente.

O que Oskar Alegria quis fazer, então, foi recriar a voz do passado pelo simples poder da imagem, criar um diálogo entre “imagens mudas” e “sons cegos”, assumindo abertamente a impossibilidade de “atingir a perfeição” (e recriar o passado) mas usando a própria imperfeição como motor criativo do filme. Logo no início de Zinzindurrunkarratz, Alegria refere uma técnica japonesa de “reparação” de objectos de uso quotidiano partidos em que a taça ou o prato são “recolados” com laca misturada com ouro ou pó dourado. O objecto assim recuperado volta a estar intacto e utilizável, mas passa a transportar as marcas do tempo na sua própria estrutura. Kintsugi é o nome dado no Japão a esta técnica, e o cineasta e curador basco pratica com as imagens rodadas com a câmara do pai e com o som registado separadamente uma forma equivalente de tornar o passado vivo de novo: assumir que o que foi não volta a ser, mas mostrar que continua a poder existir.

O resultado é deslumbrante: um documentário que procura replicar na forma o trabalho de arqueologia que está a tentar registar, um dever de memória colorido pelas emoções e pelo espaço, um ensaio sobre os poderes separados e conjuntos da imagem que estão sempre presentes e do som quase sempre ausente. Cinema, em suma, no que de mais experimental pode ter, mas também no que de mais intimista e humano pode ser; e, em nosso entender, o verdadeiro (e francamente mais apaixonante) sucessor do Comboio de Sombras de José Luis Guerín. Zinzindurrunkarratz é, em nosso entender, o grande filme do concurso internacional do IndieLisboa; é um grande filme, tout court.

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