O mês de Maio está a chegar ao fim, as temperaturas ultrapassam os 30 graus Celsius na maioria das cidades de Portugal continental e os avisos meteorológicos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) sobre o calor já começaram a ser emitidos. Entre o distrito de Santarém, onde a temperatura poderá atingir os 40 graus em Coruche nesta sexta-feira, e o de Faro decorrerá um aviso amarelo até às 18h de sexta-feira. Ou seja, está aí uma nova temporada de perigos associados ao calor exacerbado, que obrigam a uma vigilância redobrada neste novo mundo das alterações climáticas.
A previsão sazonal do IPMA mostra que o calor tenderá a ser superior ao normal em Portugal durante o Verão, segundo informação dada ao PÚBLICO. Em Junho e em Julho, haverá uma anomalia positiva nas temperaturas entre um e 1,5 graus Celsius, tanto para o continente como para os arquipélagos dos Açores e da Madeira, refere-se no site do IPMA.
Mas, a partir desta informação, é difícil fazer prognósticos de como aquela anomalia se expressa em termos de ondas de calor e de impactos na saúde humana, embora haja uma tendência para a sua expansão devido às alterações climáticas. “As ondas de calor vão ser cada vez mais intensas, prolongadas e generalizadas, em função destes novos tempos”, explica ao PÚBLICO Luís Campos, presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente, que defende a adopção de medidas – com ênfase no sector da saúde – que melhorem a situação ambiental do país.
Em 2022, as fortes ondas de calor que atingiram Portugal em Julho e Agosto provocaram a morte em excesso de 2401 pessoas, de acordo com um estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa), divulgado em 2023. Um estudo global de Maio na PLOS Medicine mostrava que entre 1990 e 2019 Portugal registou 606 mortes anuais associadas a ondas de calor, estando no “top 20” dos países mais afectados. A última década foi a mais pesada, com 650 óbitos por ano.
Outro artigo também deste mês, desta vez inteiramente português, concluiu que as ondas de calor ocorridas entre 2000 e 2018 fizeram aumentar as admissões nos hospitais nacionais para todas as 25 categoriais de doenças analisadas no trabalho. A faixa etária mais castigada foi a das crianças e jovens com menos de 18 anos.
“O nosso estudo apresenta provas convincentes de que há uma associação forte entre a ocorrência de dias com ondas de calor e o aumento de 18,9% nas hospitalizações”, lê-se no artigo, assinado por Ana Margarida Alho, Susana Viegas e Paulo Nogueira, do Centro de Investigação Integrada em Saúde da Escola Médica da Universidade Nova de Lisboa, e Ana Patrícia Oliveira, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.
O trabalho foi publicado na revista The Lancet Planetary Health e conclui que, à medida que as ondas de calor se vão tornando mais regulares, é necessária uma estratégia para “lidar de uma forma eficaz com o aumento esperado da quantidade de doentes ao mesmo tempo que se mantém a qualidade do cuidado” na saúde.
Portugal, país vulnerável
Tal como em muitos outros países europeus, Portugal começou a ter planos de contingência contra o calor após 2003, quando as ondas de calor mataram mais de 72.000 pessoas na Europa. O recorde de temperatura máxima absoluto registado em Portugal ainda é desse Verão: a 1 de Agosto, a estação meteorológica da Amareleja, no distrito de Beja, bateu os 47,3 graus. Desde então, os planos de contingência ajudaram os países a prepararem-se para situações semelhantes.
“Portugal é um dos países europeus mais vulneráveis às alterações climáticas e aos fenómenos climáticos extremos, tendo em conta a sua localização geográfica e topografia, tal como uma população envelhecida, mais vulnerável e urbana”, segundo o que se lê logo na introdução do Plano de Contingência para a Resposta Sazonal em Saúde – Referencial Técnico Verão 2024, desenvolvido pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), que tem como objectivo “prevenir e minimizar os efeitos do calor extremo”.
O documento traça o eixo das medidas para o plano de contingência estar em funcionamento. Uma parte importante desse eixo passa pela recolha de indicadores, como as temperaturas registadas e a previsão meteorológica feita pelo IPMA e os dados do Sistema de Monitorização e Vigilância Ícaro, do Insa, que dá informação acerca da mortalidade associada ao calor. Depois, a partir dessa informação, há a identificação e avaliação dos riscos de excesso de calor e a comunicação de alertas à população, principalmente aos grupos mais vulneráveis: idosos, crianças, grávidas, doentes crónicos e pessoas que exercem actividades ao ar livre.
O plano mantém-se vigente de 1 de Maio a 30 de Setembro, mas este período poderá ter de ser alterado no futuro. Luís Campos alerta que a temperatura da Terra já aumentou em média 1,2 graus em relação ao período de referência, a era pré-industrial, e até 2100 prevê-se que esse patamar suba até aos 2,7 graus com as políticas actuais relativas às emissões de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono e o metano, responsáveis pelo aquecimento global.
Foi a emissão daqueles gases que tornou possível o recorde de 2023, quando a temperatura média da Terra à superfície atingiu 1,49 graus acima daquela referência, o valor mais elevado desde que há registos. Parte do recorde teve a ajuda do El Niño, um fenómeno que deixa as águas superficiais do oceano Pacífico mais quentes do que o normal, e que tende a aquecer a temperatura da Terra.
O El Niño iniciou-se em Julho de 2023 e dissipou-se em Abril último. “O El Niño já terminou e existe a possibilidade de se formar o fenómeno La Niña [o fenómeno oposto, em que as águas superficiais do Pacífico arrefecem muito], até ao final do ano”, segundo a informação que o IPMA providenciou ao PÚBLICO.
De qualquer forma, os primeiros meses de 2024 foram já os mais quentes desde que há registo, uma tendência que poderá continuar nos próximos meses. Ao contrário do El Niño, não houve qualquer dissipação dos gases com efeito de estufa que estão a causar o aquecimento global. O calor que se tem sentido nos últimos dias na Índia, em que a temperatura em Nova Deli roçou os 50 graus, recorda-nos de como a evolução das temperaturas torna o dia-a-dia cada vez mais perigoso para as populações.
“É natural que tenha de haver uma adaptação” dos sistemas de alerta de cada Estado em relação à exacerbação desta condição climática, adianta Luís Campos, que é especialista em medicina interna.
Meses de calor a mais
Esta semana, um novo relatório revelava que entre 15 de Maio de 2023 e 15 de Maio de 2024 “as alterações climáticas somaram 26 dias de calor extremo (em média, em todas as partes do mundo) a mais do que haveria sem um planeta aquecido”, lê-se na introdução do documento assinado por três organizações, a Climate Central, o Red Cross Red Crescent Climate Centre e a World Weather Attribution, que tem ficado conhecida nos últimos anos por conseguir associar eventos extremos às alterações climáticas pouco tempo depois de os fenómenos sucederem.
O relatório definiu um dia de calor extremo quando, num dado local, as temperaturas registadas são mais altas do que 90% das temperaturas ao longo do período de 30 anos entre 1991 e 2020. Durante os 12 meses analisados no relatório, 78% da população mundial – ou seja, 6,3 mil milhões de pessoas – viveu pelo menos 31 dias de calor extremo. Por outro lado, identificaram-se 76 ondas de calor extremo em 90 países.
“É uma carga muito grande aquela que impusemos às pessoas”, disse Andrew Pershing, investigador citado pelo jornal norte-americano New York Times e que conduziu a análise do novo documento. O especialista pertence à Climate Central, uma organização independente, sem fins lucrativos, com sede em Nova Jérsia, nos Estados Unidos, que conta com cientistas e comunicadores para divulgar questões sobre as alterações climáticas.
Embora a média dos dias a mais com calor extremo seja de 26 dias, há uma grande variação em todo o globo. No Uruguai, o número de dias a mais não chega a quatro. Mas, em alguns países perto do equador, pode ultrapassar os 120 dias, o que equivale a quatro meses inteiros. “É uma carga muito grande aquela que impusemos à natureza”, acrescentou Andrew Pershing.
Portugal caiu em cima da média: ao longo daqueles 12 meses, houve mais 26,6 dias de calor extremo associados às alterações climáticas. Espanha, por seu lado, teve mais 32,8 dias e a Alemanha mais 25,6. Neste contexto, estes dois países têm aumentado o esforço no combate aos impactos do calor na saúde humana.
Na Alemanha, esse esforço está a passar por uma maior educação e sensibilização, tanto de funcionários como de doentes, em relação aos impactos do calor. Já em Espanha, vem aumentando o período em que o plano contra o calor está activo. Antes, iniciava-se a 1 de Junho. Mas este ano começou 15 dias mais cedo.
O que falta fazer
Embora o período do plano de contingência contra o calor seja mais alargado em Portugal, tendo já começado a 1 de Maio, Luís Campos defende que será necessário adaptarmo-nos à evolução das alterações climáticas. “Tem de haver um maior esforço de comunicação com as pessoas, do aumento de eficácia das medidas que cada um deve tomar para se proteger das ondas de calor”, defende o médico, que está especialmente preocupado com os grupos mais vulneráveis, não só por causa de problemas de saúde ou da faixa etária, mas também a população mais vulnerável devido ao baixo nível da literacia.
Por outro lado, há uma parte do trabalho que terá de ser feita pelo sector de saúde, argumenta o médico. “Tem de haver uma maior educação a nível dos profissionais de saúde para fazer face às situações clínicas que decorrem das ondas de calor. Portugal ainda não tem normas de orientação clínica sobre os golpes de calor”, exemplifica.
Os golpes de calor são situações que ocorrem quando “o sistema de controlo da temperatura do corpo deixa de trabalhar”, lê-se no site da DGS. Esta falha leva ao rápido aumento da temperatura do corpo, o que pode provocar deficiências cerebrais e, em alguns casos, a morte. Segundo o médico, apesar de o número de golpes de calor ser ainda residual, prevê-se que vá aumentar.
As pessoas que trabalham ou que exercem actividades ao ar livre estão especialmente vulneráveis às ondas de calor e a situações perigosas como os golpes de calor. Em países como os EUA, tem-se discutido a situação laboral das pessoas que trabalham ao ar livre e a criação de nova legislação para as proteger.
Por cá, o Verão também pode ser uma fonte de perigo para aquele grupo, que a DGS de facto enquadra na população vulnerável. “Tem de haver uma diminuição do tempo de trabalho durante as horas de maior calor” para aqueles trabalhadores, adianta Luís Campos. “Tem de haver um esforço legislativo e de protecção social destas populações, que de facto não existe.”