“Somos o que comemos”: Alandroal quer ser referência na agricultura regenerativa

Festival Soil to Soul abriu o debate e lança desafios. “Precisamos dos políticos do nosso lado”, dizem produtores. “Esta agricultura é factor de atractividade”, defende presidente da câmara alentejana

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Terramay, projecto de agricultura regenerativa e de turismo na zona do Alandroal Rui Gaudêncio
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Na União Europeia, apenas cerca de 200 mil agricultores (2% do total) praticam uma agricultura regenerativa, que tem como preocupação central preservar e recuperar a qualidade dos solos. O número foi avançado por Esther Henneberke, da organização Climate Farmers, num dos debates da segunda edição do festival Soil to Soul Alandroal – Somos o Que Comemos, que decorreu nos dias 25 e 26 de Maio no castelo daquela vila alentejana.

Há ainda 8% que fazem agricultura biológica, mas isso não significa, por exemplo, que não pratiquem uma monocultura, com todo o impacto que esta pode ter na saúde e fertilidade dos solos, sublinhou a activista, concluindo que “90% da agricultura europeia ainda é convencional”. Em Portugal, os Climate Farmers trabalham já com cerca de 50 agricultores, ajudando-os na transição.

A agricultura regenerativa está no centro do festival criado pelos produtores da Terramay em parceria com a Câmara Municipal do Alandroal e co-organizado por Paulo Amado, das Edições do Gosto, que moderou os debates. Nestes ficou claro que não existe um referencial para certificação em agricultura regenerativa, como existe já para a biológica. Isto significa que um produtor que queira seguir as técnicas que protegem o solo – como é o caso da Terramay – não tem possibilidade de ver esse trabalho reconhecido.

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Vários chefs foram convidados a participar no Soil to Soul (na imagem, Bruno Caseiro, do Cavalariça) Humberto Mouco/Soil to Soul

Cozinheiros, agricultores, produtores, activistas, cientistas, todos sentados em cima de fardos de palha, protegendo-se o melhor que podiam do sol alentejano, procuraram perceber como podem trabalhar em conjunto para que a forma como nos alimentamos prejudique o menos possível o planeta – o impacto é sempre imenso, como sabemos, mas será possível minimizá-lo?

“Estamos aqui a falar da democratização da comida”, explicou à Fugas Anna de Brito, da Terramay. “Todos concordamos que os produtos biológicos, sem pesticidas, não podem ser só para os ricos. Não é justo. Precisamos de ter do nosso lado políticos que tenham vontade de entrar em confronto com a grande indústria alimentar.”

Que políticas concretas seriam necessárias? Anna fala do ponto de vista do produtor: “Nós temos o certificado biológico e para o obter temos de ser nós a pagar a uma entidade que vá verificar os solos e ver que não usamos venenos. No final, diz 'parabéns, têm aqui o carimbo' e depois mandam uma factura. Isto tem um custo. E sabemos que quando se produz com agricultura regenerativa, como nós fazemos, é óbvio que quase 40% dos produtos que ali crescem vão para os animais, são comidos pelos insectos, fazem parte da natureza.”

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Houve música, gastronomia e debates ao longo dos dois dias do Soil to Soul Humberto Mouco/ Soil to Soul

O que defende é que “devia ser o Governo a aplicar impostos ao uso dos pesticidas e dos herbicidas, de tudo o que faz mal à saúde das pessoas e aos solos”. Parece-lhe urgente “reorganizar a economia nesse sentido, porque senão ficamos sem a base da alimentação, que são os solos produtivos”.

O Governo “devia também ver que há aqui aldeias abandonadas", prossegue Anna de Brito: "Rosário, por exemplo, é uma aldeia-fantasma”, exemplifica, defendendo a criação de medidas que incentivem as pessoas a vir para zonas como este concelho alentejano. Para já, os organizadores do Soil to Soul – Anna, David e o suíço Thomas Sterchi, sócio da Terramay e fundador do festival em Zurique – contam com o apoio de João Grilo, presidente da Câmara do Alandroal.

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O Castelo do Alandroal foi pela segunda vez o palco do Soil to Soul Humberto Mouco/ Soil to Soul

Como é que o município, que sofre com a perda de população – tem “dez pessoas por km2” –, pode ajudar a impulsionar o movimento da agricultura regenerativa? “O primeiro grande impulso é este festival”, responde João Grilo. “É o primeiro evento que eu conheço dedicado a esta abordagem à agricultura. A primeira coisa que fazemos é dizer que este tipo de agricultura é importante para o território, que é um factor de atractividade, tal como o ar puro, a segurança, a natureza.”

Um dos focos são as escolas, onde se pretende que “as crianças contactem com este tipo prática agrícola” (no festival houve também várias oficinas para crianças), e que “consumam alimentos produzidos desta forma”. A câmara, afirma o autarca, “está a iniciar um projecto de criação de uma horta sustentável na escola, e a introduzir de alimentos desta origem nas refeições do dia-a-dia” – como as refeições são integralmente pagas pelo município, isto não representa qualquer custo acrescido para as famílias.

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No centro da foto, o presidente da Câmara do Alandroal, João Grilo, e à esquerda o chef Vítor Adão Humberto Mouco/ Soil to Soul

Através de uma parceria com um produtor local, o município, que trabalha com uma nutricionista, garante a distribuição de amêndoas, de 15 em 15 dias, às crianças até ao 3.º ciclo. “Há esta dinâmica de proximidade que permite isto”, sublinha João Grilo, lembrando outro projecto que considera um sucesso, o da valorização do peixe do rio.

“Começámos há 15 anos com o festival do peixe do rio. Na altura só havia um ou dois restaurantes a servir peixe do rio, as pessoas em casa não lhe davam importância, mas nós convidámos chefs, organizámos actividades nas escolas com os meninos, que traziam as receitas dos avós, pintavam peixes, servimos peixe do rio na cantina, e hoje há peixe do rio à venda e muita gente já o cozinha em casa”, conta.

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O festival também inclui visitas à escola, no caso Escola Básica Diogo Lopes de Sequeira para apresentar a "aposta na agricultura regenerativa rumo ao futuro" dr

“O nosso objectivo é fazer crescer também o consumo dos produtos locais, sustentáveis e biológicos, porque aqui ainda são fáceis de encontrar. E muitas vezes não são valorizados ou então o restaurante compra meio às escondidas as favas do agricultor local.” Os restaurantes têm de perceber, diz João Grilo, “que a melhor coisa que podem dar a um visitante são aquelas favas produzidas só com a água que choveu e com a terra que lá está e mais nada”.

Está cautelosamente optimista quanto à possibilidade de reverter a dinâmica da desertificação. “Não é só com um factor. Se todos os factores que estamos a tentar activar correrem bem, vamos fixar população e atrair outro tipo de pessoas. Temos de apostar na gastronomia, na agricultura, temos a possibilidade de ter grande crescimento associado à ferrovia em construção e com a decisão sobre a localização do aeroporto e da travessia do Tejo, estamos no principal corredor rodoferroviário Lisboa-Madrid. Acredito nestas possibilidades de desenvolvimento.”