Mais de um terço dos médicos que asseguram urgências hospitalares são internos
Em 2023, face à recusa dos médicos em fazer mais do que as 150 horas extra por ano — o recurso a médicos internos para “tapar buracos da escala” foi “grave e intolerável”, denuncia o bastonário.
Mais de um terço dos médicos (36%) que asseguram urgências hospitalares são internos, ou seja, clínicos que estão em formação na especialidade médica. De acordo com os números enviados ao PÚBLICO pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), até Abril deste ano, foi contabilizado um total de 8895 médicos que realizam trabalho nos serviços de urgência hospitalares. Desses, 3232 são médicos internos, ou seja, 36% do total. A dependência dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) destes médicos para completar escalas tem um impacto negativo na formação dos médicos, assim como riscos no próprio desempenho clínico, alertam os representantes da área ouvidos pelo PÚBLICO.
Ao PÚBLICO, o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes, recorda que em 2023 — face à recusa dos médicos em fazer mais horas extraordinárias do que as estipuladas por lei (150 horas por ano) — o recurso a médicos internos para “tapar buracos da escala” foi “grave e intolerável”. “Nalguns casos, detectámos que as equipas eram exclusivas de médicos internos, que nem sequer estavam a ser devidamente acompanhadas por especialistas”, acrescenta, dizendo-se pouco surpreendido com os números.
Sobre o tema, o presidente do Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI), o órgão da OM que representa os médicos internos portugueses, sublinha que “é suposto o serviço de urgência fazer parte da formação do médico interno”, mas há limites definidos. “O que está na lei é que [os médicos internos] têm de fazer até 12 horas semanais [nos serviços de urgência] e depois mais 12 horas em situações extraordinárias. Mas o que sabemos é que, muitas vezes, este número é largamente ultrapassado e não é por acaso que quando fazemos inquéritos de satisfação aos médicos internos, todos os anos, o que vem à cabeça é o excesso de carga de trabalho nas urgências”, refere José Durão.
E isso acarreta riscos, “seja para o doente e para a segurança do doente, seja para a qualidade dos cuidados e até para a própria segurança do médico que está a prestar os cuidados”, enuncia ainda o responsável.
Já Carlos Cortes frisa que “os médicos internos acabam por ser colocados a fazer trabalho que não deviam estar a fazer e, muitas vezes, somando turno atrás de turno”. É um factor que coloca pressão no tempo que dedicam ao estudo e no investimento que dedicam à investigação, que também têm de fazer durante o internato, e que tem “impacto negativo na formação destes médicos”, “além de comprometer a segurança da equipa e doente”.
“Vão roubando tempo à formação que têm de fazer e que lhes é exigida e vão deixando isso para os tempos livres, noites, fins-de-semana, folgas, férias, etc.”, corrobora o representante dos médicos internos.
Do lado do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) — que reivindica a integração do internato na carreira médica (algo que, actualmente, não acontece) e que no ano passado emitiu o primeiro pré-aviso de greve nacional para estes médicos —, há o entendimento de que os internos são “a espinha dorsal de muitos serviços de urgência pelo país”. Ao PÚBLICO, o dirigente do SIM, Nuno Rodrigues, afirma que, com esta prática (de colocar médicos internos a garantir escalas nos serviços de urgência), “deturpa-se a formação”.
“As equipas de urgência estão incompletas de seniores e o complemento para resolver o problema acaba por ser a ajuda dos internos, que completam as escalas, o que muitas vezes acarreta riscos nas tomadas de decisão porque não há o apoio dos especialistas”, explica.
Além disso, o responsável sindical expõe ainda a situação de alguns internos que, já no final da formação na especialidade (no último ou penúltimo ano), podem ser equiparados a especialistas para completar escalas. “Mas coloca-se outro problema: estes médicos não são remunerados como especialistas”, critica.
José Durão esclarece que esse é um “ponto de discordância” que leva muitos médicos internos a não concordarem com esta equiparação, porque se sentem injustiçados.
*com Ana Maia